Goiânia tem 87 mil famílias na pobreza
03 março 2018 às 13h26

COMPARTILHAR
Programas sociais alcançam apenas 25.523 famílias goianienses, ou seja, 59,3 % da estimativa de famílias pobres no município

Yago Sales
Eles recolhem legumes, verduras e frutas espalhadas pelo asfalto ao final de feiras livres de Goiânia. Cabisbaixos, abordam transeuntes apressados no Centro, pedindo algum trocado. Arrastam carrinhos carregados com papel e latinhas pelas ruas e avenidas. Aguardam o fim do expediente de restaurantes para descolar uma refeição. Eles são goianienses anônimos, esfomeados, largados à própria sorte.
Conforme o Cadastro Único, do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), em dezembro o número de famílias pobres ficou em torno de 87 mil famílias na capital. Elas têm renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa. Dessas, 15.136 mil famílias têm renda per capita familiar de até R$ 85, insuficiente para dar mínimas condições a crianças e idosos, por exemplo.
Desnutridos, isolados em casas sem condições dignas em bairros da periferia de Goiânia, vivem de doações. Este é o perfil de Luiz Cândido da Silva, de 53 anos. Há mais de um ano desempregado, ele é mais um número em relatórios e gráficos que revelam o desemprego e a fome no Brasil. Os dados são discutidos séria e eloquentemente pelos técnicos, mas o argumento para pessoas como Luiz são os sintomas da miséria.
“Situada no umbral entre vida e morte, a fome é difícil de ser descrita e compreendida pelos que não a vivenciam”, escreve Maria do Carmo Soares de Freitas no livro “Agonia da fome”. Com doutorado em Saúde Pública pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Maria do Carmo pesquisou os efeitos da fome no Brasil e traz relatos de experiências que viu e ouviu, mesmo assim reconhece que não consegue dimensionar a tragédia da fome.
Uma contribuição para a erradicação deste quadro é o Programa Bolsa Família, do governo federal. Mas o programa, que alcança famílias pobres e extremamente pobres, beneficiou, por exemplo, no mês de fevereiro de 2018, 25.523 famílias goianienses, apenas 59,3 % da estimativa de lares pobres no município.
As famílias recebem R$ 126,81. Com os beneficiados em fevereiro, o governo federal desembolsou R$ 3.236.504. Luiz Cândido da Silva tentou, mas não conseguiu o benefício. “Ia ajudar, né? Ia comprar leite pro meu filho”, disse.
O aumento de famílias pobres e extremamente pobres pode devolver o Brasil para o Mapa da Fome, de onde foi retirado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) há três anos. O sinal de alerta veio pela taxa de desemprego cada vez mais alta e pela renda per capita, indicadores importantes para compreender as necessidades do brasileiro e para o estabelecimento de políticas públicas por parte dos governos.

Doutor em Geografia, o professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Tadeu Alencar Arrais explica que o Brasil tem três benefícios fundamentais para dar assistência às pessoas de baixa renda: a aposentadoria rural, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Bolsa Família.
“É preciso dar continuidade a estes programas para que possamos erradicar a fome e a miséria. O Bolsa Família é importante para diminuir a pobreza, principalmente a pobreza geracional, ou seja, obrigando os pais das crianças a levá-las para a escola e para o médico”, explica Arrais.
O pesquisador considera, ainda, que os benefícios contribuem para movimentar a economia. “O Bolsa Família é revolucionário. As pessoas devolvem esse valor quando consomem. O problema, no entanto, é que assistimos a uma regressão no benefício. Na medida que o número de cadastro tem aumentado, o governo não aumentou o número de beneficiados”, observa.
Para piorar, dados de desemprego dão conta dos problemas sociais. No dia 28 de fevereiro passado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou que a taxa de desemprego no País atingiu 12,2% no trimestre encerrado em janeiro de 2018, ou seja, 12,7 milhões de pessoas estão sem trabalho. Até o final do ano passado, Goiás contabilizava 339 mil fora do mercado de trabalho. E Luiz Cândido é um desses, personagem de uma biografia com capítulos de desemprego e fome, como verificou a reportagem do Jornal Opção.
Família vive de doações

Na quinta-feira, 1º, sem saber que se tornou estatística, Luiz Cândido da Silva saiu empurrando um carrinho onde mói cana e faz garapa desde às 6 horas. Ele narra, em primeira pessoa, a história de alguém interessado apenas em não ter de se preocupar que o alimento que recebe de doações não dure até o domingo. Um tique nervoso faz balançar sua cabeça, enquanto ele atende aos primeiros clientes com entusiasmo, sorrindo.
Mas, perto das 16 horas, uma dor faz Luiz parar, curvar-se um pouco para frente e respirar. Ele prossegue a andança pelas ruas dos bairros durante o final de tarde. Manca de uma perna. Algo parece pressionar seu estômago: ele não comeu nada o dia todo. “Eu preciso comprar cana amanhã, não posso comer”, revela. Mesmo assim, o homem se diz feliz.
É que, 12 meses sem emprego, passou as últimas semanas consertando a máquina de moer cana que ganhou de uma mulher. Remendou os pneus, soldou algumas peças e pintou a lataria. Ganhou 20 caules de cana, dois pacotes de copos descartáveis e percorre a região da Vila Isaura.
Luiz vai se lembrando do dia em que foi dispensado da função dos serviços gerais da Prefeitura de Goiânia, no final de 2016. Demorou alguns dias para contar à mulher, Sebastiana Silva, 51. Como conseguiria outro emprego, aos 53 anos?
Ele recebia pouco mais de um salário mínimo, o suficiente para comprar o leite e a bolacha do filho Lucas Cândido, 21. O rapaz foi diagnosticado com deficiência mental há poucos anos. O pai não entendia quando professores o alertavam para as dificuldades de Lucas na escola: o menino não aprendia a ler nem a escrever o próprio nome.
Nos meses seguintes à demissão, Luiz chegava em casa de mãos abanando depois de passar o dia inteiro procurando trabalho. Foi quando a família deixou de, primeiro, comer carne, depois feijão, que Luiz recorreu a uma das coisas que um homem trabalhador nem imaginaria que seria capaz: pedir comida em restaurantes e supermercados da região.
Dessa forma, conseguia levar para casa arroz, feijão e alguns pedaços de carne. A mulher, que também toma remédios controlados, não consegue cozinhar. “Eu mesmo faço tudo aqui em casa”, conta, apontando para a cozinha.

Há mais de 30 anos à frente de projetos sociais na Vila Isaura, Maria Consuelo Bastos Seabra, 76 anos, soube da história de Luiz e sua família porque os ouvidos dela se concentram facilmente na miséria alheia. Como de praxe, ela procurou ajuda com açougueiros, donos de frutarias e preparou a primeira cesta para a família. Luiz voltaria outras vezes ao Centro de Referência de Assistência Social (Cras) Vila Isaura, conveniada com a Prefeitura de Goiânia.
Goiânia conta com 15 Cras espalhados por todas as regiões. São locais para convivência, mas que normalmente resistem apenas pela boa vontade de funcionários e voluntários. Muitos deles têm convênios com o município e dependem de repasses. Nas últimas semanas, por exemplo, as unidades não contaram com profissionais que, obrigatoriamente, precisariam estar no quadro de funcionários, como psicólogos e assistentes sociais. Funcionários informam que há um processo seletivo aberto para contratar novos profissionais.
Quando fala de Luiz Cândido, Maria Consuelo parece emocionada. “Ele precisa de um empreguinho. De ajuda. Já trouxe ‘trem’ lá de casa para ele”, conta. “Nós temos muitas famílias aqui na região que precisam de ajuda.”
O Jornal Opção percorreu outros bairros, mas poucas pessoas quiseram falar da própria miséria. Uma mulher, mãe de quatro filhos, marcou entrevista com o repórter, mas desistiu. “Você vai me ajudar? Não quero me expor, expor meus filhos para nada.”
No Jardim Novo Mundo, não foi possível chegar a uma região de casas de alvenaria. “Aqui a gente não recebe jornalista”, gritou uma mulher gestante, visivelmente alterada. O repórter quis saber se ela recebia o Bolsa Família. “Não queremos dar mídia. Pôr nossa cara em jornal não. O que vai resolver?”
Luiz Cândido não se preocupa em abrir as portas enferrujadas e sem trinco da casa que construiu no lote do sogro, quando casou-se com Sebastiana. No quarto, abarrotado de roupas doadas, mal cabem duas camas que ele encontrou na rua.
O casal dorme colado à cama de Lucas, o filho de 21 anos. A sala, num cômodo minúsculo, é onde a família assiste durante todo o dia a programação da Igreja Mundial, com o apóstolo Valdemiro Santiago. “A gente assiste para ver se Deus muda a nossa situação”, justifica Luiz. Na cozinha, a geladeira contém apenas água e um frango que a família ganhou de um vizinho. Sebastiana prefere guardar a mistura para comer no final de semana.
O filho do casal, Lucas, tenta amenizar a situação de pobreza da família dizendo que sempre há arroz e feijão.” O pai, então, pergunta: “E o leite, meu filho?” Lucas não responde. Sebastiana decide falar, depois de um dia em silêncio, sempre muito introspectiva: “A gente prefere ficar calado. Reclamar pode irritar a Deus, né, meu filho?”