Número de discursos racistas cresce, mas sociedade se torna mais combativa

29 novembro 2020 às 00h00

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De 2019 para 2020, cresceu 106% o número de manifestações racistas proferidas por autoridades públicas no Brasil; nenhum dos casos resultou em responsabilização

A gerente de uma hamburgueria localizada no setor Goiânia II, na capital, relatou um episódio de racismo envolvendo um entregador por aplicativo na noite do dia 26 de outubro. Poucos dias depois, Sarah Silva, de 20 anos, denunciou que foi vítima de racismo dentro do Buteko do Chaguinha, que fica no Jardim América, em Goiânia. O vereador Romário Policarpo (PROS), quando era presidente da Câmara Municipal de Goiânia, denunciou que foi chamado de “macaco” durante sessão do plenário.
Segundo os especialistas ouvidos pelo Jornal Opção, o número de denúncias a casos de injúria e outros crimes decorrentes da discriminação racial têm crescido muito nos últimos anos. O dado, entretanto, não é necessariamente uma má notícia, pois o acirramento das tensões raciais pode ser um sinal de que a sociedade tem tolerado menos as manifestações de ódio.
As imagens do afro-americano George Floyd sendo morto pela polícia de Minneapolis, nos Estados Unidos, percorreram a mídia e geraram uma onda de discussões sobre racismo em todo o mundo. De acordo com estudo realizado pela Ipsos com entrevistados de 15 países, 76% dos brasileiros apoiam os protestos pacíficos e as manifestações que estão tomando as ruas americanas desde o assassinato de Floyd, no final de maio; 12% são contra e 12% não souberam opinar. Pesquisa apontou, ainda, que 4 em cada 10 no Brasil consideram manifestações violentas uma resposta apropriada ao assassinato de homem desarmado.

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e a Terra de Direitos publicaram nesta semana um levantamento das declarações de ódio racial proferidos por autoridades públicas no Brasil. Dentro do intervalo de um ano, os dados revelam um aumento de 106% no número de discursos racistas expressados por políticos, membros do sistema de justiça e autoridades que ocupam cargos de direção no governo federal.
A maior parte das falas reforça estereótipos racistas (37%), seguido por incitação à restrição de direitos (31%), negação do racismo (14%), promoção da supremacia branca (12%) e negação da escravidão e o genocídio contra a população negra (6%). Foram feitos pedidos de providência contra 41% dessas manifestações, mas em nenhum dos 49 casos acompanhados o responsável pela declaração racista foi responsabilizado judicialmente.
Os autores do projeto afirmam: “A reprodução do discurso de ódio racial no Brasil tem cada vez mais sido abraçada por representantes políticos, membros de alto escalão do governo e integrantes do sistema de justiça. Os mecanismos de apuração e responsabilização das violações de direitos que acompanham os discursos racistas, por sua vez, têm falhado em garantir apoio às vítimas ou em construir mecanismos de monitoramento, denúncia e responsabilização eficazes. Consequentemente, o racismo naturaliza-se, a violência reproduz-se de forma desenfreada no discurso e atinge a vida, o acesso a direitos e as liberdades da população negra brasileira”.
O estudo traz trechos de vídeos e textos das entrevistas e pronunciamentos em que os discursos racistas foram proferidos. O campeão em número de declarações é o próprio presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido). Algumas receberam atenção da mídia e foram amplamente cobertos como declarações disparatadas; outras referem-se a manifestações de apoio a grupos de supremacistas brancos nos Estados Unidos.

Iêda Leal de Souza, coordenadora e uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), afirma: “A onda de denúncias às violações dos Direitos Humanos tem aumentado. Isso tem acontecido pelo encorajamento da população, que tem percebido que o racismo mora na estrutura da sociedade e que para haver mudanças é necessário que esses crimes sejam denunciados”.
A ativista comenta que tem observado aumento na insatisfação popular e aumento na coragem das pessoas em apelar às autoridades de direito que protegem a legislação. “Para infelicidade de 56% da população negra e parda que vive nesse país e que morre nas mãos do Estado que viola as leis, a direção do país hoje está sob pessoas que não economizam o seu preconceito. Discriminam em seus palanques e pelas redes sociais, se manifestam na contramão da humanidade”, diz Iêda Leal de Souza.
O Conaq e Terra de Direitos registraram sete declarações de negação do racismo, a mais recente vinda do vice presidente Hamilton Mourão, que disse que “não há racismo no Brasil” ao comentar morte de negro em loja do Carrefour em Porto Alegre na véspera do dia da Consciência Negra. “Essas manifestações são no mínimo levianas. É desconhecer a realidade do nosso povo. É considerar uma coisa normal o fato de que a violência afeta principalmente os pretos”, afirma Iêda Leal de Souza.
Segundo o Atlas da Violência, publicado pelo Ipea, o padrão de vitimização por cor indica superioridade dos homicídios entre os homens e mulheres negros (pretos e pardos), em relação a homens e mulheres não negros, chegando a ser 74,0% superior para homens negros e 64,4% para as mulheres negras.
A coordenadora do MNU atribui o acirramento das tensões raciais no país ao maior enfrentamento feito pela população aos crimes de descriminação. “O trabalho sistemático do movimento negro contribuiu muito para essa questão. Dez anos, não tínhamos veículos de comunicação pautando e divulgando essa luta. Nesse momento percebemos como foram importantes as nossas denúncias, marchas, posicionamentos e discussões com parlamentares”.
A origem do racismo estrutural

O advogado Cássio Faeddo, mestre em direitos fundamentais, explica que sempre existiu o discurso de que o Brasil é um país miscigenado onde não existe racismo, mas que este é um discurso protocolar, meramente formal, enquanto na prática existem mecanismos – como a imposição de custos e dificuldades processuais – que visam impedir o acesso ao sistema judiciário por parte dos ofendidos pelas injúrias raciais.
“Quem são os responsáveis pelos assassinatos recorrentes de pretos e pobres no Brasil?”, pergunta Cássio Faeddo. “A violência instrumentalizada parece ter tomado conta do país, ora por ações do Estado, ora por prepostos de empresas privadas, e mesmo entre particulares. Mas quais não seriam as raízes do racismo estrutural senão o arcabouço jurídico perverso criado pelos legisladores para terrificar os mais pobres”.
O advogado lembra que os autores do homicídio do homem negro em Porto Alegre em loja do Carrefour eram funcionários de uma empresa de segurança terceirizada. Ele explica como a reforma trabalhista levou à precarização do trabalho desses funcionários e seu consequente despreparo. “Mas não foram seguranças assassinos que legitimaram a terceirização irrestrita. Quem negou o racismo, interpretou lei a favor de poderosos e legislou para interesses da elite? Temos então, mais concentração de renda, e o pobre, temeroso, mais pobre. Portanto, todas as forças políticas têm responsabilidade pelo racismo, preconceito, pobreza, má distribuição de renda, e por nossas tragédias de cada dia”, conclui Cássio Faeddo.