‘Kit Covid-19’ é desperdício de dinheiro público e pode piorar saúde de pacientes

12 julho 2020 às 00h00

COMPARTILHAR
Esperança de que fármacos sejam eficientes em combater o novo coronavírus pode tirar dinheiro e atenção de políticas públicas comprovadamente eficientes
Uma estratégia sem comprovação de eficácia está se tornando popular em todo o país. Os chamados “kit Covid-19” são coquetéis de diversas drogas já aprovadas e normalmente receitadas para outras doenças, mas que – por conta de boatos ou sucesso em estudos pré-clínicos – estão sendo administradas para pacientes de Covid-19 ou como supostas vacinas.
Ivermectina, hidroxicloroquina, azitromicina, anti inflamatórios corticóides como a dexametazona, remédios para náusea e nitazoxanida são os principais medicamentos incluídos nestes kits. A carência por alento não se restringe aos fármacos, entretanto. Limão, alho e garrafadas caseiras estão na mesma categoria de substâncias que supostamente curam a Covid-19, mas que não têm comprovação científica de eficácia.
Apenas em Goiás, as prefeituras de Ceres, Mozarlândia e Itumbiara foram algumas que gastaram dinheiro com beberagens milagrosas para prevenção ou até para tratamento de casos leves da doença. Comprimidos de ivermectina foram distribuídos como água benta no estacionamento de uma paróquia de Aparecida de Goiânia.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já emitiu notas de esclarecimento, orientações à profissionais ou alertas contra indicando as substâncias contidas no Kit Covid-19, mas os esforços da agência parecem ser pouco eficientes frente a necessidade de se agarrar a promessa de uma cura milagrosa. Os medicamentos do Kit Covid-19, entretanto, podem causar males.
O médico infectologista João Alves de Araújo, que entre outros trabalha no Hospital de Doenças Tropicais (HDT), onde são tratados pacientes da Covid-19 em Goiânia, explica a atuação de cada um dos medicamentos normalmente encontrados no Kit Covid-19. “Quando você tem doenças graves com prognóstico ruim, esse tipo de promessa surge. Periodicamente aparece uma bala mágica para o câncer”, diz o infectologista, ao lembrar do caso da fosfoetanolamina, a suposta cura do câncer de 2016.
Ivermectina e Nitazoxanida
A Anvisa fez um alerta nesta quinta-feira, 9, diante das notícias recentes de que algumas prefeituras pelo Brasil distribuirão ivermectina como forma de tratamento e até prevenção à covid-19. Segundo o órgão ligado ao Ministério da Saúde, o remédio veterinário originalmente planejado para combater parasitas, “não tem estudos conclusivos que comprovam o uso desse medicamento para o tratamento da covid-19. O uso de medicamentos sem orientação médica e sem provas de que realmente estão indicados para determinada doença traz uma série de riscos à saúde”.
Sobre a nitazoxanida, vermífugo conhecido pelo nome comercial Annita, a Anvisa emitiu orientações aos pacientes e farmácias em abril, modificando regras para comprar o medicamento. Agora, toda prescrição de medicamento à base de nitazoxanida agora precisa ser feita em receita especial de duas vias. O princípio ativo mostrou 94% de sucesso in vitro no combate ao novo coronavírus (Sars-CoV-2).
Segundo João Alves de Araújo, o consumo de ambas substâncias, ivermectina e nitazoxanida, aumentou após notícias do sucesso na fase pré-clínica. Entretanto, eficácia em exterminar o vírus fora do organismo, em condições laboratoriais, não significa que a substância é capaz de curar a Covid-19 de um paciente. O Jornal Opção já cobriu a importância do processo científico para desenvolvimento de vacinas e tratamentos, que apesar de lento, é eficiente em eliminar riscos e efeitos colaterais .
“Caso tivéssemos estudos ‘fracos’, que indicassem que estes medicamentos são poucos eficientes in vivo, ainda poderíamos admitir a possibilidade de administrar estes remédios para quem não tem outra alternativa – mas nem isso nós temos”, diz João Alves de Araújo. “Esses fármacos não foram testadas em pessoas com Covid-19 comparativamente com um grupo controle placebo”.
O infectologista afirma que não é necessário que um medicamento seja 100% eficaz para ser adotado como tratamento. “Mas usá-los antes de qualquer estudo é muito prematuro. Essas drogas custam dinheiro e nenhum medicamento é isento de efeitos colaterais. Dar isso para pessoas é oferecer uma falsa segurança. É injustificável, em minha opinião”, diz o médico pesquisador.
Hidroxicloroquina e cloroquina
Como nos casos da ivermectina e nitazoxanida, a hidroxicloroquina carece de testes in vivo com grupos controle randomizados. A Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI) emitiu parecer sobre tratamento com a droga:
“Baseados nas evidências atuais que avaliaram a utilização da hidroxicloroquina para a terapêutica da COVID-19, a Sociedade Brasileira de Imunologia conclui que ainda é precoce a recomendação de uso deste medicamento na COVID-19, visto que diferentes estudos mostram não haver benefícios para os pacientes que utilizaram hidroxicloroquina. Além disto, trata-se de um medicamento com efeitos adversos graves que devem ser levados em consideração. Desta forma, a SBI fortemente recomenda que sejam aguardados os resultados dos estudos randomizados multicêntricos em andamento, incluindo o estudo coordenado pela OMS, para obter uma melhor conclusão quanto à real eficácia da hidroxicloroquina e suas associações para o tratamento da COVID-19”.
Entre os efeitos colaterais da hidroxicloroqueina estão retinopatias, hipoglicemia grave, prolongamento QT (que se relaciona com alteração da frequência cardíaca) e toxicidade cardíaca.
João Alves de Araújo afirma: “Se o médico decide receitar este medicamento caso a caso, de modo off-label, explicando os possíveis efeitos colaterais e levando em consideração o histórico de saúde do paciente – isso é uma coisa. Mas aplicar um remédio com tantos efeitos colaterais a toda a população – isso é outra coisa totalmente diferente. Reações adversas de uma droga estão relacionadas com a quantidade de pessoas que a consomem. Alguns efeitos colaterais são raros, mas irão aparecer se o medicamento for usado em milhares de pessoas”.
Dexametazona
Ao contrário dos demais fármacos incluídos no “kit Covid-19”, existem estudos que ligam o corticóide dexametazona à redução da mortalidade em pacientes em situação agravada. Segundo o estudo Recovery, da Universidade de Oxford, a reação inflamatória exagerada do próprio corpo em resposta à infecção pelo Sars-CoV-2 pode agravar o estado de saúde do paciente, e nestes casos, a dexametazona se provou eficiente.
Dito isto, o medicamento não anula a Covid-19 e não controla a doença em todos os pacientes. Caso o corticóide seja administrado em pacientes fora da fase aguda da doença, a droga pode piorar o quadro de saúde do paciente. “Dexametazona deveria ser utilizada para pacientes graves em UTI. O estudo que mostrou eficácia em reduzir o número de mortes foi especificamente para pacientes avançados e não em fase precoce”, explica João Alves de Araújo.