O PT precisa descer do jatinho e voltar a andar de ônibus
27 janeiro 2018 às 10h50

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Ela já deveria ter ocorrido há pelo menos 13 anos, com o escândalo do mensalão. Mas, com a condenação de seu maior nome em segundo grau, o partido não sobrevive mais sem uma autocrítica refinada

A condenação de Lula por 3 votos a 0 no colegiado de Porto Alegre merece muito mais reflexão do que a sentença de primeira instância de Sérgio Moro. Esse era um juiz apenas, e sobre ele havia senões em pelo menos dois episódios que deixariam a pulga atrás da orelha de qualquer pessoa isenta em sua análise – uma condução coercitiva do ex-presidente, em março de 2016 (algo que o mundo jurídico em geral viu como medida desnecessária ou exagerada) e, dias depois, a divulgação dos áudios de uma conversa deste com a então presidente Dilma Rousseff, pouco depois de seu anúncio como novo ministro do governo.
De Curitiba a Porto Alegre passaram-se seis meses – um prazo menor do que a média dos julgamentos em segunda instância para o mesmo tribunal, diga-se. E Lula foi condenado novamente. Como dizem seus defensores, não se apresentou um recibo do apartamento – o chamado “preto no branco” –, mas realmente havia muita coisa que ligava o ex-presidente àquele imóvel nem tão luxuoso assim no nem tão glamoroso Guarujá.
É verdade que Geddel Vieira Lima – ex-ministro de Lula, diga-se também – foi derrubado do governo Temer por um apartamento muito melhor, em construção no litoral de Salvador. É verdade que dentro de outro apartamento encontraram um quarto “à la caixa-forte do Tio Patinhas”, com R$ 51 milhões, que compraria pelo menos uma dúzia de tríplex.
Ocorre que, em um país conservador como o Brasil, dominado por descendentes de capitanias hereditárias e seus parceiros internacionais, fazer um governo que de alguma forma mexa com as estruturas (ainda que menos do que o necessário) tem um custo alto e exige sacrifícios e cuidados bem maiores do que gestões convencionais. Acrescente-se a isso o fato de o PT ter sido mesmo um partido diferente, nascido e desenvolvido de baixo para cima, como uma real esperança de uma política também diferente.
É verdade, em números Geddel fez algo muito mais grave do que Lula, deixando inclusive suas próprias digitais nas cédulas como prova cabal. Mas de Geddel não se esperava outro comportamento – ou, pelo menos, talvez não surpreenderia tal atitude. O mesmo não podia ser dito do metalúrgico que foi levado à Presidência como a personificação do projeto coletivo de um partido realmente representativo.
A responsabilidade de Lula ter chegado onde chegou e ter esquecido o projeto original do PT – seja por ter passado a mão na cabeça de companheiros no caso do mensalão, seja por ter sido arrogante ao escolher praticamente sozinho sua sucessora, seja por ter aberto tantos flancos para questionamentos – não é só dele. Seu carisma é inegável e único entre os maiores líderes brasileiros. Aliados exaltam essa características e adversários mais desprendidos saberão reconhecer.
Por isso tudo, mesmo que os petistas e grande parte da esquerda considerem a condenação de Lula injusta – e mesmo observadores internacionais colocaram observações realmente sérias, relatando lacunas no processo –, é preciso que ela sirva menos para a autocomiseração do que para o enfrentamento da realidade.
Na semana em que Lula foi condenado pela turma do TRF-4, o ex-prefeito de Porto Alegre e ex-governador do Rio Grande do Sul Olívio Dutra fez considerações valiosas ao partido. Palavras que dizem sobre algo que todos dentro da engrenagem chamada Partido dos Trabalhadores sabem muito bem: “Fizemos concessões a um tipo de política em que as negociações de cúpula valem mais do que o envolvimento do povo”, disse ele, em entrevista ao site “The Intercept Brasil”. Olívio é fundador do PT e, como Lula, passou uma temporada preso, em 1979, quando presidia o sindicato dos bancários de seu Estado.
As “negociações de cúpula” a que se refere o petista têm a ver não só com algo “interpartidos”. Muito já se falou sobre o golpe dado pelo vice Michel Temer em Dilma Rousseff. Pouco se fala que foi um ato “intrapartido”, liderado pela cúpula do próprio PT, que decidiu por dar guarida ao então PMDB, hoje MDB, na chapa. Em prol da governabilidade mais fácil, o grupo que lidera o partido ignorou um processo mais duro, a ser construído com a força da militância e com uma forma alternativa de angariar apoio no Congresso.
Parte desse problema foi esmiuçado em uma entrevista no fim de 2014, na qual o ex-ministro de Lula e hoje pré-candidato à Presidência, Ciro Gomes (PDT), disse que Dilma só iria até o fim do segundo mandato – que acabara de conquistar, a duras penas – se fizesse uma “risca no chão” e dissesse: “Daqui pra trás”. Ou seja, estabelecer os limites éticos necessários para as negociações visando a governabilidade. Talvez Ciro estivesse errado, talvez fosse tarde demais já naquele momento. Talvez a “risca” tivesse de ter sido feita muito antes.
No fundo, essa “risca” de que Ciro fala é a mesma a que Olívio Dutra se remeteu: é o limite da ética, interna e externamente. O mensalão seria o momento de ver que a “risca” tinha sido desobedecida; o petrolão veio como consequência dessa negligência. Se o primeiro escândalo chamuscou o partido, o segundo o jogou por terra. Se no nascedouro do partido ser petista era sinônimo de “comunista” para as mentes mais rasas, passou agora a ser, para essas, também sinônimo de “ladrão”. Se fosse uma pessoa, poderia se dizer que o PT, hoje, está na sarjeta; mas, justamente por toda sua história, é o único que em tais condições poderia se levantar, tomar um banho e recomeçar a vida.
A condenação de Lula pode ter sido injusta? Sim, mas o PT precisa ser maior do que Lula. Não é com autocomiseração que o partido poderá sair do lugar difícil e incômodo em que se meteu. Precisa voltar a dialogar com a sociedade e esta vai além das forças e da militância de esquerda. Isso não se faz sem algumas perdas e sem um pouco de pragmatismo. As eleições estão aí e é essencial ao PT ter um plano B a Lula ou até mesmo a humildade de se alinhar com um candidato que represente seu campo ideológico e que tenha maior chance eleitoral.
Raros partidos, na situação do PT, poderiam tentar recomeçar. A situação do partido é ruim, difícil, mas suas raízes são sua força. Pena que elas estiveram esquecidas durante tanto tempo. O PT de verdade é o que anda de ônibus com o ex-prefeito e ex-governador Olívio Dutra pela capital gaúcha. Não o que viaja com Lula em jatinho emprestado de acusado de corrupção. Os pequenos detalhes e os grandes exemplos farão toda a diferença para que o PT se reconstrua. É a última – e única – chance para o partido ser, de fato, dos trabalhadores.