Militares e cientistas políticos analisam tensão entre Rússia e Ucrânia

06 fevereiro 2022 às 00h00

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Especialistas duvidam que haverá conflito direto entre as tropas, mas a crise deve resultar em sanções comerciais graves contra o regime Putin

Desde o dia 5 de dezembro, a movimentação de 175 mil soldados russos na fronteira com a Ucrânia foi percebida por satélites. Além das tropas, a Rússia mobilizou tanques, artilharia e equipamentos para uma possível invasão. Então, o secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Jens Stoltenberg, anunciou no dia 30 de janeiro um pacote de sanções às atividades econômicas russas, caso Moscou use a força para invadir a Ucrânia.
A Ucrânia não faz parte da Otan, mas é um país vizinho com fortes relações comerciais e tem importância estratégica. Biden definiu o possível pacote de sanções como “sem precedentes”, enquanto que Putin posicionou que tal medida seria um “erro colossal” que poderia levar ao rompimento completo das relações no eixo russo-americano. Na prática, tratam-se de leis que atingem toda e qualquer empresa que desempenhe atividades de interesse para o governo de Vladimir Putin.
O Reino Unido, membro da Otan, comunicou por meio da ministra das Relações Exteriores britânica, Liz Truss, que: “Não haverá nenhum lugar onde os oligarcas russos possam se esconder”, no dia 30 de janeiro. Neste momento, tropas americanas e canadenses se acumulam no interior da Ucrânia, enquanto a presença Russa continua suas atividades do outro lado da fronteira.
A concentração de forças
Antônio Caiado é um goiano que vive nos Estados Unidos e se uniu ainda jovem ao exército americano, o US Army. Já foi enviado duas vezes ao Afeganistão e atualmente trabalha lotado na 36ª divisão de infantaria como senior advisor na proteção de forças. O sargento de primeira classe tem a função analisar a situação de tropas e produzir relatórios com intenção de proteger as forças americanas em todo o mundo, inclusive na europa.

“Acompanho a situação na Europa há muito tempo”, diz Antônio Caiado. “Acredito que a Ucrânia esteja sendo usada pela Rússia por ser o país mais frágil da região, já que seus vizinhos têm melhores relações com o oeste – Lituânia, Romênia e Polônia. A Ucrânia é um alvo mais fácil além de ser fora da esfera da zona de influência russa”.
Antônio Caiado explica que a Lituânia, por exemplo, tem alguns dos caças americanos mais avançados, o F-35 ; a Romênia e Polônia possuem bases militares com presença de mais de 4.500 tropas americanas; e a Ucrânia não conta com esse tipo de proteção. Em território ucraniano, existem apenas oficiais americanos que fazem treinamento e dão instruções de rotina. “Em 1950, existiam quase 400 mil militares na Europa, hoje são menos de 30 mil”, ele afirma.
Uma das exigências de Vladmir Putin é que as bases militares sejam retiradas da região. “O que a Rússia quer é impedir a defesa de seus países vizinhos. Em 2017, os EUA começaram a vender equipamentos para a região”, diz Antônio Caiado. “A Romênia foi a primeira a adquirir o sistema antimísseis Patriot, que foi instalado em 2021, e tem mais três em negociação”. O Patriot (MIM-104) é um sistema de defesa aéreo de longo alcance, capaz de atuar em todas as altitudes e em todos os climas para combater mísseis balísticos táticos.
Vai haver guerra?
Cerca de 40% do gás natural consumido na Europa vem da Rússia.
Apesar do aumento da tensão, Antônio Caiado aposta que não haverá guerra direta. “Precisamos entender que o objetivo da Rússia já foi conquistado. Cerca de 40% do gás natural (gás liquefeito de petróleo, GLP) consumido na Europa vem da Rússia. As ameaças geraram uma instabilidade que elevou o preço do GLP em 17%. O medo da invasão da Ucrânia é muito menor do que o medo de que, em função de uma guerra, Putin possa cessar o fornecimento do gás que aquece todas as casas na Europa”.
Essa é a Razão, segundo Antônio Caiado, pela qual não vemos importantes membros da Otan se pronunciarem. “A ducto que leva o gás à Europa passa por dentro da Alemanha, o Nord Stream 2, e não vemos pronunciamento algum de seu chanceler. Mesmo as reprimendas da Otan são relativamente brandas, sem promessa de conflito armado”.
Antônio Caiado comenta que, como a Alemanha é um dos maiores defensores da green energy, eletricidade gerada por meios ecologicamente limpos, não há para onde correr. A instabilidade não vem apenas do fornecimento de gás, ele lembra. A Rússia também mantém submarinos próximos a cabos de transmissão de dados próximos à Ucrânia e ao Alasca.
“Quando se começa uma guerra, não existe saída fácil. É catastrófico ter de retirar suas forças, então há muita hesitação do oeste à ideia de entradas terrestres. Os EUA nunca vão colocar tropas em solo para competir homem a homem; acredito que as próximas guerras devem ser voltadas ao espaço, drones, comunicação, sanções econômicas”.

Geopolítica e economia internacional
José Paulo Silva Ferreira é pesquisador assistente do Núcleo de Estudos Globais da Universidade Federal de Goiás (UFG) e atua na área de Economia Política Internacional. Sobre a eficácia das sanções, o pesquisador afirma: “Deve haver um agravamento dos desafios macroeconômicos enfrentados pela Rússia desde a invasão da Criméia em 2014. Com a Rússia impedida de acessar os mercados e serviços financeiros do Ocidente, ocorrerá depreciação do rublo, a moeda russa, o que os forçará a elevar a taxa de juros. Os impactos serão sentidos principalmente no setor do petróleo e, poderá haver recessão na Rússia. A função das sanções da Otan, ou ao menos de suas discussões, é preventiva, buscando evitar a investida militar, mas caso realmente ocorra, mesmo com as sanções, dificilmente haverá recuo da Rússia.”
Do ponto de vista ucraniano, José Paulo Silva Ferreira afirma que o presidente Volodymyr Zelensky se encontra em uma posição bastante desconfortável. “Mesmo sendo o líder de um país com pequenas capacidades militares, ele precisa gerenciar as relações com uma potência com histórico intervencionista como a Rússia. Embora conte com a cooperação da Otan, a Ucrânia não é Estado membro da organização, sendo apenas um aliado, ou seja, não existem obrigações vinculantes de apoio com tropas. Além disso, caso essas tensões momentâneas sejam superadas, ele ainda terá que lidar com uma ameaça interna, os grupos separatistas.”
“Zelensky está ciente do risco de anexação ou de ruptura democrática, o que tornaria a Ucrânia um Estado fantoche de Moscou. Assim, buscando não inflamar a Rússia, ele agradeceu pelo apoio do Ocidente, mas pediu cautela, principalmente dos EUA, para não criarem pânico. O melhor interesse para a Ucrânia é o que o presidente Zelensky já tem feito, que é adotar uma postura pragmática e cooperativa, buscando atenuar o embate. Seu objetivo é garantir a soberania nacional, mas ao mesmo tempo, não abrir mão de se integrar posteriormente ao sistema de segurança coletiva da Otan.”

Da perspectiva russa, José Paulo Silva Ferreira explica que o principal objetivo é obter garantias legais de que ex-países membros da União Soviética não integrarão a Otan, uma aliança militar formada durante a Guerra Fria justamente para enfrentar Moscou. Quanto aos EUA e seus aliados, o objetivo é seguir uma pauta liberal de segurança coletiva e difusão de valores, porém ela esbarrou na agenda realista da Rússia, que toma como prioridade a questão securitária e a política de poder.
“Definitivamente não está nos planos de Biden um enfrentamento militar com a Rússia. Desde a campanha ele apresenta uma postura de defesa do multilateralismo, enfatizando instituições como a ONU e o G20, além do abandono de guerras do passado. Ademais, considerando que 2022 é ano das eleições legislativas nos EUA, uma nova crise com a Rússia não seria interessante, pois impactaria na popularidade, podendo levar a perda da maioria do partido Democrata no Congresso. Dessa forma, o mais provável é o estabelecimento de um acordo, mesmo que de caráter temporário, e o recuo de tropas. Caso Moscou persista com a investida, o embate com Washington se dará no campo financeiro por meio de sanções, na área política através das instituições internacionais e de assistência militar à Ucrânia pela disponibilização de recursos.”