Modelo anapolina quebra tabu que já durava 60 anos. “Muitas meninas trans, assim como eu, têm medo de se arriscar”

“Eu nasci mulher tanto na alma, quanto no coração. Prazer, sou Rayka Vieira, miss Centro Goiano, a primeira mulher Trans a participar de um concurso de Miss Brasil”.

Foi assim que a quebra de um tabu que já durava 60 anos foi apresentada nas redes sociais da modelo anapolina, de 25 anos, que entra para história: em seis décadas do concurso de beleza, será primeira vez que uma transexual participará.

A confirmação de que seria a representante goiana no Miss Brasil foi há cerca de uma semana. Mas o desejo é mais antigo. “Minha trajetória começou há seis anos, quando participei de uma seletiva para modelos na minha cidade e após algumas conversas com a agência, eu fui contratada”, conta Rayka Vieira.

Ela trabalhou por quatro anos como modelo, mas acabou se afastando. Seu último emprego foi em uma empresa provedora de internet. Como tanta outras, com a chegada da pandemia, ficou desempregada. Logo ela ouviu a notícia que pela primeira vez o Miss Brasil aceitaria mulheres trans como candidatas. Logo que soube, ela procurou a agência que havia trabalhado como modelo. “Falei: agora eu tenho disponibilidade, tempo e posso me entregar para o concurso.”

Por conta da pandemia do coronavírus, este ano não foi realizada a seletiva estadual para Miss Goiás. Assim, Rayka foi convidada a assumir o título e, por consequência, ser a representante goiana no concurso. A modelo explica que apesar de sempre gostar de moda e estar ligada aos concursos de beleza, ser uma candidata a Miss Brasil lhe parecia um sonho distante. Mesmo agora que ela precisa dividir sua rotina entre sessões de fotografia, reuniões de trabalho e entrevistas, ela diz que a “ficha” ainda não caiu totalmente.

O concurso que vai eleger a Miss Brasil estava programado para  outubro, mas o reflexo da Covid-19 fez com que a data fosse adiada para o ano que vem, no dia 4 de março. Isso deu a Rayka mais de seis meses para se preparar. No entanto a modelo disse que já começou. Atividades físicas, treinos de passarelas e idiomas já começam a fazer parte da rotina.

“É preciso coragem para quebrar esse tabu. Mas está sendo bom. Todo mundo me conhece agora. Eu que até duas semanas atrás estava desempregada, agora tenho várias oportunidades de trabalho. São coisas que eu não esperava, mas que são positivas”, avalia Rayka. 

Se por um lado a repercussão de seu feito histórico lhe promoveu bons frutos e uma carreira de modelo, por outro lado há os ataques. A internet gera a falsa sensação de ser terra sem lei, assim as redes sociais da Rayka e de seus apoiadores passaram a receber ataques. A maioria critica o fato dela concorrer de igual para igual com mulheres cisgênero.

“Eu sabia que ao entrar para o concurso eu poderia sofrer com esses ataques. Era algo esperado, mas que sempre é ruim. Pior é que parte desses ataques vem de mulheres, mas eu estou aqui representando elas”, expõe. “Tenho evitado ver esses comentários para não me abalar. Críticas eu já ouço desde quando tinha 15 anos e tudo isso me fortaleceu para ser a mulher que sou hoje. Eu agora tenho focado no apoio que também são muitos e chegam a todo momento pelas redes sociais”, completa.

Transição

O processo de transição de Rayka começou cedo, por volta dos 15 anos de idade. Como ela mesmo relata, o início foi um ato de rebeldia juvenil. Sozinha, sem acompanhamento médico e escondido dos pais, ela começou a tomar hormônios. Hoje ela reconhece o risco que correu. “Não indico de forma alguma tomar uma atitude dessas. É a sua vida que está em jogo. Aconteceu comigo porque eu não conseguia viver mais daquele jeito”.

Modelo começou sua carreira em 2014 | Foto: Raffael Rodrigues/ arquivo pessoal

Desde então Rayka fez sua transição e há cerca de um ano ela conseguiu a retificação do registro civil. O feito tem em sua vida quase que o mesmo significado que concorrer ao Miss Brasil. Foi um marco. “Sem a retificação havia situações de constrangimento. Lembro-me de ir em consultas médicas, pedir para ser chamada por Rayka. Mesmo assim me chamavam pelo nome de batismo. Eu ficava muito constrangida. E isso é puro preconceito”, diz.

Inspirando

Rayka já assimilou a representatividade que seu título traz consigo. “Várias outras meninas vão ter essa oportunidade lá na frente. Mas há um medo. Eu mesmo tinha medo e estou buscando superar. Não estou falando do medo do concurso de beleza. São inúmeras coisas que temos medo de fazer, como a nossa carreira profissional. Quero ser exemplo para encorajar a busca de espaço e de conquista. Vou mostrar a total capacidade que nós temos”, diz com orgulho. 

A miss relata que ao se olhar no espelho sente ser uma mulher capaz de inspirar outras. “Eu recebo várias mensagens de meninas que me falam isso. Quero fazer as pessoas entenderem que falta oportunidade para gente. Tem muita mulher trans competente em tudo, mas falta acreditarem na gente, em nosso potencial. Minha participação no Miss Brasil é para fazer com que os outros entendam. Por isso sinto orgulho de ser pioneira.”

Primeira Miss trans

No ano de 2019 a mulher trans Nathalie de Oliveira havia disputado o estadual Miss Rio de Janeiro, mas não chegou a se classificar. O concurso que Rayka vai participar elege uma brasileira para competir no internacional Miss Mundo, que até hoje não teve nenhuma candidata transexual.

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