Obesidade é o grande mal da modernidade e ser uma das causas do câncer só torna isso mais claro
18 março 2017 às 10h02
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Estudos mostram como pessoas acima do peso têm maior propensão de desenvolver certos tipos de câncer, o que agrava ainda mais o quadro dos mais de 600 milhões de obesos do mundo
Marcos Nunes Carreiro
Nos tempos primitivos, quando o ser humano precisava disputar carcaças de animais com hienas e urubus, ingerir a maior quantidade possível de alimentos e armazenar as calorias em excesso sob a forma de gordura para servir de reserva era instinto de sobrevivência, afinal, não se sabia quanto seria a próxima refeição.
Essa situação de penúria, em épocas que a fome era crônica e endêmica, forjou o cérebro humano e, por isso, ainda hoje, o organismo humano protege suas reservas de gordura, mesmo que estejam em níveis muito elevados. Vem daí a dificuldade enfrentada por muitos em perder peso, pois, quando tentam diminuir suas reservas, hoje inúteis, de gordura, a interpretação feita pelo cérebro é de ameaça à integridade física.
No contexto primitivo, só sobreviveram os indivíduos que tinham essa característica: a de um organismo que estoca gordura. Agiu a seleção natural, provando que Charles Darwin estava certo sobre a evolução das espécies. O que manteve o ser humano vivo há milhões de anos, porém, pode estar funcionando como agente de seleção novamente, só que ao contrário.
Por quê? Drauzio Varella dá a resposta no livro “Borboletas da Alma”: “A natureza é sábia, todos dizem, mas não foi capaz de prever que chegaríamos ao estado de fartura atual, acessível a milhões de seres humanos. Animais com cérebros forjados em tempo de miséria não podem ter geladeira cheia, churrascaria rodízio e disque-pizza à disposição”.
Esse contexto criou uma legião de pessoas acima do peso ideal e que já não usam essa enorme reserva de gordura em seu favor — ao contrário, a gordura apenas atrapalha, pois o acúmulo excessivo dela, proveniente do excesso de alimentos consumidos é uma das principais causas da obesidade, que, por sua vez, está ligada a uma maior possibilidade de desenvolvimento de uma série de enfermidades, como diabetes tipo 2, hipertensão, doenças cardiovasculares, úlceras, pedras na vesícula biliar, infecções de pele, colesterol alto (uma das principais causas de ataques cardíacos), entre outras.
Isso fez da obesidade um dos grandes problemas da sociedade moderna, sendo um dos principais fatores de morte. É a seleção natural agindo novamente. Basta ver que, só no Brasil, os óbitos causados diretamente pela obesidade cresceram 196% em dez anos, de acordo com levantamento feito pelo Estadão Dados, em 2014, com base em informações do Datasus.
Pesquisa do Ministério da Saúde divulgada no início de 2016 revela que mais da metade da população brasileira (56%) está acima do peso, sendo que 20,8% dela já pode ser classificada como obesa, isto é, aproximadamente 80 milhões de pessoas. A região Sul é que tem a maior taxa de adultos (56,08%) e de jovens entre 10-19 (24,6%) com sobrepeso; a Sudeste tem a maior taxa de crianças entre 5-9 anos com sobrepeso: 38,8%.
Estudo da revista científica “The Lancet” revela que, no mundo, desde 1975, a obesidade triplicou entre homens e dobrou entre mulheres, passando de 105 milhões em 1975 para 641 milhões de pessoas obesas em 2014. E a estimativa da Organização Mundial de Saúde (OMS) é de que, em 2025, 2,3 bilhões de adultos estejam com sobrepeso no mundo, quando veremos aproximadamente 700 milhões de obesos, das quais 75 milhões serão crianças.
A conclusão tirada dos dados é inevitável: a obesidade chegou a um ponto de crise no mundo. O problema é que a condição demanda uma atenção muito mais séria do que a que os países e organizações de saúde estão preparados para oferecer, situação agravada ainda mais com notícias que apontam a obesidade como um dos principais fatores de causa de vários tipos de câncer.
13 tipos de câncer
Em um artigo publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, Drauzio Varella diz que os mecanismos pelos quais o excesso de tecido adiposo facilita o surgimento de tumores malignos são muitos e apenas alguns são bem conhecidos, como o “contato do suco gástrico com a mucosa do esôfago, causado pela doença do refluxo gastroesofágico”, o que acontece quando o conteúdo do estômago retorna para o esôfago e em direção à boca. Os outros mecanismos, contudo, não estão devidamente esclarecidos.
De acordo com Varella, é possível que inflamações sejam o mecanismo comum de ligação entre a obesidade e os cânceres. Ele diz: “Da mesma forma que na maioria dos tecidos, as células adiposas estão em processo de renovação constante. O organismo se livra das que envelheceram e dos restos mortos de membranas e corpúsculos celulares, atraindo para o local glóbulos brancos especializados nessa função, como os macrófagos, por exemplo. O afluxo dessas células imunologicamente competentes cria uma inflamação tanto mais intensa quanto maior o número de células adiposas”.
E o número de células adiposas é grande em pessoas acima do peso. Logo, em outras palavras, o médico diz que a obesidade é a causadora de um processo inflamatório crônico que abre portas para várias doenças, entre elas, o câncer. No que concerne aos problemas gástricos, o conhecimento já está de fato avançado desde a década de 1980, quando o pesquisador Barry Marshall e o gastroenterologista Robin Warren descobriram a bactéria H. pylori, que é causadora da inflamação gástrica mais conhecida como gastrite.
Graças a isso, segundo narra Siddhartha Mukherjee em seu livro “O Imperador de todos os males – Uma biografia do câncer”, no fim dos anos 1980, vários estudos epidemiológicos relacionaram a gastrite induzida por H. pylori ao câncer de estômago — atualmente, ela é também ligada a várias formas de câncer, incluindo adenocarcinoma gástrico e linfoma associado à mucosa. E tudo isso está relacionado à má alimentação, que é também um dos principais fatores do surto de obesidade da população atual.
O problema é que as doenças gástricas representam apenas alguns dos fatores geradores — ou facilitadores — de vários tipos de câncer ligados à obesidade. Recentemente, a Cancer Research UK, empresa do Reino Unido, disponibilizou resultados de pesquisas informando que o sobrepeso e a obesidade são um dos fatores responsáveis pelo desenvolvimento de 13 tipos de câncer.
São eles: meningioma (um tipo de tumor cerebral geralmente benigno, mas que pode, em alguns casos, estar associado a características malignas), carcinoma papilífero (câncer da tiroide), esôfago, mama (após a menopausa), fígado, estômago, vesícula biliar, pâncreas, rins, intestino, útero (colo e endométrio), ovários e mieloma múltiplo (que afeta, entre outras coisas, a contagem de células vermelhas do sangue).
A ligação entre obesidade e câncer é clara, mas ainda faltam os motivos. Como a obesidade é fator de causa desses 13 tipos de câncer? Quem fala sobre o assunto é o dr. Dane Vishnubala, um dos pesquisadores do Cancer Research UK. Segundo ele, quanto mais gordura a pessoa tem, mais bagunçada se torna sua produção hormonal, que é a chave para a divisão celular. “Se a produção de hormônios está errada e as células não se dividirem corretamente, células anormais podem ser produzidas. Essas células são basicamente o início de um câncer”, explica.
Assim, quanto mais células adiposas no corpo mais estímulo para a produção incorreta de hormônios e proteínas característicos que são liberados na corrente sanguínea. “Eles se espalham na circulação”, afirma Vishnubala, “e esses ‘mensageiros químicos’ acabam afetando muitas partes do corpo, aumentando também o risco de desenvolver vários tipos diferentes de câncer.”
Entre esses hormônios estão o estrogênio e a testosterona, os hormônios sexuais, que podem aumentar o risco de câncer. Em relação a isso, a oncologista Edna Beatriz Alencar diz que realmente a obesidade favorece alguns tipos de câncer. Segundo ela, mulheres obesas têm mais chances de desenvolver cânceres de endométrio e de mama. Porém, explica que essas são relações de epidemiologia, de estatística, e que ainda não há causas específicas definidas para justificar o surgimento das incidências.
“O câncer do endométrio, por exemplo, acontece geralmente em mulheres com mais de 50 anos e que têm obesidade. A ciência acredita que, quando a mulher tem excesso de peso, sua produção de hormônios é maior, apesar de estar na menopausa. Esse aumento do hormônio feminino é somado ao aumento, próprio da obesidade, em relação a algumas citocinas e proteínas inflamatórias que poderiam estar ligadas ao aumento do risco de câncer”, diz.
A dificuldade, explica Edna, está em associar esse aumento da produção hormonal de maneira isolada porque, às vezes, “a paciente é sedentária, tem diabetes, fuma ou ingere bebidas alcoólicas em excesso. E tudo isso cria um conjunto de fatores que podem aumentar o risco da doença.”
O pâncreas
Fora os hormônios sexuais, há também o fator insulina, hormônio muito importante para o corpo, pois é responsável por quebrar a glicose vinda dos alimentos, transformando-a em outras substâncias para abastecer o próprio corpo. Em resumo, a insulina é o hormônio da energia.
O problema de pessoas acima do peso, ou obesas, está no fato de que seus corpos produzem muito mais insulina que o normal. Está aí a causa da diabetes tipo 2, que é consequência da resistência do organismo à ação da insulina sobre a glicose. Isso é mais comum em obesos porque, à medida que o porcentual de gordura do corpo aumenta, a insulina passa a ter mais dificuldade para quebrar a glicose e o pâncreas precisa produzir mais para fazer frente à resistência. O resultado: o pâncreas se cansa e a glicemia aumenta até chegar a níveis em que já não há volta.
Porém, o que isso tem a ver com câncer? Segundo os pesquisadores do Cancer Research UK, ainda não está claro como a elevação na produção de insulina pode levar ao câncer, embora achem que haja uma relação entre a insulina e o nível de crescimento de algumas células. Porém, além da diabetes, a obesidade também é geralmente associada tanto à pancreatite aguda quanto à crônica, doenças que causam inflamações no pâncreas. Seguindo o pensamento de Varella, pode ser que as lesões no órgão sejam a porta de entrada para células cancerígenas.
O estudo ainda aponta que o excesso de gordura na região da barriga está diretamente conectado com os cânceres de intestino, rim, esôfago, pâncreas e mama. Isso tem a ver com a velocidade com que certos produtos químicos da gordura podem entrar no sangue. As pesquisas, entretanto, ainda avançam no sentido de esclarecer as razões exatas para isso.
A solução
Dr. Dana Vishnubala diz que as pessoas podem fazer duas coisas para prevenir a obesidade e, por consequência, o câncer: manter uma alimentação balanceada e fazer mais exercícios físicos. “Pequenas mudanças são importantes para não apenas perder peso como para mantê-lo. É possível, por exemplo, cortar bebidas adocicadas e manter refeições regulares”, explica. Ou seja, a prevenção é a cura.
Obesidade também traz riscos em crianças
As pesquisas do Cancer Research UK estão, obviamente, voltadas muito para a população de sua região. E os dados deles sobre a obesidade infantil no Reino Unido dão conta que uma a cada cinco crianças estão acima do peso ou obesas antes de entrar à escola. A preocupação é justamente com o crescimento desses números e porque crianças obesas provavelmente se tornarão adultos obesos, que têm, por sua vez, mais chances de desenvolver câncer.
O último relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta que pelo menos 41 milhões de crianças com menos de cinco anos são obesas ou estão acima do peso no mundo. No Brasil, estima-se que um terço das crianças esteja acima do peso ou obesas. É também uma preocupação.
Drauzio Varella, em “Borboletas da Alma”, diz que, fora a predisposição genética, que envolve situações bastante complexas, uma boa parte dos casos de obesidade infantil é causada por maus hábitos:
“O índice de massa corpórea (peso dividido pela altura ao quadrado) diminui do nascimento até os cinco ou seis anos de idade, para depois aumentar gradualmente até a adolescência. Quando fatores ambientais, como falta de atividade física e dietas de alto conteúdo calórico, provocam aumento de peso que subverte essa regra geral, surge predisposição à obesidade na vida adulta”.
A falta de atividade física é o principal fator. Varella relata que um trabalho realizado na Cidade do México mostrou que o risco de obesidade cai 10% para cada hora de atividade física praticada pela criança no dia. Em compensação, para cada hora sentada em frente à TV ou jogando videogames, por exemplo, há um aumento de 12% no risco de a criança desenvolver obesidade. Isso porque não apenas afasta a criança das atividades físicas como também a induz a ingerir alimentos mais calóricos.
Varella explica que alimentos de alto índice glicêmico, como pães, doces, chocolates, refrigerantes e balas, provocam “súbitos aumentos pós-prandiais da concentração de moléculas de glicose na corrente sanguínea. Em reposta, o pâncreas secreta quantidades elevadas de insulina para quebrá-las e armazená-las sob a forma de glicogênio. Armazenadas, as moléculas de açúcar desaparecem da circulação e os centros da fome são ativados novamente.” E isso cria um ciclo sem fim.
Logo, uma atenção especial deve ser dada às crianças, afinal, impedir a obesidade infantil é dar um auxílio e tanto na luta contra a obesidade adulta e a todas as doenças a ela relacionadas.