MP estadual e federal, Semad e Alego investigam denúncia de captação de água do Rio Araguaia para resort de fundador da JBS
22 setembro 2024 às 00h00
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O Jornal Opção publicou, com exclusividade, no domingo,15, uma reportagem que denuncia uma suposta captação irregular de água do Lago Rico, formado naturalmente pelas águas do Rio Araguaia. De acordo com um vídeo que circula nas redes sociais, feito por um pescador da região, a captação de água estaria sendo destinada a uma mega represa construída em um resort, na fazenda de propriedade do Sr. Zé Mineiro, fundador do Grupo JBS, localizada no município de Aruanã, Goiás.
Segundo o pescador, a água está sendo desviada por um túnel subterrâneo, que só pode ser notado ao se olhar de perto. A reportagem entrou em contato com autoridades estaduais e federais para esclarecer de quem é a responsabilidade pela fiscalização e emissão de outorga para o uso da água, e para saber quais medidas serão tomadas, visto que nenhum órgão, seja federal ou estadual, emitiu qualquer documento autorizando a retirada de água ou a construção de um empreendimento de grande porte que possa causar impactos ambientais.
Ministério Público de Goiás
Procurado pela reportagem, o promotor Luan Vitor de Almeida, responsável pela comarca de Aruanã, destacou que, nos termos da Lei Complementar 140/2011, a competência para fiscalização ambiental é concorrente. “Qualquer ente federativo que tiver conhecimento de uma eventual degradação ambiental tem o poder-dever de tomar providências para impedir a continuidade”, afirmou.
Luan Vitor enfatiza que foi instaurado na Promotoria de Justiça um processo extrajudicial para investigar os fatos relatados. “Dentro desse procedimento, o Promotor de Justiça determinará que seja oficiado os órgãos competentes para efetuar a fiscalização no local”. Assegura.
O promotor ainda citou o artigo e os incisos que tratam do tema:
Art. 17. Compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada.
§ 1º Qualquer pessoa legalmente identificada, ao constatar infração ambiental decorrente de empreendimento ou atividade utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores, pode dirigir representação ao órgão a que se refere o caput, para efeito do exercício de seu poder de polícia.
§ 2º Nos casos de iminência ou ocorrência de degradação da qualidade ambiental, o ente federativo que tiver conhecimento do fato deverá determinar medidas para evitá-la, fazer cessá-la ou mitigá-la, comunicando imediatamente ao órgão competente para as providências cabíveis.
§ 3º O disposto no caput deste artigo não impede o exercício pelos entes federativos da atribuição comum de fiscalização da conformidade de empreendimentos e atividades efetiva ou potencialmente poluidores ou utilizadores de recursos naturais com a legislação ambiental em vigor, prevalecendo o auto de infração ambiental lavrado por órgão que detenha a atribuição de licenciamento ou autorização a que se refere o caput. (Vide ADI 4757).
Luan Vitor esclarece que a ausência de outorga, por si só, caracteriza infração administrativa, nos termos da Política Nacional de Recursos Hídricos (https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9433.htm). Ele ressalta que, para apurar eventuais crimes ambientais, é necessário verificar se alguma atividade que exija licenciamento ambiental ou outro tipo de autorização está sendo desenvolvida, bem como se ocorreu algum dano ambiental, mesmo que a atividade estivesse devidamente licenciada.
“Assim, só é possível afirmar a ocorrência de crime após a devida investigação. Além disso, em Goiás, temos a Política Estadual de Recursos Hídricos’, concluiu.”
O promotor cita algumas Lei vigentes
A Cobrança Pelo Uso dos Recursos Hídricos pode ser consultada aqui link, assim como a Resolução de Outorga CERHi, acessível aqui.
Art. 49. Constituem infrações às normas de utilização de recursos hídricos, superficiais ou subterrâneos: I. Derivar ou utilizar recursos hídricos para qualquer finalidade sem a respectiva outorga de direito de uso; II. Iniciar ou implantar empreendimento relacionado à derivação ou utilização de recursos hídricos que altere o regime, a quantidade ou a qualidade deles, sem autorização dos órgãos competentes; III. (VETADO); IV. Utilizar-se dos recursos hídricos ou realizar obras ou serviços relacionados sem observar as condições estabelecidas na outorga; V. Perfurar poços para extração de água subterrânea ou operá-los sem a devida autorização; VI. Fraudar medições dos volumes de água utilizados ou declarar valores diferentes dos medidos; VII. Infringir normas estabelecidas no regulamento desta Lei e nos regulamentos administrativos emitidos pelos órgãos competentes; VIII. Obstar ou dificultar a ação fiscalizadora das autoridades no exercício de suas funções.
Art. 50. A infração de qualquer disposição legal ou regulamentar referente à execução de obras e serviços hidráulicos, derivação ou utilização de recursos hídricos, ou ao não atendimento de solicitações, sujeitará o infrator, a critério da autoridade competente, às seguintes penalidades, independentemente de sua ordem de enumeração (conforme redação dada pela Lei nº 14.066/2020): I. Advertência por escrito, com prazos estabelecidos para correção das irregularidades; II. Multa, simples ou diária, proporcional à gravidade da infração, variando de R$ 100,00 a R$ 50.000.000,00 (de acordo com a Lei nº 14.066/2020); III. Embargo provisório, por prazo determinado, para execução de serviços e obras necessárias ao cumprimento das condições de outorga ou normas relativas ao uso, controle e proteção dos recursos hídricos; IV. Embargo definitivo, com revogação da outorga, para restabelecer o estado original dos recursos hídricos, leitos e margens, conforme os arts. 58 e 59 do Código de Águas, ou tamponar poços de extração de água subterrânea.
§ 1º Caso a infração cause prejuízo a serviço público de abastecimento de água, riscos à saúde ou à vida, perecimento de bens ou animais, ou prejuízos a terceiros, a multa nunca será inferior à metade do valor máximo previsto. § 2º Nos casos dos incisos III e IV, além da multa, o infrator será responsável pelas despesas em que a Administração incorrer para implementar as medidas previstas, conforme os arts. 36, 53, 56 e 58 do Código de Águas, sem prejuízo de indenização pelos danos causados. § 3º Cabe recurso à autoridade administrativa competente contra as sanções previstas neste título, conforme regulamento. § 4º Em caso de reincidência, a multa será aplicada em dobro.
O promotor observa que o Ministério Público pode acionar os órgãos ambientais e/ou a delegacia para que adotem as providências cabíveis e, se necessário, tomar medidas judiciais para impedir ou reparar o dano e responsabilizar os responsáveis.
Ao ser questionado sobre a responsabilidade pela construção de empreendimentos que possam causar impactos ao meio ambiente, o promotor esclarece que, conforme a página de credenciamento de municípios para licenciamento ambiental (link), o município de Aruanã está listado como “atuação supletiva”, que é a ação de um ente federativo substituindo outro quando este não tem condições de realizar determinada função.
Desse modo, a SEMAD é o órgão responsável pelo licenciamento ambiental de empreendimentos no município. “Diante da constatação de danos ambientais, os órgãos ambientais têm o poder-dever de agir administrativamente para impedir a continuidade da degradação. Ademais, dependendo do caso concreto, pode ser cabível uma atuação nas esferas criminal e cível (tanto judicial quanto extrajudicial)”, observa Luan Vitor.
Ele também destaca que a Administração Pública pode ser responsabilizada por omissão na fiscalização de crimes ambientais, conforme entendimento consolidado pelo STJ (https://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional/index.php/sumstj/article/download/12730/12823).
Sobre as denúncias de canos e pivôs utilizados ao longo do rio para a retirada de água, o promotor explica que, “dependendo do caso concreto, essas denúncias podem justificar ações cíveis e/ou criminais. (Medidas como, por exemplo, requisitar fiscalização ou articular uma operação).”
Luan Vitor ainda ressalta que, no caso de uma obra que esteja causando danos ao meio ambiente, seja ela em andamento ou finalizada, ela pode ser embargada ou até mesmo desfeita. “Dependendo das irregularidades constatadas, se não houver possibilidade de regularização, o caso será de embargo, seguido do desfazimento da obra, com a devida reparação do dano ambiental”, afirma.
O promotor também menciona que é possível obter outorga com finalidades econômicas, como nos casos de irrigação com pivôs, geração de energia elétrica, atividades industriais, entre outros. “Portanto, só é possível afirmar a ocorrência de crime após a devida investigação”, conclui.
Ministério Público Federal
Por meio de sua assessoria, o MPF informou que já está investigando a situação mencionada e, no momento, está avaliando as próximas medidas a serem adotadas. Qualquer atualização sobre a atuação do MPF no caso será comunicada oportunamente.
Comissão de Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás
A reportagem entrou em contato com a presidente da Comissão de Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás, deputada Rosangela Rezende (AGIR). Em nota, a deputada afirmou que a comissão tomará as devidas providências em relação ao caso e apresentará um requerimento à Semad solicitando esclarecimentos.
Nota na Íntegra:
Conforme o Art. 45 do Regimento Interno, as atribuições da Comissão de Meio Ambiente e Recursos Hídricos abrangem os seguintes campos temáticos e competências:
Equilíbrio Ecológico: Promover a preservação do meio ambiente e da qualidade de vida das populações urbana, rural e indígena.
Recursos Naturais: Atuar nas questões relacionadas a florestas, caça e pesca.
Águas: Monitorar cursos d’água, águas represadas e subterrâneas.
Estudos e Soluções: Realizar estudos para a solução de problemas que afligem a flora e a fauna, com ênfase na preservação do cerrado.
Em conformidade com o Art. 45 do Regimento Interno da Assembleia Legislativa, os cursos d’água, águas represadas e subterrâneas constam como campo temático da Comissão de Meio Ambiente. Portanto, cabe à Comissão solicitar informações à Secretaria sobre a denúncia dos pescadores da região do Rio Araguaia.
A Comissão de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, por meio de sua presidente, Deputada Rosângela Rezende, apresentará um requerimento à SEMAD (Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável) pedindo informações sobre a denúncia de captação irregular do Rio Araguaia e Lago Rico, conforme a matéria publicada no Jornal Opção no dia 15 de setembro de 2024.
Diante da situação apresentada, tomaremos as devidas providências em relação à denúncia. Coloco à disposição um canal para a formalização de outras denúncias que agridem nosso meio ambiente, em especial o Cerrado, na página oficial da Assembleia Legislativa, na página da Comissão de Meio Ambiente, no espaço “Fale Conosco” do portal (https://portal.al.go.leg.br/contatos/comissoes/7) ou pelo telefone (62) 3221-3045.
Especialista em Direito Ambiental
De acordo com a advogada, professora e especialista em direito ambiental, Luciana Lara Sena Lima, a emissão de outorga para o uso das águas de lagos formados por rios pode ser responsabilidade da ANA (Agência Nacional de Águas), da Semad (Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável), ou de ambos os órgãos.
“Os dois órgãos podem conceder a outorga, conforme o artigo 14 da Política Nacional de Recursos Hídricos, que estabelece que esta se dará por ato da autoridade competente do Poder Executivo Federal, dos Estados ou do Distrito Federal”, afirma. A advogada cita o inciso 1º do artigo 14: O Poder Executivo Federal pode delegar aos Estados e ao Distrito Federal a competência para conceder outorga de direito de uso de recursos hídricos de domínio da União.
A especialista explica que, dependendo da atividade econômica a ser desenvolvida e do potencial de danos ao meio ambiente, a competência para conceder a outorga é atribuída ao órgão federativo responsável.
Ela ressalta que o artigo 6º da Lei Complementar 140/2011 estabelece que as ações de cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem ser desenvolvidos de modo a atingir os objetivos previstos no artigo 3º e garantir o desenvolvimento sustentável, harmonizando e integrando todas as políticas governamentais.
Quanto às responsabilidades ambientais, o artigo 225, § 3º da Constituição Federal, estabelece que as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, sejam pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
Em relação à obtenção de outorga para o uso da água para fins econômicos, Luciana Lara esclarece que, segundo o artigo 20 da Política Nacional de Recursos Hídricos, será cobrada a utilização dos recursos hídricos sujeitos à outorga, conforme o artigo 12 da mesma lei.
Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico
A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), por meio de sua assessoria, reafirmou que não há nenhum pedido de outorga relacionado à propriedade mencionada, atribuindo a responsabilidade à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad).
A agência esclareceu que não tem competência sobre o assunto, nem sobre o lago em questão. Quando questionada pela reportagem se realmente não possui responsabilidade, a ANA reforçou: “Reiteramos que esta não é uma atribuição da União, mas sim do governo estadual.”
Semad
Na primeira reportagem, a Semad enviou uma nota que será repostada.
Veja a nota na íntegra:
“A propósito das informações solicitadas pelo Jornal Opção, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável informa que enviou uma equipe para a região e que esses servidores já estão no local.
A secretaria está verificando se as atividades econômicas estão em conformidade com a licença emitida pela Semad para a propriedade, que é de criação de gado em confinamento, e se está sendo captada água do lago que alcança o Rio Araguaia.
A propriedade não tem outorga do estado para usar recursos hídricos de lagos da região, apenas a outorga da Agência Nacional de Águas (ANA) para captar água do Araguaia. A Semad terá novas informações quando a equipe retornar da operação de campo.”
Em resposta a esta reportagem, a Semad esclareceu que a equipe já retornou da visita à área mencionada e, assim que concluir o relatório, informará o Jornal Opção.
Seca e Uso Irresponsável Ameaçam o Rio Araguaia e sua Biodiversidade
Para o Doutor em Ecologia, professor do Instituto Federal de Goiás – Águas Lindas, Dr. Herick Soares de Santana, o Rio Araguaia, um dos mais importantes corpos d’água do estado de Goiás, está enfrentando uma grave crise ambiental. “Um rio, sendo um ecossistema aquático, depende de diversas interações, tanto internas quanto externas. Qualquer perturbação pode gerar danos à fauna, à flora e a toda a biota local”, alerta.
Atualmente, o Rio Araguaia sofre com um intenso período de estiagem, exacerbado pelas mudanças climáticas. “A seca que enfrentamos é, em grande parte, resultado do uso irresponsável dos recursos naturais”, afirma.
Para ele, além disso, outros impactos, como a retirada excessiva de água, desmatamento, poluição e uso inadequado do solo, estão causando danos que podem ser irreversíveis para os ecossistemas aquáticos da região.
O Araguaia é reconhecido por sua rica biodiversidade, incluindo espécies endêmicas e ameaçadas de extinção. “Mesmo sendo um portal turístico e um sistema estratégico para a matriz hídrica do Brasil, as medidas de proteção têm se mostrado ineficazes”, lamenta. A seca extrema já expôs peixes mortos no leito seco do rio e regiões anteriormente navegáveis agora estão secas, colocando ainda mais pressão sobre a fauna e flora locais.
Um dos principais problemas apontados é o uso privado e abusivo da água do rio, que deveria ser um recurso coletivo. “O Araguaia é fonte de renda para milhares de famílias, além de prover alimento e água diretamente para essas comunidades”, lembra. No entanto, acrescenta o professor, “os maiores impactos são causados por poucos empresários, enquanto as consequências recaem sobre todos que dependem do rio, principalmente os que vivem nas proximidades.”
Dr Herick ressalta que quem acompanha o Rio Araguaia há décadas nota as mudanças drásticas. “A falta de matas ciliares é evidente, assim como o assoreamento, que está causando sérios danos ambientais”, pondera.
A situação do Araguaia reflete um problema que vai além de suas margens: a gestão inadequada dos recursos naturais e a necessidade urgente de ações de preservação efetivas para evitar o colapso ambiental desse e de outros ecossistemas no Brasil.
Vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=xZPuwhSCyBE
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