Diante de quase 50% de eleitores que dizem ter escolhido, está em curso uma operação pouco democrática para frear a volta do petista ao poder

Em 1950, Getúlio Vargas – depois de, cinco anos antes, ser deposto e sofrer aquilo que  chamou de “golpe branco” e que decretou o fim da ditadura do Estado Novo – colocava então dentro das regras democráticas, para a disputa das eleições presidenciais. Era amplo favorito. Nessa conjuntura, foi cunhada uma frase que passaria para a história. “Getúlio não pode ser candidato; se for candidato, não pode ser eleito; se for eleito, não pode governar”.

Era uma mensagem direta do jornalista Carlos Lacerda, dono do recém-criado Tribuna da Imprensa, opositor feroz do getulismo. Lacerda foi um orador brilhante, um político combativo, um dos grandes líderes da direita brasileira, nome influente da sociedade brasileira em meados do século passado, da década de 30 à de 60… e também o maior golpista da história política nacional.

Carlos Lacerda ao microfone: um dos maiores oradores da política brasileira – e também a referência sempre lembrada quando o tema são declarações golpistas | Foto: Reprodução

Carlos Frederico Werneck Lacerda teve uma trajetória bem heterodoxa: nascido em Vassouras (RJ) em família de políticos, ganhou de seu pai – o político de esquerda Maurício Lacerda, que foi deputado federal e prefeito de Vassouras – o prenome em homenagem a Karl Marx e Friedrich Engels, os ideólogos do comunismo. Formado no movimento estudantil, Lacerda foi o principal líder da Aliança Nacional Libertadora (ANL) nos anos 30, a principal organização comunista do País, para então ingressar na vida política – como vereador, depois deputado e governador da Guanabara – sendo um dos maiores combatentes do regime soviético.

A declaração de Lacerda para atingir a legitimidade da postulação de Getúlio Vargas se insere no que poderíamos chamar de “golpismo preventivo”. Uma fórmula que alcançou sucesso no Brasil, com a participação do próprio Lacerda em outros episódios, contra Juscelino Kubitschek, em 1955, e João Goulart, em 1961, mas ultrapassou a vida de seu criador, se tornou clássica e didática, continuando a ser aplicado até os dias de hoje.

Em 2014, entre o primeiro e o segundo turno das eleições, na disputa entre Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB), o então secretário de Energia do governo de São Paulo e ex-presidente do PSDB, José Aníbal, “homenageou” Lacerda em seu perfil no Twitter: “Lacerda dizia de Getúlio: ‘Não pode ser candidato. Se for, não pode ser eleito. Se eleito, não pode tomar posse. Se tomar posse, não pode governar.’”

O contexto leva a crer que falava da então presidente que acabaria passando pelos dois primeiros “obstáculos” estabelecidos pelo princípio lacerdiano de golpe preventivo, mas não resistiria à ingovernabilidade que seu próprio rival no duelo do segundo turno prometeu, no discurso de retorno ao Senado, após as eleições: uma oposição “incansável, inquebrantável e intransigente”. O resultado foi o aumento do desgoverno da petista, que, apesar da mudança da equipe econômica para a agenda liberal, não conteve seu impeachment, muito mais político do que técnico.

O quadro da democracia desde a deposição de Dilma Rousseff não melhorou. Seu sucessor – e também maior articulador do impeachment -, Michel Temer (MDB), iniciou a inserção maciça de militares do governo, colocando oficiais no primeiro escalão e em postos-chave de sua gestão. Com Bolsonaro, o nível de militarização chegou a níveis maiores do que havia durante os governos dos generais. Recentemente, o próprio presidente se vangloriou disso, em discurso dirigido a comandantes militares em São Gabriel da Cachoeira (AM), em maio deste ano, Bolsonaro confirmou: “Proporcionalmente, temos mais ministros militares que naquele período de 64 a 85.”

E os militares que estão com Bolsonaro não são militares quaisquer. Praticamente todos os oficiais que ocupam cargos no primeiro escalão começaram a carreira durante o período mais duro da ditadura militar, os chamados anos de chumbo e chegaram ao ápice da carreira no regime democrático. Contudo, boa parte deles – e também dos que estão no Alto-Comando das Forças Armadas – sofre do que o jornalista Octavio Guedes, escrevendo para seu blog no portal G1, classificou como “anticomunismo anacrônico”.

No mesmo artigo, intitulado “De Prestes a Brizola: por que generais bolsonaristas ofendem a democracia?”, ele cita uma expressão do professor Celso Castro, da Fundação Getúlio Vargas: “recrutamento endógeno”. O intelectual se refere ao fato de que pais militares costumam forjar filhos militares dentro de um convívio num círculo cada vez mais fechado de militarismo: escolas militares, academias, internatos e, obviamente, companhias de militares. Cercado de fardas por todos os lados, essas pessoas passam a ignorar o mundo civil. E isso tem aumentado.

Segundo estudos do próprio Castro, a que se refere Guedes, nos anos 1940, os filhos de militares representavam 20% dos cadetes; já em 1993, o número passava para 60,4%. O triplo. Em suma: 80 anos atrás, o mundo exterior oxigenava muito mais a esfera militar do que ocorria há três décadas – e, possivelmente, hoje ainda.

Toda essa delonga até aqui foi para contextualizar o quadro que se apresenta para um momento que era apenas uma rotina necessária da democracia, mas se tornou um thriller com as manobras do governo para desacreditar as instituições em geral e em especial as que giram em torno do processo eleitoral.

Por mais que as ruas e os palácios venham surpreendendo o País desde 2013, há três anos era um cenário impensável ver debates na TV discutindo com espantosa naturalidade se haverá ou não eleições no próximo ano ou se o País está sob o risco de sofrer um golpe de Estado. Desde a posse de Bolsonaro – que, diga-se, nunca fez questão de enganar ninguém sobre suas péssimas intenções em relação à democracia –, o Brasil vive uma volta ao pior dos anos 60: a atmosfera carregada de golpe, mas desta vez sem adversário; de guerra fria, mas sem fantasma comunista; de conspiração, sem conspiradores – a não ser o fogo amigo.

Golpismo em série
A personalidade do presidente da República leva a crer que ele realmente pensa (ou pensava) que poderia contar com o apoio das Forças Armadas para intuitos golpistas. Está sendo assim desde o início de seu governo. Foi assim ainda em 2019, quando Bolsonaro incentivou manifestações contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF), no período em que os principais alvos dos bolsonaristas eram o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e – ironia vista com os olhos de hoje – o bloco multipartidário conhecido como Centrão.

Manifestantes se reúnem em ato contra Congresso e STF em Brasília | Foto: Sérgio Lima / Poder 360

Também foi assim de novo no ano passado, quando, em plena pandemia, Bolsonaro, entrando em pânico com os prejuízos – inclusive eleitorais – que a crise sanitária poderia lhe trazer, passou a pregar o salvamento da economia e se pôs contra os “lockdowns” de governadores e prefeitos. Sintomaticamente, passou a usar a expressão “meu Exército” para dizer que não aceitaria a “falta de liberdade” do povo e, segundo ele próprio, o descumprimento do direito de ir e vir previsto no Artigo 5º da Constituição – como se o direito à vida não fosse mais imediato.

Na temporada 2021, especialmente nos últimos meses, a chantagem diuturna de Bolsonaro para a implantação do voto impresso é a bola da vez para tentar manipular seus grupos de mobilização, no pior momento de popularidade desde o início de seu mandato. Mesmo tendo sido eleito nove vezes – uma como vereador (1988), sete como deputado federal (1990, 1994,1998, 2002, 2006, 2010 e 2014) e, claro, a mais recente (2018) para presidente –, sendo as seis últimas com urnas eletrônicas, ele contesta o processo. Quando houve a invasão do Capitólio por militantes de extrema-direita em janeiro, após serem incitados por um discurso de Donald Trump, Bolsonaro deu a senha a seus apoiadores, no indefectível cercadinho do Palácio da Alvorada: “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema piores do que os Estados Unidos agora.”

Para usar um termo da moda estava ali montada a “narrativa” para o ano. Com a troca de generais no Ministério da Defesa – saiu Fernando Azevedo e Silva, entrou Walter Braga Netto – e a inédita demissão conjunta dos comandantes das três Forças – Exército, Marinha e Aeronáutica –, tendo escolhido os novos chefes, Bolsonaro se viu mais à vontade para expressar seu descontentamento com as instituições. Em especial com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e seu presidente, Luís Roberto Barroso, a quem passou a destratar ad hominem, como em seus melhores (na verdade, piores) momentos como deputado do baixo clero: “péssimo ministro”, “imbecil”, “idiota”.

Se for verídica a revelação de reportagem do jornal O Estado de S. Paulo na semana passada, o ministro da Defesa parece ter tomado para si a mesma missão. No dia 8 de julho, Braga Netto teria feito chegar, por meio de um interlocutor, um recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL): de que, ou o voto impresso era aprovado para as próximas eleições, ou elas não ocorreriam. Braga Netto desmentiu; Lira apenas não confirmou.

O desespero de Bolsonaro tem nome: Luiz Inácio Lula da Silva. Enquanto seu governo derrete, sua popularidade despenca, o “mito” vira sócio do Centrão e vê seu arquirrival disparar nas intenções de voto para 2022 em todas as pesquisas.

Diante dessa situação, surgiu, nas últimas semanas, uma espécie de movimento, articulado ou não, de setores da imprensa para que o ex-presidente tenha a “grandeza”, como chegou a escrever a jornalista Eliane Cantanhêde, em sua coluna em O Estado de S. Paulo, de deixar outro ser candidato em seu lugar. Dizendo no texto que, diante do desgaste de Bolsonaro, Lula estaria eleito no primeiro turno e, “portanto, já é o grande vitorioso”, a colunista sugere que ele dê um “golpe de mestre” – aliás, expressão que dá nome ao artigo – “abrindo mão da cabeça da chapa e assumindo a vaga de vice”. Isso abriria, também, o caminho para uma “chapa de união e pacificação nacional”.

Ex-presidente Lula: sua eventual vitória nas eleições do próximo ano é vista com maus olhos pelos militares | Foto: Ricardo Stuckert

É um artigo cheio de elogios tortos a Lula. Tortos porque, diante das condições objetivas, o texto deixa de ser elogioso para se tornar irônico. Ao ressaltar seu papel de líder e de grande detentor de votos – ou seja, do desejo da população de, mesmo depois (ou apesar) de tudo, o ter novamente como governante –, a jornalista, experiente e inteligente, alfineta o petista induzindo-o, sem porém citar o caso, a seguir o exemplo de Cristina Kirchner, que, para evitar um pleito mais conturbado na Argentina, cedeu a Alberto Fernández a cabeça da chapa da qual se tornou vice. Fernández venceu as eleições no país vizinho.

Eliane Cantanhêde é também conhecida por ter como fontes militares de alta patente, entre eles generais da ativa, alguns dos quais do Alto-Comando. Dessa forma, em um momento de tensão institucional como o vivido atualmente, com a estabilidade democrática em perigo, é preciso observar com muita atenção o que dizem as linhas (discursos e declarações oficiais) e as entrelinhas (aquilo que se depura a partir dessas falas e o que se apura em “off”, com o sigilo das fontes). Isso vale tanto para matérias com militares como para artigos de jornalistas que têm militares como fontes.

E os movimentos de ambos refletem uma espécie de golpismo preventivo, ainda que suave ou “cheiroso”. É como se dissessem que com Bolsonaro fica muito difícil continuar, mas ter a alternativa Lula nesse cenário vira um impeditivo.

Ocorre que, em uma democracia presidencialista, quem deve impedir alguém de aceder ou se manter no poder é a vontade soberana do povo expressa por meio do voto. Foi assim que Trump e Bolsonaro chegam ao comando de seus países e é assim que podem continuar – ou não. Ao perder as eleições nos Estados Unidos, o republicano descredibilizou o resultado de todas as formas possíveis. O resultado foi o episódio Capitólio e suas cinco mortes. Mas o comando militar por lá deixou claro que estaria sempre do lado da Constituição.

E por aqui? Depois de serem acostumados no poder por Bolsonaro – e também desgastados com ele –, seria tão evidente aos militares obedecer ao regramento constitucional? Com o agravante de o eleito ser justamente o mais indesejado dos concorrentes? Será certamente, um grande teste, talvez o maior, para nossa democracia ainda em fase de maturação.

É bom recordar que Lacerda, claro, apoiou o golpe militar de 1964. Era governador da Guanabara e pretendia ser o próximo presidente. Os militares prometiam entregar o poder para as eleições agendadas para o ano seguinte. Mas elas não ocorreram. O mandato do general Castelo Branco foi prorrogado. Em 1966, desiludido com o regime que tinha ajudado a instalar, retirou seu apoio ao regime após o não cumprimento da promessa de respeitar o calendário eleitoral.

Por ironia, juntou-se aos desafetos JK e Jango, a quem perseguira incansavelmente para alcançar o poder, para formar uma “frente ampla” contra aqueles a quem tinha incentivado ao golpe. Tantas fez o moço que foi para a panela junto com seus antigos rivais “comunistas”: em 1968, Lacerda teve direitos políticos cassados pelo AI-5 e chegou a ser preso. Morreu em 1977, já no ostracismo.