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Tendo como base o aspecto dramático do maior acidente radiológico do país, antropóloga goiana dá uma nova visão às narrativas do evento que mudou a história de Goiás

Foto mostra funcionário da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) removendo o que antes eram objetos pessoais das vítimas, mas que se tornou lixo radioativo
Foto mostra funcionário da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) removendo o que antes eram objetos pessoais das vítimas, mas que se tornou lixo radioativo

Marcos Nunes Carreiro

Peter Szondi, um dos mais consagrados teóricos da literatura mundial, define, em linhas gerais, o drama moderno como sendo uma sucessão temporal que não se esgota e guarda as características de um pequeno sistema saturado de tensões. Isto é, para o pensador húngaro, o drama, ao menos o literário, é contínuo em seu próprio sistema, além de que deve ser formado por tensões próprias, pois, ao contrário, não conseguirá gerar o efeito dramático necessário à obra.

Esse conceito, obviamente, trata de gêneros da literatura, sendo que o drama social, aquele mais próximo à sociedade em que vivemos, adquire outros conceitos. Contudo, embora a teoria literária tenha uma aplicação es­pecífica, a própria literatura pode nos auxiliar no entendimento de algumas questões que extrapolam as capas dos livros. Certa vez, ouvi de uma mulher que passou por anos de conflitos civis na África, que sobreviventes de guerra não têm sonhos. Tal constatação é, no mínimo, dramática, pois a palavra “sonho”, usada por ela no significado de perspectiva, atribui ao ser humano grande parte de seu sentido de vida.
Mas, se a afirmação possui uma grande carga dramática, ela tam­bém é compreensível, uma vez que guerra é um evento catastrófico — catástrofe pode ser definida como algo que aglomera um sentido de ruptura profunda, absoluta e que compreende tanto as situações históricas de extrema violência, caso das guerras, quanto a unidade narrativa do testemunho, como observado na afirmação da sobrevivente dos conflitos africanos.

Porém, não somente as guerras são eventos catastróficos geradores de tensões, que, por sua vez, estimulam a criação de narrativas. Tais tensões, muito menos, estão longe da sociedade em que vivemos atualmente. É o que mostra a goiana Suzane de Alencar Vieira em seu livro “Césio-137, o drama azul: irradiação em narrativas” — lançado na última semana, em Goiânia. O livro é fruto da dissertação de mestrado defendida por Suzane na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2010, cujo objetivo principal foi entender porque o evento radiológico do césio-137 provoca ou incita a produção de narrativas desde 1987, ano do acidente.

O dia 13 de setembro de 1987 é marcado pelos jornais da época como o ponto inicial do acidente. Naquela data, a peça radiológica teria sido retirada do Instituto Goiano de Radiologia (IGR), então localizado onde hoje se encontra o Centro de Convenções de Goiânia, entre as avenidas Paranaíba e Tocantins. À época, o instituto estava abandonado e acabou despertando a curiosidade de dois moradores do Bairro Popular, adjacente ao prédio em ruínas: Roberto Santos Alves e Wagner Motta Pereira.

Temporariamente sem emprego, os dois encontraram, dentro do prédio abandonado, um aparelho radiológico contendo uma cápsula de césio-137, um elemento químico altamente tóxico. Roberto e Wagner viram naquela parafernália uma oportunidade de fazer dinheiro e levaram o aparelho para a casa do primeiro na Rua 57, onde romperam o invólucro de chumbo e perfuraram a placa de lítio que isolava as partículas radioativas do contato com o ambiente. Feito o serviço, venderam tudo para Devair Alves Ferreira, então dono de um ferro-velho na Rua 26-A, no Setor Aeroporto.

“Nas mãos de Devair”, narra Suzane, “a cápsula revelou um brilho azul fascinante em uma noite de setembro. Entusiasmado com sua descoberta, Devair divulgou na vizinhança o espetáculo da luz azul e distribuiu entre parentes, amigos e vizinhos alguns fragmentos do pó desprendidos do interior da cápsula. O césio-137, libertado da cápsula, passaria a circular silenciosamente pela vizinhança do Bairro Popular, Setor Aeroporto e Setor Norte Ferroviário, bairros da região central de Goiânia.”

O elemento se espalhou entre os dias 13 e 29 de setembro de 1987, data em que Maria Gabriela Ferreira, esposa de Devair, levou a cápsula à sede da Vigilância Sanitária por desconfiar de seu efeito destrutivo. Assim, somente a partir do dia 1º de outubro, o acidente começou a ser divulgado, gerando transtorno, perturbação e o início da composição progressiva de um drama que, segundo Suzane, foi vivido não apenas pelas vítimas, mas por todos os goianienses, sobretudo com as notícias das primeiras mortes.

No dia 23 de outubro morreram Maria Gabriela — que levou a cápsula à Vigilância Sanitária e permitiu que o acidente fosse identificado — e Leide das Neves Ferreira, a menina que se tornou símbolo da catástrofe radiológica de Goiânia. No dia seguinte, dia do aniversário de Goiânia, o então prefeito Joaquim Roriz e o governador Henrique Santillo anunciaram, em nota solene, que a cidade estava em luto oficial, cancelando todas as programações comemorativas da data.

O luto só terminou no dia 26 de outubro, data do enterro das duas vítimas. Essa data adquire importância ímpar na narrativa de Suzane, pois demonstra, mais do que todas as outras, que o drama é central na dinâmica do acidente radiológico, visto que, não apenas estende seus limites, “modulando sua intensidade e atualizando-o a cada nova narrativa” (p. 36), como identifica que os sentimentos, as relações e os lugares foram violentamente atingidos.
Isso ocorre porque o enterro simboliza o passo inicial dos eventos que se dariam a seguir, em que pessoas foram arrancadas de suas casas, “classificadas e isoladas, os lugares destruídos e todo patrimônio familiar transformado em lixo radioativo” (p. 58).

Enterro das primeiras vítimas se tornou símbolo dramático do acidente goianiense
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Funcionários da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) protegidos por roupas especiais durante os trabalhos. Estima-se que aproximadamente 700 pessoas da CNEN trabalharam em Goiânia, no ano de 1987

A escolha do dia 26 de outubro de 1987 como ponto chave no livro se dá pelo fato de mostrar o enterro das duas primeiras vítimas de um acidente nuclear que se imaginava distante da realidade de Goiânia. Relembrou-se, na data, o acidente nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, considerado um dos maiores da história e que havia ocorrido um ano antes. Além disso, a autora pontua (veja entrevista) que as duas mulheres atribuem ao evento uma carga simbólica muito grande, uma vez que, geralmente, as histórias são narradas do ponto de vista masculino.

Como a data do sepultamento de Maria Gabriela e Leide das Neves Ferreira tem uma importância singular no livro de Suzane de Alencar, deixaremos que a própria autora narre os acontecimentos do dia:

“No Cemitério Parque, onde seriam enterradas as vítimas, os técnicos faziam as últimas avaliações de segurança nas covas. Testavam a espessura da concretagem e instalavam os cordões de isolamentos. Após o anúncio sobre o pouso do avião da Força Aérea Brasileira (FAB) no aeroporto Santa Geno­veva, trazendo do Rio de Janeiro os caixões de Maria Gabriela e Leide das Neves, a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros iniciaram a intricada tarefa de transportar em segurança os pesados caixões de chumbo até o cemitério.

“Uma equipe do corpo de bombeiros escoltava os caixões em carros blindados, enquanto uma multidão enfurecida se aglomerava na porta do cemitério para impedir que o sepultamento se realizasse. A vi­zinhança do Setor Urias Ma­ga­lhães, onde se localizava o Ce­mi­té­rio Parque, temia que a energia radi­oativa do césio-137 se instalasse tão próximo aos seus quintais. Dirigen­tes da associação de moradores e um vereador [José Nelto (PMDB)] inflamavam a revolta. O cordão de isolamento era cerceado por um agitado e intimidador cordão humano. Os jornalistas se avolumavam no meio daquela tensa agitação popular. Pelo rádio das viaturas, policiais pediam reforço ao centro de operações da Polícia Militar.

“Quando o caminhão blindado assomou na rua do cemitério, um motim ruidoso começou o ataque lançando palavras de rechaço e protesto, que evoluíram para insultos. O caminhão ultrapassou o cordão de isolamento, venceu a resistência da multidão e seguiu em direção às duas covas. Pedras, torrões de barro, nacos de paralelepípedo, pedaços de cruzes eram atirados com fúria contra todo o aparato de veículos blindados e guindastes. Sob uma chuva de pedregulhos e estilhaços, os técnicos da CNEN [Comissão Nacional de Energia Nuclear] iniciavam a complicada operação de retirada dos caixões de chumbo que pesavam toneladas. Os poucos parentes das vítimas se escondiam atônitos na confusão para não se tornarem novos alvos da ira popular. A artilharia de pedras não parou nem mesmo quando os caixões desceram às sepulturas com a ajuda de guindastes. Os ruídos pavorosos daquela revolta tornaram inaudíveis as palavras do padre que tentava coordenar a tensa cerimônia de sepultamento. Ao invés do descanso do barro, da terra, os mortos se refugiavam no abrigo do chumbo e do concreto. O retorno cristão ao pó não lhes seria possível”.

Os marcos simbólicos: Leide das Neves 
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Uma das primeiras vítimas, Leide das Neves morreu aos seis anos de idade, após ingerir um pouco de césio-137 e se tornou o símbolo do acidente radiológico de Goiânia

Na medida em que as histórias vão sendo produzidas e recontadas ao longo dos anos, o modelo dramático vai ganhando mais solidez e os limites do evento vão sendo diluídos e alongados. Ao mesmo tempo, marcos simbólicos sobre o acidente vão sendo fixados e acabam tornando o modelo dramático mais consolidado. O principal símbolo dos acontecimentos do césio-137 é, sem sombra de dúvidas, Leide das Neves Ferreira, que, “enquanto símbolo, Leide das Neves, que concentra as referências de sua parentela, expande seu poder referencial, englobando a comunidade de vítimas e, finalmente, simbolizando o evento radiológico como um todo.”

A menina Leide adquiriu uma grande importância à medida que sua história foi sendo revelada. Na na­rração de Suzane de Alencar Vieira é possível identificar a força simbólica da contaminação da criança:

“Em outra rua contaminada, chamada Rua 6, no Setor Norte-Ferroviário, havia uma intensa agitação de técnicos no lote de Ivo Alves Ferreira, um dos irmãos de Devair, que também recebera a dádiva das pedras azuis. O trabalho de demolição precisava ser iniciado com urgência e os técnicos se adiantavam na avaliação. A casa apresentava aparência absolutamente trivial: a mesa do café ainda estava posta com cinco xícaras, cinco lugares, para Ivo, para sua esposa Lourdes, para os três filhos Lucélia, Lucimar e Leide. Mas os farejadores Geiger [aparelhos usados para medir o nível de radiação] percebiam uma mesa extremamente contaminada, sobretudo, no lugar reservado à filha caçula. Ali, Leide teria ingerido seu jantar com as mãos contaminadas depois de brincar com as luzinhas radioativas que seu pai havia trazido em uma noite de setembro. O cintilômetro havia disparado em um ruído estridente ao se aproximar do corpo da menina, na primeira visita do físico Walter Mendes nos últimos dias de setembro, após a ilusão das pedras brilhantes. A partir desses aparelhos, o césio tomava forma e realidade; poderia, então, ser detectado.

“Os técnicos observavam com assombro ininteligível o berço da menina que ainda ardia sobre algumas centelhas radioativas e precisava de um tratamento técnico especial para que a radiação ali concentrada em altos níveis não contaminasse ainda mais as outras partes da casa. As pedras radiativas conteriam um poder de anti-midas transformando tudo em lixo e ruínas.

“Todos queriam ver a casa da menina Leide das Neves e os jor­nalistas se antecipavam na co­bertura da operação demolição. Algo precisava ser salvo daquele conjunto condenado a virar pó e entulho radioativo. Alguma lembrança de Leide sobreviveria aos escombros? Sob os apelos comovidos da mãe da menina, Dona Lourdes, corroborados pelo jornalista Weber Borges, os técnicos salvariam um foto de Leide retirada do álbum da família ‘banhado de Césio’. Essa foto contaminada, mais tarde, seria reproduzida como o símbolo do acidente e das lutas das vítimas por seus direitos”.

A narrativa como processo contagioso
O livro de Suzane de Alencar foi lançado no fim da semana passada, em Goiânia
O livro de Suzane de Alencar foi lançado no fim da semana passada, em Goiânia

Os terceiro e quarto capítulos do livro de Suzane de Alencar Vieira podem ser considerados como os que têm o núcleo do pensamento da autora, pois analisam o drama em sua aplicação no evento e na temporalidade que permite que as narrativas dramáticas continuem sendo enunciadas.

No início do terceiro capítulo, chamado “A comunidade de sofrimento”, a antropóloga diz que o evento radiológico, convertido em drama, é capaz de afetar e envolver outras pessoas além das vítimas, visto que a profusão de narrativas que surgem constrói um campo público e coletivo concebido como uma “comunidade de sofrimento” na qual as experiências são comunicadas e compartilhadas. Nesse processo, segundo a autora, a narrativa organiza uma experiência de sofrimento e vincula o sujeito do relato a essa comunidade.

No caso do acidente radiológico de Goiânia, as pessoas são afetadas ao assumir um lugar no drama, que tem como uma de suas portas de entrada a disseminação de narrativas, isto é, histórias contadas sobre o acidente. E esse drama foi tensionado pelas práticas de controle sobre a produção e circulação das narrativas, exercido na época — 1987 — pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), cujo trabalho agiu no sentido de fazer com que o vocabulário técnico predominasse sobre as manifestações emotivas que arrebatavam um público amplo, difundindo o medo e a angústia da contaminação radiológica.

Assim, o “contágio” surge como uma forma metafórica pela qual se expressa a difusão dramática do evento e o modo como os relatos afetam as pessoas. Ou seja, como o césio-137, as narrativas sobre o acidente também irradiavam as pessoas. E continuam irradiando, pois “a metáfora da contaminação constitui o modo emocional através do qual o sofrimento é traduzido” (p. 117), logo, é possível dizer que as narrativas acerca do acidente do césio-137, ao provocarem uma experiência do drama, ampliam essa experiência de sofrimento fazendo com que ela se torne comunicável.

Dessa forma, devido a esse caráter contagiante das narrativas dramáticas, o leitor pode ser também absorvido pelo drama, que contagia quem não participou diretamente dos fatos em 1987 — caso da própria Suzane —, mas também reabilita o sofrimento das vítimas, promovendo o engajamento emocional dos sujeitos nesse processo. Parte daí, por exemplo, a criação de entidades constituídas para tratar das consequências do acidente, como a Associação de Vítimas do Césio-137 e a Superintendência Leide das Neves (Suleide). Ou seja, provoca certo engajamento político.

“O acidente com o césio-137 nos faz lidar com a própria vulnerabilidade do ser humano”
Antropóloga Suzane de Alencar Vieira: “A narrativa do sobrevivente é muito difícil, pois o processo é lento e dói. É uma barreira que está sendo rompida”
Antropóloga Suzane de Alencar Vieira: “A narrativa do sobrevivente é muito difícil, pois o processo é lento e dói. É uma barreira que está sendo rompida”

A jovem antropóloga Suzane de Alencar Vieira não é apenas uma pesquisadora dedicada e uma escritora perspicaz. Sentada em vota de uma mesa de vidro e base de madeira, disposta no centro do hall de entrada de seu apartamento, no Setor Pedro Ludovico, a autora conversou longamente com a reportagem.

Suzane conta que, quando partiu para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sua intenção não era pesquisar acerca do acidente radiológico de Goiânia. Ela atribui a isso o fato de que, goianiense que é, nunca havia prestado a devida atenção ao evento. “Somente quando vi o caso com um olhar estrangeiro, percebi a riqueza que poderia ser explorada”, diz.
Suzane terminou seu mestrado em 2010 e, desde então, é doutoranda no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cujo objeto ainda é, de certo modo, a atividade nuclear no Brasil, mas agora tendo como centro as políticas da natureza no alto sertão baiano. E nesse novo projeto, ela continua exercitando aquilo que colocou em prática quando da pesquisa sobre o evento de Goiânia.

Afinal, a antropologia é um tipo de disciplina que possibilita uma experiência de conhecimento a partir de uma vivência empírica, subjetiva, a partir de determinado objeto de pesquisa. Suzane conta que, à época do acidente, morava em Goiânia, mas tinha apenas um ano, logo, não vivenciou o drama que relata em seu livro. Assim, foi necessário que tentasse tornar tudo o que escutava, via e lia sobre o acidente do césio-137 em uma experiência etnográfica.
O que isso significa? “Tomar isso como uma experiência real, pois isso te afeta. E a maneira como isso te afeta que é tomado como um procedimento intelectual de conhecimento. Eu me deixei afetar da maneira como o evento chegava até mim, que foi através de diversas narrativas: livros, documentários, filmes, etc. E eu quis problematizar o porquê de esse evento inspirar tanta produção narrativa e ficcional. E não era uma produção narrativa apenas nas décadas de 1980 e 1990, mas algo que se prolongava e que havia também uma produção discursiva até o presente”, relata Suzane.

Dessa forma, a necessidade de recorrer a narrativas não se deu apenas devido a não presença de Suzane à época dos acontecimentos, mas também porque elas são parte do evento, tendo funcionado como uma ajuda ao prolongamento do próprio evento. “Essas narrativas não são representativas, mas são partes constitutivas do próprio evento na medida em que se descobriam novas vítimas”, que, por sua vez, passaram a não apenas lutar por seus direitos como também a contar novas histórias sobre o evento.

Isso mostra, segundo Suzane, que ainda existe uma grande margem de indeterminação em relação ao acidente com o césio-137. Portanto, a autora ressalta que o acidente não pode ser sedimentado no passado, pois “nem tudo foi resolvido”. Além disso, o próprio efeito da contaminação radiológica ainda está presente, pois vemos a presença daqueles chamados de os “filhos e os netos do césio”, isto é, a descendência dos afetados pelo acidente radiológico.

Os desafios da escrita

Suzane de Alencar: “Foi muito difícil escrever. Exatamente por sempre esbarrar na convenção objetiva da linguagem técnico-científica.”
Suzane de Alencar: “Foi muito difícil escrever. Exatamente por sempre esbarrar na convenção objetiva da linguagem técnico-científica.”

Questionada sobre os desafios da pesquisa e, consequentemente, da publicação em forma de livro, Suzane afirma que encontrou certa dificuldade em escrever. “Preciso ser sincera. Foi muito difícil escrever sobre o evento”. A dificuldade foi encontrada na diferença das escritas acadêmica, mais burocrática, e literária, cuja abertura para uma apresentação escrita voltada para o próprio tema da pesquisa — o drama.

A autora analisa as convenções de escrita da seguinte maneira: “Enquanto aquilo que chamo de escrita dramática tenta mostrar a desagregação, a ruptura, isto é, aquilo que não é objetivo, dando também sugestões de aspectos não registrados do evento, a escrita técnico-científica está ligada ao bloqueio das tentativas dessas narrativas contagiarem, emocionarem as pessoas. Então, a forma de escrita também foi uma opção acadêmica na tentativa de que essa convenção etnográfica transformasse, inclusive, a convenção da escrita. Ou seja, trabalhei a escrita como um laboratório”, conta ela.

Em sua apresentação, logo após narrar um parte dos acontecimentos, a sra. diz: “O drama narrado na apresentação constitui apenas uma das versões possíveis sobre o evento radiológico do Césio-137”. É certo que o discurso é mutável e se desenvolveu ao longo desses quase trinta anos. Como foi lidar com essas ques­tões durante sua pesquisa?
Foi muito difícil escrever sobre o evento. Exatamente por sempre esbarrar na convenção objetiva da linguagem técnico-científica. E ela é uma cilada, na verdade, pois parte do princípio de que existe alguém que tenha uma verdade única e que é capaz de enunciá-la. E quem na nossa sociedade com autoridade para fazer algo assim? O discurso que se faz em nome da ciência. Se eu encarnasse esse discurso, eu poderia tentar fazer uma tradução eminentemente objetiva desses fatos. Porém, não existe uma versão oficial, logo, qualquer narrativa é válida. E foi isso que me encorajou a construir minha própria narrativa. E o interessante é que as histórias sobre o acontecimento com o césio alimentaram a criação ficcional de pessoas que estão em São Paulo, Manaus, ou seja, muitos distantes de Goiás, mas que foram impactadas de alguma maneira. Outra dificuldade foi esbarrar em questões políticas, sobretudo no que diz respeito a culpados e vítimas. Visando isso, eu tentei fazer uma narrativa que fosse uma rede extensa, sem cortar histórias ou narrativas, mas que colocasse todos os agentes cruciais dessa trama que foi sendo montada em torno do acidente.

A sra. diz no livro que sentiu, ao longo da pesquisa, uma mudança nos discursos das pessoas que entrevistou. Por que existem diferenças nos discursos das vítimas? Quais são as influências que geram essa mudança? A temporalidade é um deles?
A narrativa do sobrevivente é muito difícil, pois o processo narrativo é lento e dói, porque a experiência excede e não limita a nossa capacidade de traduzi-la e torná-la inteligível. Ou seja, entrevistar essas pessoas é pedir para que eles relembrem fatos que as machucaram. É como se elas tivessem uma grande barreira que a narrativa tenta romper. E isso dói. Alguns já conseguem falar sobre o assunto por ter um discurso pronto e superado. Outros não. À época do acidente, as pessoas conseguiam definir um fluxo narrativo por meio dos jornais, que tiveram um papel fundamental, pois tentavam garantir esse fluxo. Hoje, quem viveu aquela situação viveu o que chamamos de evento traumático, logo, falar do césio-137 é um processo muito doloroso, pois é como se ele representasse um ponto de bloqueio na vida das pessoas, cuja história de vida é fluente até o momento do evento. Dali em diante, há um bloqueio que impede a narrativa de fluir oralmente. Então, são necessários outros meios. Alguns, por exemplo, expressam isso por meio de fotos e álbuns de família.

Existe uma dialética ou uma síntese entre narrativa e temporalidade?
O drama contém mais elementos além do tempo, pois há também a configuração espacial e o fator estrutural, de oferecer símbolos para estruturar essa experiência temporal. Nesse sentido a relação é sintética. Mas também há uma tensão dialética, porque o tempo sempre desafia a narrativa, que está sempre defasada em relação ao tempo. A experiência é sempre excessiva.

As narrativas analisadas pela sra. são, inevitavelmente, muito carregadas de tensões. Baseado nisso, como a sra. vê o drama no qual o “acidente do césio” se enquadra e como isso inferiu na sua pesquisa?
Uso o conceito de drama social do antropólogo Victor Turner, inspirado, de certa forma, na questão do drama literário para traduzir conflitos microssociais em aldeias na África. Esse drama passa por várias fases, sendo a principal delas, nessa configuração dramática, a ruptura, que é também uma oportunidade para criação simbólica, visto que é um evento novo que desestabiliza o convencional e obriga a uma criação simbólica. Por isso que, como um drama, o evento do césio inspira tanto a criação ficcional, que serve para significar essa grande ruptura e, às vezes, dar sentido em um processo que é também de ritual, de reconciliação. E nessa questão de ruptura é preciso dizer também que existiu um medo muito forte por parte das pessoas na época, pois havia acabado de acontecer o evento de Chernobyl. Por isso, escolhi o evento do enterro das primeiras vítimas. Pela incidência das narrativas, esse parece ser o evento com maior grau de ruptura ao passo em que as pessoas percebem que energia nuclear mata, que a contaminação é real. Foi um choque de realidade que desencadeou uma reação muito forte nas pessoas. Os protestos no dia do sepultamento eram a expressão do medo e da impotência diante de um acontecimento descontrolado, que nem mesmo os técnicos tinham pleno controle. Somado a isso tem a morte da Leide das Neves, uma criança que sofreu muita violência, primeiro a da contaminação e depois a da hostilização por parte da população, que estava com medo. E isso criou um mártir, a figura da criança-santa.

Em sua tese de doutorado, o professor Eliézer Oliveira afirma que a “catástrofe do césio” alterou a identidade goiana, substituindo uma visão de modernidade pela da sustentabilidade ecológica. A sra. concorda com essa visão?
Acredito que o acidente com o césio-137 ultrapassa as fronteiras regionais, pois nos faz lidar com nossa própria vulnerabilidade. É algo que poderia acontecer em qualquer lugar. A energia nuclear tem uma gênese catastrófica, visto que o processo de estudo dessa energia, acabou contaminando a própria pioneira na pesquisa, Marie Curie. Por isso, tentei dar essa visão para o acontecimento do césio. No entanto, quando se entra em contato com os discursos da época, o impacto nessa questão da identidade goiana foi muito grande, carregado de estigmatização. E esse impacto sobre um discurso de modernização pode ser percebido pela própria maneira de tradução daquela época. Falava-se muito sobre “uma ciranda nuclear no quintal do subdesenvolvimento”, como se o fato de Goiás ter uma visão subalterna nas benesses da modernidade tivesse contribuído para que o evento ocorresse. Nesse contexto, Fukushima [o acidente nuclear na cidade japonesa ocorrido em 2011] nos mostrou que isso não é bem assim. Dessa forma, houve um impacto sobre a questão da identidade goiana, mas também houve um impacto na nossa concepção humana associada a uma tecnologia potencialmente destrutiva.