De 18.240 médicos do programa, 8.332 são cubanos. O número equivale a mais de 45% do total

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Antes mesmo da candidatura do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) ser consolidada, muitos já esperavam que, em caso de vitória, grandes entraves pautariam as relações entre Brasil e Cuba. Ainda enquanto candidato, Bolsonaro já propunha endurecer as regras contra o país insular da América Central, principalmente no que diz respeito à sua participação no programa Mais Médicos.

Trata-se de uma proposta do governo federal lançada em julho de 2018 durante o mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). A intenção do Mais Médicos é disponibilizar maior quantidade de profissionais da medicina para atender os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) do interior, especialmente as regiões mais periféricas do País.

Até então, tudo ocorre da seguinte maneira: a preferência é para os médicos com registros no Brasil, seja ele brasileiro ou não. A medida abrange também os brasileiros ou estrangeiros formados fora do País, desde que submetidos ao Revalida — Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituições de Educação Superior Estrangeira.
Caso não haja candidatos que atendam a esses pré-requisitos, as vagas são destinadas aos médicos brasileiros com formação no exterior, mas sem a devida revalidação de seus diplomas. Ainda não havendo concorrentes nessas condições, as vagas são direcionadas, finalmente, aos cubanos.

Como esperado, o capitão reformado do Exército propôs alterações nas regras que até então regiam o contrato assinado pelo Brasil com a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Cabe, nesse caso, o rompimento imediato do acordo firmado. Por outros motivos, Cuba também poderia romper esse vínculo, mas sob o cumprimento de um prazo de 60 dias.

No Twitter, o deputado federal reforçou as propostas feitas aos cubanos e lamentou a quebra do elo entre os dois países. “Condicionamos a continuidade do programa Mais Médicos a aplicação de teste de capacidade, salário integral aos profissionais cubanos, hoje maior parte destinados à ditadura, e a liberdade para trazerem suas famílias. Infelizmente, Cuba não aceitou.”

De acordo com as informações do Ministério da Saúde Pública de Cuba, o país teria tomado essa decisão graças às declarações dadas por Bolsonaro. O Ministério considera que as referências do presidente eleito são depreciativas e ameaçadoras à presença dos médicos cubanos no Brasil.

Além disso, o comunicado emitido reforça o repúdio pelas declarações do deputado federal no sentido de reiterar modificações em termos e condições do programa, considerando um “desrespeito à Organização Pan-Americana da Saúde e ao conveniado por ela com Cuba ao pôr em dúvida a preparação de nossos médicos”.

A última indagação feita pelos cubanos refere-se a típicos pronunciamentos por parte do presidente eleito. Recentemente, ele declarou: “Não temos qualquer comprovação de que sejam realmente médicos e sejam aptos a desempenhar sua função”. A retirada desses profissionais do País começa a ser feita nesta semana.

No mesmo dia do anúncio, o Conselho Federal de Medicina (CFM) se pronunciou por meio de uma nota “à sociedade brasileira” para reiterar que o Brasil conta com médicos formados em número suficiente para atender às demandas da população.

“Para estimular a fixação dos médicos brasileiros em áreas distantes e de difícil provimento, o go­verno deve prever a criação de uma carreira de Estado para o médico, com a obrigação dos gestores de oferecerem o suporte para sua atuação, assim como remuneração adequada”, diz um trecho da nota.

Por fim, o Conselho se colocou à disposição do governo para contribuir com a construção de soluções para os problemas que afetam o sistema de saúde brasileiro.
A grande preocupação que assola milhões de brasileiros é a interrupção nos atendimentos. A inquietação permeia principalmente entre os nordestinos, ten­do em vista que a região registra a maior concentração de médicos cubanos em atuação no País.

Mas essa preocupação vai além daqueles que necessitam de atendimento e acabam sofrendo diariamente com o descaso da saúde pública. A prova disso foi reafirmada por meio de nota conjunta publicada pela Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e o Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).

Nela, ambos lamentam a in­terrupção da cooperação técnica de cerca de 8.500 médicos cubanos no programa. “Com a decisão, mais de 29 milhões de brasileiro ficarão desassistidos”, diz.

As entidades consideram ainda que a rescisão repentina desses contratos apontam para um cenário desastroso. Em justificativa, as entidades lembram que, dos 5.570 municípios do Brasil, 3.228 (79,5%) só têm médico pelo programa e 90% dos atendimentos da população indígena é feito por profissionais de Cuba.”

Para finalizar, a FNP e o Co­nasems pedem a revisão do posicionamento do futuro governo, que sinalizou mudanças drásticas nas regras do programa, o que, para eles, foi determinante para a decisão do governo de Cuba. “Em caráter emergencial, sugerimos a manutenção das condições atuais de contratação, repactuadas em 2016, pelo governo Michel Temer, e confirmadas pelo Supremo Tribunal Federal, em 2017.”

De acordo com do Sistema In­tegrado de Informação Mais Médicos (SIMM), 2.849 cidades são atendidas por profissionais cubanos. Desses, a Sala de Apoio à Gestão Estratégica (Sage) do Ministério da Saúde reforça que 269 estão trabalhando atualmente em aldeias indígenas.
Após anunciarem que deixariam o programa, o presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, se manifestou dizendo que esses profissionais prestam um serviço valioso ao povo brasileiro. Em sua conta no Twitter, Díaz-Canel reforçou que a atitude desses médicos deve ser “respeitada e defendida”.

Especialistas comentam o assunto

Zacharias Calil: “São técnicos de saúde tratando a população, não médicos” | Foto: arquivo

Cirurgião pediátrico e deputado federal eleito pelo Democratas, Zacharias Calil considera o programa, nos moldes atuais, um “absurdo”. “São técnicos de saúde tratando a população, não médicos. A população precisa entender isso.” Ele esclarece a afirmação dizendo que esses profissionais realizam consultas e não procedimentos. “Qualquer médico brasileiro estaria apto para tal.”

Calil lembra também que a atividade desses profissionais no País coloca a vida da população em risco, tendo em vista que “eles não conhecem a nossa cultura, muitos não sabem falar português com fluência e, como se não bastasse, medicam pacientes por vias venosas. Isso pode acarretar sérios problemas”. “Tenho conhecimento de muitas denúncias”, revela.

A título de comparação, o médico ressalta: “Se eu for para os Estados Unidos e quiser revalidar o meu diploma , enho que praticamente fazer uma nova faculdade, sem contar que precisarei comprovar a minha fluência com o idioma local e ser submetido a uma série de outros cuidados. Aqui, não.”

O futuro parlamentar diz acreditar que o País está formando muitos médicos que possuem condições de substituir a participação dos cubanos no programa. “Não carecemos de médicos brasileiros aptos para o exercício da função, e sim de salários e condições dignas de trabalho. Desde que essa realidade seja alterada, teremos profissionais suficientes para essas vagas.”
Outro crítico do programa é o médico e prefeito de Catalão, Adib Elias. “Quando ainda exercia a profissão, dois anos atrás, eu conheci o programa de perto e posso dizer que verdadeiramente era composto por médicos que não tinham capacidade nem a formação de um médico brasileiro.”

Na visão do prefeito, é preciso avaliar as possíveis mudanças para que o Mais Médicos possa atender, sobretudo, os profissionais brasileiros. “Penso que o programa pode dar certo, desde que haja certas mudanças. Muitos médicos brasileiros estão aptos e necessitam de oportunidades de trabalho.”

Silvio Fernandes: “A nacionalidade desses médicos pouco interessa” | Foto: reprodução

Para o médico e presidente do Instituto de Previdência dos Servidores Municipais (IPSM), Silvio Fernandes, o problemas está vinculado aos profissionais sem diploma. Por isso, ele diz acreditra que todos deveriam ser submetidos ao Revalida. “A nacionalidade desses médicos pouco interessa. O fato é que trata-se de um programa importante que fez com que a medicina chegasse a diversos lugares. Porém, precisa ser levado a sério e não ser usado como instrumento de fomento político para ditaduras no mundo afora. Ao meu ver, é o que acontece.”

Na visão do médico, tratando-se de saúde, toda e qualquer medida não pode ser tomada de maneira isolada, havendo a necessidade de se ponderar vários fatores importantes. “E o Mais Médicos é apenas um deles. Ele precisa ser revisto e melhorado. Devemos buscar a qualidade do médico que está em contato direto com a população, independentemente da nacionalidade.”

Especialista em ginecologia e obstetrícia, o deputado estadual Dr. Antonio (DEM) não acredita que o presidente eleito irá trabalhar para pôr fim ao programa, mas sim para adotar novas identidades na tentativa de romper o vínculo do Mais Médicos com o PT e, consequentemente, aproximá-lo do novo governo.

“Creio que as alterações, caso existam, deva ser nesse sentido. Por isso, vejo com naturalidade os posicionamentos do presidente eleito”, ressaltou o parlamentar. Sem deixar de ponderar as dificuldades dos municípios, bem como a importância do programa para a população, o democrata avalia reforça que “o País carece de um pacto federativo”.

“Os municípios se encontram em situações catastróficas. Por isso, o Mais Médicos ofereceu uma importante ajuda a esses locais. Sou a favor do programa, já que a carência de médicos no Brasil ainda é muito grande. Ainda que haja uma nova nomenclatura por trás dessa iniciativa, manterei minha posição favorável ao programa”, pontuou.

Helio de Sousa: “Não deveríamos fazer convênios como esse” | Foto: reprodução

Colega de profissão e de parlamento de Dr. Antonio, o deputado estadual Helio de Sousa (PSDB) também disse acompanhar de perto o programa implantado pelo governo federal. “Da maneira que ele é, em que os profissionais devem devolver a metade do que ganha ao governo de Cuba, não me parece ideal. Ao meu ver, isso é sinônimo de financiar um país onde não há democracia. E, para um país que se vangloria por sua democracia, não creio que deveríamos fazer convênios como esse.”

Na visão do parlamentar eleito para o quinto mandato, o País possui condições de desenvolver uma carreira médica para os profissionais habilitados, a fim de que possam exercer sua profissão com tranquilidade.

Novos planos

O ministro da Saúde, Gilberto Occhi, anunciou, na sexta-feira, 16, que irá propor à equipe equipe de transição do presidente eleito que o déficit das vagas deixadas pelos cubanos sejam preenchidas por médicos formados com auxílio do Fundo de Finan­ciamento Estudantil (Fies).
O Fies pertence ao Ministério da Educação e tem por objetivo financiar o período de graduação de jovens universitários que não possuem condições de estudar em universidades da rede privada de ensino.

Occhi se pronunciou durante uma cerimônia em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, mas não deu muitos detalhes sobre a sugestão. Ele disse também que, na próxima semana, o edital para recrutamento de novos médicos deve ser lançado a fim de que esses profissionais ocupem o lugar que será deixado pelos cubanos ao se ausentarem do País.

Segundo o ministro, as vagas deverão ser preenchidas por médicos brasileiros inscritos no Conselho Regional de Medicina (CRM) obtido no Brasil. Quanto aos brasileiros que não são formados no País, ele ressaltou que, passado um determinado tempo, as vagas serão estendidas também a essas pessoas. Segundo Occhi, estima-se que exista entre 15 mil e 20 mil profissionais prontos para preencherem essas vagas.