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Acompanhamento das migrações, da flutuação das populações ao longo dos anos e a descrição dos hábitos dos pássaros são feitos por entusiastas da ornitologia

Aves do Cerrado
Sangue-de-boi ( Pyrocephalus rubinus) | Foto: Arquivo Pessoal/Nunes D’Acosta

Historicamente, o catálogo das aves no Cerrado dependeu mais de entusiastas amadores do que de zoólogos profissionais. Desde o século 19, pintores naturalistas europeus como o francês Jean-Baptiste Debret, o alemão Johann Moritz Rugendas e muitos outros visitaram as “matas virgens brasileiras” para retratar a fauna e flora e para catalogar espécies. Esta tradição chegou até os nossos dias, encarnada por fotógrafos e birdwatchers (observadores de pássaros) entusiastas da ornitologia, que, com as facilidades da internet, compartilham seus achados em grandes acervos digitais que são úteis para a ciência – é a chamada Ciência Cidadã. 

Este fato não deprecia os pesquisadores profissionais: trata-se de outra abordagem. O método científico requer formulação e teste de hipóteses, de forma que o cientista deve saber pelo que está procurando. Diferentemente, os naturalistas praticam uma observação aberta; com olhos e ouvidos atentos, esses amantes da natureza vão a campo sem saber o que podem encontrar. O trabalho de busca dessas pessoas é mais abrangente e descritivo. Preocupando-se menos com o porquê dos fenômenos e sem a obrigação de processar os dados segundo modelos matemáticos, a energia dos naturalistas pode se voltar para o registro das espécies encontradas e para a descrição de seu modo de vida.

Os naturalistas atuais são herdeiros de José Hidasi – o húngaro Hidasi József, que viveu em Goiânia de 1954 até sua morte, em 2021, e foi fundador de um dos maiores museus de ornitologia do mundo, a Fundação Museu de Ornitologia de Goiânia, que fica no Setor Campinas. José Hidasi foi o ornitólogo, museólogo e taxidermista mais importante de Goiás, tendo catalogado e descrito por mais de 40 anos as espécies de aves (ornitofauna) do Cerrado. São pessoas como o fotógrafo Nunes D’Acosta e o jovem Estevão F. Santos, de apenas 17 anos, ouvidos pelo Jornal Opção. Ambos possuem artigos científicos publicados sobre a sistemática das aves do Brasil central. 

Naturalista Estevão Santos | Foto: Arquivo Pessoal

Registros naturais

O fotógrafo conta que sempre foi admirador de José Hidasi e frequentador do Museu de Ornitologia. “Conheci José Hidasi no final da década de 1960, quando fazia seu trabalho de conscientização sobre ecologia com crianças em colégios. Passei a gostar de pássaros nessa época. Quando fui para Goiânia, José Hidasi se tornou meu amigo e mentor.” 

Nunes D’Acosta afirma que, ainda nos anos 1970, comprou sua primeira câmera, com filme de 60 milímetros (a mesma espessura de película usada por câmeras de cinema). “Era caríssimo. Na maior parte do tempo, nós apenas observávamos e desenhávamos os pássaros. Esse problema só acabou quando chegaram as câmeras digitais, e foi isso que possibilitou o surgimento de comunidade de observadores no Brasil, nos anos 1990 e 2000”.   

Desta forma, hoje em Goiânia, qualquer pessoa interessada por pássaros pode começar a registrar espécies de todo o mundo dentro de seu próprio quintal. “Não precisa ir a campo. Eu moro próximo ao rio Meia-Ponte, onde é possível encontrar até 150 espécies diferentes dentro da cidade mesmo. O Brasil central é um ponto importantíssimo de ancoragem de aves migratórias: durante o inverno no hemisfério Norte, podemos ver a passagem dos maçaricos que saem do Canadá e vão para a Terra do Fogo (Argentina); e durante o inverno austral, há a chegada das Batuíras e Narcejas que fogem do frio no Cone Sul.”

Ave do Cerrado
Sabiá-ferreiro (Turdus subalaris) | Foto: Arquivo Pessoal/Nunes D’Acosta

Algumas dessas espécies migratórias encontram no Brasil Central pontos específicos de repouso e alimentação, e, em seu caminho, dispersam sementes e cumprem um papel ecológico importante para o Cerrado. Por isso, a degradação do ambiente em Goiás ameaça mais do apenas as espécies nativas, colocando em risco cadeias ecológicas de todas as américas. 

Desde que começou a registrar aves profissionalmente, Nunes D’Acosta afirma ter sido testemunha de uma mudança triste. “Nos anos 1980, parques urbanos e setores arborizados tinham garças azuis e brancas. Hoje são raríssimas. Eu pude ver os últimos maguaris, que hoje só existem no sul e ao norte, nas Guianas, Suriname e Venezuela, mas que foi extinta do Brasil central”. O desmatamento, incêndios e o uso de agrotóxicos extinguem os habitats e insetos de que as aves se alimentam, comenta Nunes D’Acosta.

A morte de animais leva à morte de vegetação e vice-versa

Um novo estudo publicado pela revista Science analisou 406 redes de interações entre plantas e animais ao redor do mundo para compreender o impacto causado pela ameaça às espécies dispersoras de sementes. Os quatro autores da pesquisa estudaram mais de 4.500 espécies e apontaram para o declínio acelerado de plantas, que ficam impossibilitadas de migrar pela falta de animais dispersores. Entre centenas de ecorregiões analisadas, os resultados para o Brasil estão entre os mais assustadores. 

Aves do Cerrado
Guracava-cinzenta ( Myiopagis caniceps) | Foto: Arquivo Pessoal / Nunes D’Acosta

A maioria das espécies de plantas depende de animais para carregar seus frutos carnosos para outras áreas. Com o declínio nas populações de animais (defaunação), o potencial das plantas de se adaptarem às mudanças climáticas também é reduzido. Por exemplo: plantas habituadas a climas amenos não conseguem migrar para locais mais frios conforme sua região nativa é degradada se os animais que poderiam carregar suas sementes foram extintos.

Entre as centenas de ecorregiões analisadas, o Cerrado é uma das regiões mais penalizadas do mundo, com perda estimada de 80% da capacidade de adaptação da vegetação às mudanças climáticas, segundo a metodologia. O estudo é fundamental para compreender que a simples política de criar áreas de proteção ambiental não é suficiente. A criação de corredores de biodiversidade entre áreas protegidas é fundamental para que as espécies possam se dispersar e alcançar reservas. 

A proteção à vida animal nativa também precisa ser intensificada caso o Brasil queira proteger seus biomas. Trata-se de uma cadeia interdependente, na qual a morte de animais acelera a morte da vegetação e vice-versa, o que cria um ciclo vicioso.

Nova geração de naturalistas

Estevão F. Santos é um entusiasta da ornitologia e, com apenas 17 anos, já publicou artigos científicos sobre a sistemática e ecologia dos pássaros do Brasil Central. O jovem atualmente conclui o ensino médio enquanto finaliza seu livro sobre aves que reúne sete anos de dados coletados e observações feitas em campo. “É mais do que apenas um livro descritivo; minha intenção é contextualizar a forma de vida das aves e reconstruir nas páginas a relação delas com a paisagem”, conta Estevão Santos. 

“As aves são indivisíveis de outros elementos da paisagem natural. Para compreender profundamente suas vidas, é necessário conhecer bem as plantas, a geografia, a hidrografia, a entomologia”, diz Estevão Santos. O trabalho de fôlego exigiu um olhar empírico e abrangente do naturalista, dado o escopo de suas observações: todo o estado. “Goiás tem uma paisagem muito heterogênea. Há pontos com 1.400 metros de altitude na Chapada dos Veadeiros, e outros com apenas 250 metros, no Vale do Araguaia. Esse tipo de diversidade favorece o surgimento de uma riqueza enorme de espécies.”

Com seu livro, Estevão Santos também pretende suprir uma lacuna histórica no monitoramento das populações dos pássaros no Brasil Central, que é a deficiência de estudos sazonais. “No passado, os naturalistas viajantes vinham, retratavam, voltavam para a Europa e publicavam seus livros lá, como se o Cerrado fosse um quadro estático, imutável. Os cientistas acompanham flutuações nas populações de suas espécies de interesse, com aspirações maiores, como fazer inferências sobre mudanças climáticas, ou fazer modelagens de computador para compreender a ecologia.”

Foto: Arquivo Pessoal/Estevão Santos

O que falta, segundo Estevão Santos, é a observação sistemática de como as populações variam ao longo do ano, com consideração pelos movimentos migratórios e descrição do modo de vida de aves “estrangeiras” em solo goiano. “Esse tipo de trabalho fica em uma lacuna: não é papel de órgãos fiscalizadores como Ibama e ICMBio e não é o interesse principal da Ciência, que tem rapidamente se afastado da observação empírica naturalista. Isso para não mencionar os custos de levar pesquisadores a campo, pedir autorização para proprietários de terras, lutar por publicação e aguardar revisão de periódicos. Enfim, é um trabalho que pode ser feito mais facilmente por observadores independentes.”

O jovem autor adiantou alguns dos achados que estarão em seu livro: “No Brasil, existiram espécies de aves  que não chegamos a conhecer porque foram extintas antes de serem descritas. Vivem em Goiás algumas espécies que se acreditava que eram específicas de outras regiões. Há a adaptação de pássaros de outros biomas, e a ocorrência dessas espécies também não está registrada. Enfim, são contribuições difíceis de serem feitas pelo pesquisador formal, que não está cotidianamente no campo”.

Apesar da pouca idade, Estevão Santos comenta que ao longo de sua carreira também pôde acompanhar os efeitos da degradação do Cerrado. “De dez anos para cá, tudo mudou. Tivemos três grandes incêndios no Parque Estadual Altamiro de Moura Pacheco, em 2017, 2019 e 2020, e essas queimadas ocasionaram a extinções de aves”, comenta Estevão Santos, sobre o evento de extinção que também estará descrito em seu livro.