Monitoramento paralelo do coronavírus é mais confiável que o oficial

14 junho 2020 às 00h00

COMPARTILHAR
Iniciativas de voluntários, como o Brasil.IO, exibem dados das secretarias de estado de Saúde sem o risco de apagão ou interferência política

Os dados da epidemia no Brasil já foram divulgados pelo Ministério da Saúde em quatro horários diferentes. Recentemente, a plataforma digital que disponibiliza os números saiu do ar, foi simplificada, omitiu o número total de casos e total de óbitos, bem como deixou de computar o número de mortos consolidados em outros dias. O ex interessado no cargo de ministro da Saúde, Carlos Wizard, afirmou que pretendia recontar o número de mortes causadas pela Covid-19 por acreditar que os dados atuais são “fantasiosos ou manipulados”.
Com a credibilidade da contagem oficial em cheque, ganharam importância as iniciativas paralelas ao Governo para divulgar e visualizar informações. Embora sejam dados de interesse público e, por lei, devam estar acessíveis, diversos obstáculos impedem que a dimensão da pandemia chegue ao entendimento comum. Os números são divulgados pelas 27 Secretarias de Saúde Estaduais em formatos e estrutura diferentes, havendo pouca padronização entre os relatórios emitidos. Além disso, o número de registros é imenso e são necessárias habilidades em programação para se extrair conclusões importantes.
Para resolver estes problemas, o site Brasil.IO, que existe desde 2018, realiza o processo de de capturar, converter, limpar e estruturar as informações. Álvaro Justen e contribuidores voluntários já “libertaram informações” acerca de quadros societários de empresas brasileiras, das eleições no país desde 1996, e de outros fatos de interesse público. Desde março, a equipe vem coletando informações referentes à pandemia no Brasil.
Álvaro Justen é programador e analista de dados. A força-tarefa conta com 40 voluntários – de jornalistas, mestrandos, doutorandos, programadores – profissionais de diversas áreas que acreditam ser importante que os dados estejam abertos e disponíveis. Os colaboradores diariamente compilam e apuram os boletins epidemiológicos das Secretarias Estaduais de Saúde. Há um protocolo de checagem automático e manual que confere se os dados inseridos condizem com a população da cidade e com o histórico de óbitos.

Outras informações que não vieram das Secretarias de Saúde enriquecem o entendimento da Covid-19 no país, como informações acerca do auxílio emergencial – quase 54 milhões de brasileiros recebem o benefício – e os óbitos registrados em cartório, dados que vêm do registro civil.
“Os dados do Ministério da Saúde (MS) são defasados em relação aos nossos”, afirma Álvaro Justen. “As secretarias enviam os dados ao MS, que compila e atualiza suas publicações. Nós nos baseamos diretamente nos boletins das secretarias”. Embora a defasagem atualmente seja de poucas horas ou dias, coletar material diretamente das Secretarias de Saúde estaduais se mostrou fundamental no dia 5 de junho, quando houve o que ficou conhecido como o apagão dos dados.
Supremo Tribunal Federal determinou no dia 8 de junho que o Governo voltasse atrás e divulgasse os números completos, mas por três dias, o MS passou a divulgar apenas os óbitos do dia confirmados como Covid-19, omitindo as mortes de dias anteriores que não foram prontamente diagnosticadas. Caso a pedalada funerária tivesse sido mantida, estima-se que sete mil mortos desapareceriam ao longo de nove dias.
Consequências a nível internacional aguardam países que não são transparentes com seus dados. A Rússia de Vladimir Putin foi obrigada pela pressão externa a recontar seus mortos. Ao exibir uma taxa de mortalidade curiosamente baixa (1,3% dos infectados, uma das menores do mundo), o país, que tem histórico de opacidade, levantou suspeitas. Após a recontagem, o número de óbitos registrados na capital, Moscou, mais que dobrou, de 639 para 1 561.
“No apagão do último fim de semana, nós percebemos que o Ministério da Saúde publicou o número de mortes errado. Dias depois eles corrigiram, mas nosso boletim, que sai todos os dias às 8 p.m., continuou reportando o número de óbitos pelo método original”, afirma Álvaro Justen. Por conta da constância mais confiável das publicações, Álvaro Justen afirma que diversas instituições governamentais utilizam os dados da Brasil.IO como fonte para embasar decisões de políticas públicas e projetos de lei, e não o próprio MS.

“Acompanhamos a pandemia desde 20 de março e, desde então, publicamos o número de casos em todos os municípios brasileiros. O MS começou a publicar as informações específicas para as cidades 2 meses depois de termos começado a fazer isso”, diz Álvaro Justen. As informações regionalizadas são fundamentais para que gestores criem políticas públicas eficientes.
Álvaro Justen afirma que, devido a proporção do país, não é possível olhar para o Brasil e tentar achar um pico de contágio do novo coronavírus. “A pandemia acontece de maneira diferente pelas várias regiões. Existem lugares onde a situação começou a piorar agora, em outros, a transmissão já está se estabilizando. Analisar o Brasil como um todo é mascarar coisas que acontecem a nível regional”, diz o programador e analista de dados.
A falta da compreensão da doença a nível local faz com que tentativas de se adotar quarentena ou reabrir atividades comerciais sejam um tiro no escuro. Gestores públicos precisam compreender onde estão no gráfico da curva de contágio. O histórico dos óbitos em cada cidade brasileira, desde antes da pandemia, também está presente na plataforma.
Qualidade de informações
Outra contribuição do Brasil.IO é a colaboração com secretarias estaduais. A iniciativa que auxilia os órgãos públicos a produzir documentos que sejam fáceis de se acessar e tenham estrutura uniforme, para que possam ser mais facilmente estudados por analistas de informação. “Tiramos dúvidas dos técnicos das secretarias para ajudar a publicar os dados da melhor maneira possível”, diz Álvaro Justen.
A falta de padronização não acontece somente na pandemia, explica o programador, embora a demanda de se publicar relatórios todos os dias tenha sobrecarregado os órgãos de saúde. “A falta da estruturação dos dados se deve a um despreparo das pessoas responsáveis para lidar com esses dados”.