O mercado de gastronomia de alto padrão vive uma expansão inédita em Goiânia. Restaurantes focados em cozinha autoral, casas especializadas em ingredientes importados, wine bars sofisticados e menus degustação passaram a ocupar espaços estratégicos no Setor Marista, Jardim Goiás, Bueno e em polos como o Shopping Flamboyant e o Órion.

O fenômeno reposiciona a capital como um destino gastronômico emergente e revela um novo comportamento dos consumidores de renda alta. A demanda por experiências premium cresceu a ponto de estabelecimentos trabalharem com lista de espera, salões de poucas mesas, serviço personalizado e ticket médio que supera R$ 300 por pessoa.

Para alguns grupos, esse valor já não é exceção, tornou-se hábito de lazer semanal. Há cinco anos, a oferta de gastronomia sofisticada em Goiânia era restrita a poucas casas tradicionais.

Hoje, o cenário é outro: cozinhas de assinatura, propostas intimistas, bares com coquetelaria internacional e restaurantes que investem em ingredientes como wagyu, trufas importadas, caviar, vieiras canadenses e vinhos de safras raras.

Um exemplo disso são os restaurantes do chef Ian Baiocchi. Ele é proprietário de estabelecimentos de ponta que englobam o Grupo Íz como 1929 Trattoria (restaurante italiano), Grá (bistrô francês), Alata (sorveteria artesanal), Fulles Kitchen (preparos na lenha) e o Íz Hotel Conceito, primeiro restaurant with rooms do Brasil.

Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Íz Restaurante

Mais do que um restaurante, o Íz é um complexo que integra gastronomia, hospedagem e formação cultural. À frente do projeto, Baiocchi define a hospitalidade como o eixo central da proposta e como o principal diálogo com a cena gastronômica de Goiânia hoje.

“O conceito central é, com certeza, a hospitalidade. A gente muda completamente todos os padrões de um restaurante clássico para atingir o que acreditamos ser o mais alto nível de hospitalidade, que é, inclusive, o ato da pessoa poder dormir aqui”, afirma o chef em entrevista ao Jornal Opção.

Segundo ele, o Íz amplia o significado do que antes era apenas um restaurante. “Hoje ele é um restaurante que tem um hotel e que tem um instituto, tudo dentro de um mesmo complexo.”

Para Baiocchi, essa transformação representa um novo marco na trajetória iniciada há mais de uma década. “A gente entende isso como um passo a mais, que pode ter a mesma importância ou até maior do que Íz teve anos atrás, quando a gente começou”, diz.

Criado originalmente como um restaurante de forte caráter cultural, o projeto passou por um processo contínuo de evolução. Para o chef, no entanto, amadurecer não é uma etapa que se encerra.

“O amadurecimento é eterno. Quem não segue amadurecendo está fadado a ficar para trás, não só profissionalmente, mas pessoalmente também”, avalia. Com quase 11 anos de história, Baiocchi observa que o crescimento do público caminha junto com o do restaurante.

“A gente sente o público amadurecendo a cada dia e, assim como ele, o restaurante precisa se renovar e amadurecer”, afirma. Esse movimento, segundo o chef, nasce menos de tendências externas e mais de uma necessidade interna. “Tudo o que faço surge muito dessa vontade de fazer por nós, pela nossa equipe e pelo que a gente acredita.”

Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Uma cozinha autoral e formadora de cenário

Ao falar sobre a identidade do Íz ao longo do tempo, Ian Baiocchi define a casa como um organismo vivo. “O Íz é uma casa goiana, viva, que pulsa autoralidade, originalidade e criatividade em todos os níveis”, resume.

Desde o início, o objetivo nunca foi se posicionar como melhor ou pior que outros restaurantes. “A gente sempre se preocupou em ser diferente e em criar o nosso próprio estilo, o nosso próprio ecossistema.” Na avaliação do chef, essa postura teve impacto direto na cena gastronômica da capital.

“Todos os restaurantes que abriram em Goiânia depois do Íz são, de alguma forma, derivações do Íz”, afirma, ressaltando que não se refere apenas às casas do próprio grupo. “Muitos empresários me dizem: ‘Você abriu a porta para a gente, deu voz, deu inspiração.’”

Para ele, a importância do Íz ultrapassa figuras individuais. “A relevância do Íz é maior do que a minha ou do grupo em si. A proposta que a gente trouxe em 2015 ficou, não oscilou e evoluiu, e isso reverberou numa transformação do cenário gastronômico da cidade inteira.”

Questionado sobre o papel dos ingredientes regionais na cozinha contemporânea, Baiocchi adota uma visão crítica em relação ao excesso de discurso.

O ingrediente regional é o foco sem ser o foco. Falar demais sobre isso hoje soa piegas ou forçado, diz.

Para ele, o uso do produto local deve ser natural. “O melhor produto é o que está perto, que viaja menos, que tem menos desgaste e uma produção mais limpa.” O chef admite ter pouca afinidade com narrativas vazias.

“Eu tenho alergia a storytelling sem acontecimento. Lugar que sobrevive só do que fala e não do que faz é a pior coisa do mundo”, afirma. Com o tempo, ele passou a direcionar o olhar menos para o produto isolado e mais para as pessoas. “Nosso bioma é muito mais feito da raiz que cresce nos pés das pessoas do que da raiz que cresce no chão.”

Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Instituto, memória e técnica ancestral

Esse pensamento deu origem ao instituto que integra o complexo do Íz. O foco principal é o resgate de técnicas ancestrais que correm risco de desaparecer. “As técnicas estão morrendo porque o pilar de estudo, que são as pessoas, está se perdendo”, alerta.

O trabalho envolve pesquisa, catalogação e a transformação desse conhecimento em livros, oficinas e projetos sociais. “A gente está estudando profundamente tudo aquilo que ainda é artesanato local transformado em comida”, explica, citando exemplos como marmeladas, bananadas, doces cristalizados e receitas tradicionais do interior de Goiás.

Baiocchi destaca que muitos desses produtos permanecem restritos a pequenas regiões. “Quem está em Goiânia não tem acesso. E o turista que quer identidade regional precisa viajar para encontrar isso”, observa. A proposta, segundo ele, não é valorizar apenas pelo discurso.

Não é porque é regional ou sustentável. É porque é bom de verdade. No fim das contas, tem que ser gostoso.

Sobre a relação do público goiano com menus degustação e propostas menos convencionais, o chef é direto: curiosidade não falta. “O público goiano é extremamente curioso”, afirma. Para ele, a cidade sempre absorveu referências externas, o que contribuiu para a abertura a novas experiências.

Essa curiosidade, segundo Baiocchi, moldou seus próprios negócios. “Não sou só eu que crio e o restaurante anda sozinho. O cliente me molda”, diz. Ele cita o exemplo do 1929, onde pratos mais ousados passaram a ter mais saída do que opções simples.

“A galera queria a combinação diferente, algo disruptivo.” Grato à receptividade de Goiânia, o chef reforça que o retorno do público é o principal termômetro do trabalho.

Se eu olhar para eles e não estiverem felizes, alguma coisa está muito errada e eu vou mudar absolutamente tudo.

Essa abertura ao novo, segundo ele, sempre esteve presente. “Desde os eventos, metade do menu era mais objetiva e a outra metade diferente. Rapidamente, as pessoas começaram a pedir só as coisas diferentes”, relembra.

Para Ian Baiocchi, o desafio permanente de se reinventar é parte indissociável da gastronomia. “Oferecer um serviço de ponta é um desafio enorme. O tempo todo é sobre se superar, sem precisar provar nada para ninguém”, conclui.

Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Ticket médio

Os valores gastos variam de R$ 245 a cerca de R$ 635, mas, segundo o chef, o que está em jogo é o valor da experiência entregue, e não apenas o custo do prato.

O menu de entrada, voltado principalmente para o almoço, funciona como um híbrido entre degustação e à la carte. “São seis etapas no total. Três são escolhidas pelo cliente, que são entrada, principal e sobremesa, e as outras três são surpresas que a gente manda”, afirma. Essas etapas surpresas, no entanto, não são cobradas como extras. Pelo contrário: fazem parte da concepção de casa.

“Todo cliente que chega recebe três minientradas, o amuse-bouche. É uma cortesia do chef, para ele começar a entrar no nosso mundo”, diz. Em seguida, vêm pães de fermentação natural e uma seleção de manteigas artesanais. Água, café, chá, infusão e docinhos da casa também estão incluídos.

“Eu sou adepto daquela história de que, quando você chega na casa de alguém, um pãozinho com manteiga, água e café não se nega para ninguém. Então eu faço questão que aqui todo mundo coma um pãozinho com manteiga, beba um cafezinho e coma um docinho antes de ir embora”, resume.

No menu de R$ 245, o nível de insumo é um dos argumentos centrais. Entre as opções aparecem camarões, cupim, vieiras, polvo, picanha Black Angus e até cherne pescado artesanalmente no Rio de Janeiro e transportado de avião.

“É 245 reais, mas o nível de produto que você está comendo é um espetáculo”, afirma o chef. As sobremesas seguem uma lógica própria: uma etapa láctea, uma de chocolate e outra de fruta, compondo um percurso completo.

Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Inversão simbólica

Para Baiocchi, a experiência no Íz também passa por uma inversão simbólica da lógica tradicional do estrelismo gastronômico. “Sempre escutei que as pessoas vão lá para ver o chef. Eu nunca gostei disso. Quem fica esperando sou eu. Eu que fico batendo palma para eles”, diz. “O mínimo que a gente pode fazer é atender às expectativas. E isso é difícil.”

A dificuldade se intensificou com a decisão de reinventar completamente um restaurante com mais de uma década de história. “Mudar tudo depois de dez anos deu um frio na barriga que eu não sentia há muito tempo”, admite.

Ainda assim, o chef afirma que o processo tem sido recompensador. “Olhar para a cara dos clientes diante da cozinha aberta e ver o nível de satisfação é a coisa mais emocionante que pode ter.” Baiocchi também faz questão de relativizar a ideia de “caro” quando o assunto é alta gastronomia.

Em qualquer boteco você senta e paga 90 reais numa porção de croquete. Aqui você pode ficar três, quatro, cinco horas, num baita ambiente, com distanciamento entre mesas, serviço exclusivo. É o seu momento, defende.

Ao falar da identidade do Íz, ele diferencia a casa das demais operações do grupo. “O Íz sempre foi nosso ticket médio maior, sempre foi o restaurante que as pessoas buscavam por uma experiência diferente”, afirma.

Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Consolidação

Agora, segundo ele, a proposta é consolidar essa posição, integrando gastronomia, arquitetura, design, vinhos e coquetelaria sob um mesmo eixo: a hospitalidade. “Eu acredito muito no precursor, em quem faz primeiro. Quem abre caminho apanha mais, erra mais, perde mais dinheiro”, reflete.

Para ele, essa postura explica também a diversidade de conceitos dentro do Grupo Íz. “Eu não tenho dois restaurantes com o mesmo nome em endereços diferentes. Eu sou um cozinheiro versátil, mas muito sistemático com conceito.”

Assim, cada casa tem limites claros. “Eu não posso fazer uma feijoada aqui. Não porque eu não saiba, mas porque aqui não é o lugar”, afirma. O Íz, segundo ele, é uma cozinha autoral de alma goiana e brasileira, com influências ibéricas e italianas, mas sem bandeira fixa. “É o projeto da minha vida”, resume.

E quando clientes dizem que gostam de tudo, mas ainda preferem o Íz, o chef não se ofende. “Sabe o que eu respondo? ‘Eu também. Obrigado. Que bom, você entendeu tudo. Porque é assim que é para ser’.”

Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Público exigente

Baiocchi afirma que o público local se destaca pelo nível de exigência e pela forma como consome experiências gastronômicas, o que impõe desafios adicionais a quem atua no segmento.

O público de Goiânia é muito mais exigente do que o público de Brasília. A gente tem que ser sincero nesse ponto, afirma.

Para o chef, a capital goiana desenvolveu uma relação particular com o consumo de restaurantes, especialmente no alto padrão, marcada por pouca tolerância a falhas no serviço.

“Aqui você não aceita. Aqui você é o fulano de tal”, diz, ao comparar o comportamento do cliente local com o de consumidores em cidades turísticas, como São Paulo.

Baiocchi observa que, em mercados maiores, o público tende a relevar problemas como longas esperas ou atendimento aquém do esperado, sobretudo quando está fora da própria rotina. “Você aceita ir para São Paulo, passar duas horas numa espera e ser mal atendido e está tudo bem”, afirma.

Em Goiânia, segundo ele, a percepção é outra, porque o cliente está no seu cotidiano, conciliando compromissos familiares, trabalho e tempo escasso. “O nível de complexidade na percepção do cliente é diferente quando ele está na própria cidade”, resume.

Apesar de ressaltar a admiração pelo mercado paulistano, que classifica como um dos que mais respeita no mundo, o chef avalia que Goiânia ganhou relevância nacional justamente pela combinação entre público atento e crescimento do setor.

Já ouvi de pessoas que pesquisam o setor, com base em dados, que Goiânia começou a ser testada como um dos públicos mais difíceis do Brasil quando se trata de alto padrão, relata.

Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Novo conceito de luxo e impacto no trabalho do chef

Baiocchi também relaciona o avanço do mercado de luxo em Goiânia, que inclui não apenas restaurantes, mas também academias, empreendimentos imobiliários e eventos exclusivos, a uma mudança no conceito de luxo adotado pelo consumidor.

Para ele, o luxo deixou de estar associado prioritariamente à ostentação material e passou a se concentrar na experiência e na qualidade do cotidiano. “O luxo tem sido um hábito de consumo não material”, diz, citando exemplos como comer bem, treinar em ambientes menos lotados, assistir a shows mais intimistas ou simplesmente ter tempo de qualidade no dia a dia.

Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

O chef relaciona essa visão à sua própria formação familiar. Ao lembrar do pai, que sempre trabalhou intensamente, Baiocchi destaca a importância dos “pequenos prazeres” distribuídos ao longo da rotina. “Esses pequenos luxos ao longo do dia transformam muito mais do que simplesmente comprar um item que você vai usar de vez em quando”, avalia.

Na análise do chef, essa mudança de mentalidade impacta diretamente a gastronomia autoral, que passa a ser vista como parte de um projeto de vida mais amplo, ligado ao bem-estar e à longevidade. “Aproveitar bem o tempo, que é o nosso bem mais precioso, acaba sendo o ápice do luxo”, afirma.

Ao final, Baiocchi sintetiza o que considera o novo eixo do consumo de alto padrão: “Não é o luxo da ostentação, mas o luxo da escolha de bons momentos”. Para ele, é essa busca que explica tanto a exigência do público goianiense quanto o espaço crescente para experiências gastronômicas mais sofisticadas na cidade.

Ian Baiocchi | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Experiência

A noite no Íz Restaurante começa antes do primeiro prato. Começa no ritmo desacelerado da recepção, na luz baixa, no silêncio pontuado pelo serviço que se aproxima da mesa para anunciar que a experiência ainda não começou, mas já está em curso.

A reportagem esteve no Íz, em Goiânia, ao lado do repórter fotográfico Guilherme Alves, para atravessar a jornada de um menu degustação servido a R$ 465 por pessoa. São oito etapas, sendo três delas pensadas como boas-vindas do chef Ian Baiocchi. Não se trata de matar a fome, mas de preparar o paladar.

Marlos Vinícius | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

O couvert surge como uma pausa técnica e simbólica. Pães de fermentação própria, feitos ali mesmo, chegam acompanhados de manteigas aromatizadas: abóbora com castanha de baru, beterraba com limão, tomate defumado com pequi.

Há brioche de amora, baguete italiana, pão de abóbora com gengibre e uma versão de cebola caramelizada com salmão marinado. Tudo é finalizado com flor de sal. “É um sal mais intenso, mais puro”, explica o garçom Marlos Vínicius.

Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

“A ideia é que o cliente comece a perceber a experiência antes mesmo de o menu oficial começar”, pontua Marlos Vinícius, ao apresentar o que chamam de recepção de paladar. Os primeiros bocados são pequenos e calculados.

Um homus de buchão, um crudo de robalo coberto por um crocante de zaatar, tempero oriental, acompanhado de acerola, fruta que devolve o prato ao Cerrado. “A ideia de todos eles é um bocado só”, diz o atendente. A mensagem é clara: aqui, cada gesto é pensado para caber em uma única mordida.

Em seguida, chega um bombom de coalhada com maxixe, apoiado sobre grana padano e finalizado com maçã verde, gorgonzola e mel. “Ele é inegavelmente agridoce”, define Marlos, como se o prato pedisse menos explicação e mais entrega.

Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Quando o menu começa oficialmente, ele olha para trás. “A gente inicia relembrando um pouco das nossas raízes”, anuncia a equipe, antes de servir uma releitura do pastel da Avenida 74, endereço emblemático do Centro de Goiânia.

Uma base fina e crocante sustenta o tartar de carne, coberto por abobrinha laminada e pequenas esferas salinas que lembram caviar. “Quando coloca na boca, dá aquele ‘crack’”, descreve o atendente. O prato tenta dizer, sem palavras, que tradição também pode ser textura.

Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

O peixe chega como um intervalo entre o mar e a terra. Um cherne, vindo da costa do Rio de Janeiro, repousa sobre uma espuma de legumes e um ragu de pupunha. “É um peixe com muita gordura, muito sabor”, explica Marlos.

O azeite português entra apenas no final. “Ele traz aroma e completa o prato.” Tudo aqui parece obedecer a um tempo que não é o do relógio. Na etapa principal, o cliente escolhe o caminho final: mar ou terra.

Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Na terra, o protagonista é o cupim braseado, cozido por até 18 horas. A carne passa pela geladeira para firmar a gordura, é porcionada e servida com legumes, brotos e flores. O prato recebe um ponzu adaptado, com laranja, limão, shoyu e óleo de gergelim.

“É um molho japonês, mas pensado para o cupim”, explica a equipe. O molho chega quente, quase como um gesto final de cuidado. As sobremesas encerram a jornada sem quebrar o ritmo. Uma delas traz chocolate goiano, recheado com laranja e crocante, acompanhado de sorvete de gengibre e castanhas.

Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Outra aposta na delicadeza: sumo de romã despejado sobre mousse de doce de leite e mascarpone, com sorvete de figo. “A gente gosta de brincar com as texturas”, resume. Na taça, a escolha também fala de território.

Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Um Syrah Reserva 2022, da Vinícola São Patrício, em Goiás, acompanha a sequência. “O objetivo do chef é valorizar o produto regional, inclusive os vinhos”, explica o garçom Wellington Felipe, responsável pela carta de vinhos do sommelier Diego Arrebola.

Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

Cozinha argentina

Em meio à expansão da gastronomia de alto padrão em Goiânia, o restaurante El Argentino tem buscado se afirmar a partir de um posicionamento claro: fidelidade à culinária argentina, carnes premium e uma experiência que vai além do prato.

A avaliação é de Ruth Capistano, sócia-proprietária da casa, em entrevista ao Jornal Opção. Segundo ela, o diferencial está na combinação entre tradição, atendimento e constância.

A gente tenta dar uma experiência completa, do começo ao fim, e ser o mais fiel possível às raízes da Argentina. Claro que com um toque brasileiro, mas sempre respeitando muito a culinária argentina, afirma.

Essa fidelidade, destaca Ruth, é um dos fatores que ajudam a explicar a longevidade do restaurante em um segmento que, segundo ela, enfrenta dificuldades para se manter estável na capital.

“Em Goiânia são poucas parrilhas, e as que têm não conseguem durar muito. A gente sempre manteve o mesmo modelo de serviço e de pratos. Tudo foi sendo aprimorado, mas nunca fugimos da origem do restaurante.”

Além da parrilha, a casa aposta em cortes exclusivos e receitas tradicionais que fazem parte da história dos sócios. “Nosso parrilheiro, o Santiago, que é um dos sócios, trouxe alguns cortes e preparos que são exclusivos da casa, muitos tradicionais da família dele. Isso foi incorporado ao menu”, explica.

Foto: El Argentino

Cliente mais informado e exigente

Para Ruth Capistano, o perfil do consumidor mudou nos últimos anos. Mais do que exigente, ele está mais informado. “Hoje as pessoas pesquisam mais, buscam experiências diferentes. A tecnologia ajudou muito nisso”, avalia.

Essa mudança também se reflete no público do restaurante, que varia conforme o horário. No almoço, o destaque é o menu executivo. “Durante o dia, a gente recebe muito o público que trabalha ali na região: médicos, advogados, pessoas de terno e gravata. É gente que busca qualidade, mas também rapidez. Nosso executivo sai em menos de uma hora”, diz.

Já no jantar, o ambiente se torna mais intimista. “À noite, é só à la carte. O público é majoritariamente casal, muita comemoração de aniversário. É um restaurante mais intimista mesmo”, resume. No quesito carnes premium, a casa adota uma política rígida de fornecedores.

Segundo Ruth, o El Argentino trabalha com apenas três parceiros fixos. “A gente prefere não ter o produto do que ter algo que não seja bom e não condiz com o que a gente vende”, afirma.

Ela conta que alguns cortes de alta demanda, como a tira de asado, chegam a ficar semanas fora do cardápio. “Às vezes ficamos um mês sem, porque falta no fornecedor. Quando tentamos comprar de outro lugar, a carne não é boa”, relata.

O controle de qualidade passa também pelo olhar experiente do parrilheiro. “O Santiago, só de encostar na carne, já sabe se é boa ou não. Já aconteceu de comprarmos uma caixa ótima, pedirmos mais e o restante vir tão ruim que não tivemos coragem de servir”, conta.

Foto: El Argentino

Vinhos e ticket médio

O crescimento da gastronomia premium também impulsionou a venda de vinhos mais caros. De acordo com Ruth, os rótulos argentinos lideram a preferência. “Alamos, Catena Zapata, El Enemigo e Alma Negra são os que mais saem”, afirma.

A faixa de preço mais consumida está entre R$ 200 e R$ 400, embora a casa ofereça rótulos que chegam a R$ 1.800. “Esses mais caros também têm saída, mas a média fica mesmo entre 400 e 500 reais”, diz.

No caso dos pratos, o ticket varia bastante. No executivo, os valores vão de R$ 64,90 a R$ 129,90. À noite, com o menu à la carte, o gasto médio sobe. “Um casal gasta entre R$ 300 e R$ 400, sem vinho”, estima. O El Argentino também recebe clientes de outros estados e até estrangeiros, atraídos principalmente pelas avaliações online.

“A gente investe muito no Google e no TripAdvisor. Todo ano ganhamos o Traveller’s Choice, e isso traz muita gente de fora”, diz Ruth. A localização de um dos restaurantes no Setor Oeste, próxima a hotéis, reforça esse fluxo. “Tem muito estrangeiro. A gente fala: ‘Pega o tradutor e vai.’”

Sobre o futuro, a sócia avalia que Goiânia comporta o tamanho atual da operação. “A gente não acha que saturou, mas três casas já são suficientes aqui”, afirma, citando unidades no Setor Oeste, Bueno e no Park Lozandes, região próxima aos condomínios.

O próximo passo, segundo ela, é pensar além das fronteiras do estado. “Nosso plano é expandir nacionalmente, talvez para Brasília. E, mais à frente, existe um projeto mais audacioso de abrir uma casa fora do Brasil”, revela.

Com experiência internacional dos sócios, a ideia inclui os Estados Unidos. “Eu e o Ulisses [outro sócio] já moramos em Boston, o Santiago é uruguaio, a gente já trabalhou com restaurante fora. Quando tudo aqui estiver mais estabilizado, a gente pensa em abrir uma casa lá fora. É um plano de longo prazo”, conclui.

Ruth Capistano | Foto: Arquivo pessoal

Na parrilla

À frente da parrilla, o parrilleiro Santiago explica que o conceito da casa aposta na técnica tradicional argentina, sem excessos ou intervenções desnecessárias. “Nosso conceito é baseado na simplicidade bem executada. Respeitamos o produto acima de tudo, valorizando a qualidade da carne, o ponto correto e a técnica da parrilla argentina tradicional”, afirma ao Jornal Opção.

Segundo ele, o sabor final é resultado direto da matéria-prima e do domínio do fogo. “Evitamos excessos. O sabor vem da carne, da brasa e do tempo”, resume. Essa filosofia começa ainda antes de a carne chegar à grelha, com uma curadoria criteriosa de fornecedores.

Foto: El Argentino

“Priorizamos origem certificada, padronização e bem-estar animal. Só depois disso o corte entra no menu, sempre passando por testes de qualidade e desempenho na parrilla”, explica. A fidelidade à técnica argentina é um dos pilares do restaurante.

Santiago destaca que o El Argentino preserva integralmente o método tradicional, com controle rigoroso do calor, uso correto da brasa e temperos mínimos. “Basicamente sal, no momento certo. Trabalhamos com tempos corretos de descanso e calor controlado. Não abrimos mão disso”, diz.

Embora a casa priorize estabilidade e identidade, há espaço para novidades pontuais, especialmente diante de um público cada vez mais interessado em experiências diferenciadas. “Percebemos uma demanda crescente por cortes especiais, principalmente entre clientes que já conhecem bem a parrilla tradicional. Mas toda novidade precisa respeitar nossa essência”, ressalta.

Foto: El Argentino

Entre os cortes que melhor representam o El Argentino, Santiago cita clássicos da parrilla argentina. “Bife de chorizo, ojo de bife e vacío são símbolos da casa. Eles traduzem bem nossa filosofia: carnes nobres, preparo preciso e sabor puro”, afirma.

A recepção do público goianiense, segundo ele, é bastante positiva.

É um público aberto, que valoriza qualidade. Muitos já chegam conhecendo a parrilla argentina, outros descobrem aqui um novo padrão de sabor, o que gera fidelização.

Manter a consistência no ponto da carne é um dos maiores desafios técnicos da parrilla. “O desafio é repetir o padrão todos os dias, independentemente do movimento da casa. Isso exige controle absoluto da brasa, leitura constante da carne e uma equipe muito bem treinada. A parrilla não admite atalhos”, afirma.

No salão, a experiência se completa com o trabalho do sommelier e da equipe de atendimento. A harmonização entre carne e vinho leva em conta tanto o corte quanto o ponto escolhido pelo cliente. “Cortes mais marmorizados pedem vinhos mais estruturados e com boa acidez. Nosso papel é orientar para que vinho e carne se complementem, sem sobrepor sabores”, explica.

Carta de vinhos

Há também um interesse crescente por rótulos especiais. “Existe uma curiosidade maior por reservas especiais e vinhos com mais tempo de guarda. O cliente quer entender a origem, o método de produção e a história da garrafa”, afirma.

Nesse contexto, o restaurante investe em jantares harmonizados, degustações guiadas e eventos temáticos. “Acreditamos muito na educação do paladar e na experiência completa”, acrescenta.

Foto: El Argentino

Clientes

Do ponto de vista do serviço, o comportamento do público reflete esse perfil mais exigente. Segundo Santiago, os cortes clássicos seguem entre os mais pedidos, mas há abertura para sugestões.

“Os clientes mais fiéis costumam repetir os mesmos cortes, mas gostam de arriscar algo novo quando sugerimos”, relatam. Clientes habituais geralmente chegam decididos, enquanto os novos buscam mais orientação.

“Muitos cortes são exclusivos da casa e desenvolvidos pelo chef Santiago. Aí o atendimento faz toda a diferença para explicar e dar segurança na escolha”, afirma. A procura por entradas, sobremesas e bebidas premium também cresceu. “O cliente hoje quer a experiência completa, não só o prato principal.”

No caso do público de alto padrão, o perfil é de atenção aos detalhes. “É um cliente curioso, que gosta de conversar, entender a técnica, a origem da carne e a harmonização. Não é alguém com pressa, mas alguém que quer viver a experiência do início ao fim”, relata.

Entre as perguntas mais frequentes nas mesas estão as diferenças entre os cortes, o ponto ideal da carne, sugestões de vinho e curiosidades sobre a parrilla e a proposta argentina do restaurante.

Foto: El Argentino

Contraponto

Há 35 anos trabalhando com comida em Goiânia, o cozinheiro Humberto Marra construiu uma trajetória que passa longe do circuito tradicional dos restaurantes e do discurso consagrado da chamada alta gastronomia.

Goiano, autônomo e crítico ferrenho das estruturas do setor, ele define sua cozinha como um posicionamento ético, político e social, e rejeita rótulos, títulos e hierarquias.

“Eu não sou gastrônomo, nunca fiz faculdade de gastronomia. Quando eu quis aprender a cozinhar, eu não fui para a faculdade, eu fui para a cozinha”, afirma em entrevista ao Jornal Opção.

“Não gosto que me chamem de chef de cozinha. Eu sou um cozinheiro. Se eu estiver num cargo de chef, tudo bem, mas mesmo assim eu não gosto.” Marra conta que, após cerca de 15 a 20 anos no setor de alimentação, passou a se afastar do modelo convencional dos restaurantes.

Segundo ele, o ambiente profissional e as dinâmicas de trabalho entraram em choque com seus valores pessoais. “Cozinhar sempre foi, para mim, um ato político e social. Mas o setor de alimentação foi devastando muitos ideais. Hoje, o que eu faço não tem nada a ver com esse setor”, diz.

Atualmente, ele atua de forma independente, com foco em agroecologia, sustentabilidade, bem-estar, produtos locais, “goianidade” e cozinha social. “Eu não dependo desse mercado. Não trabalho para ninguém, não cozinho em escala, muito menos em escala 6×1. Hoje eu digo de boca cheia: eu não dependo desse setor e faço um trabalho que me realiza e que entrego para centenas de pessoas.”

Questionado sobre a abertura do público goianiense a propostas mais autorais e de alto padrão, Humberto relativiza o debate e amplia o recorte. “Eu não falaria só de Goiânia. Coloco no mesmo grupo todas as cidades novas, sem tradição urbana. Existe curiosidade, sim. As pessoas vão, querem conhecer. Não sei se entendem tudo, mas há uma abertura”, avalia.

A crítica mais dura aparece quando o assunto é a diferença entre restaurantes considerados de alto nível e estabelecimentos convencionais. Para Marra, a distinção é superficial.

Da porta da cozinha para dentro, é a mesma coisa que uma lanchonete de esquina. Às vezes, a lanchonete trata melhor o funcionário, tem mais higiene e processos mais bem resolvidos do que restaurante de alta gastronomia, dispara.

“Socialmente e no trabalho, não existe diferença. Todo mundo está no mesmo calor, com salários horrorosos, trabalhando em escala 6×1.” Ele afirma já ter trabalhado em restaurantes premiados em Goiânia e classifica o cenário como abusivo.

“Trabalhei em restaurante superpremiado que tinha histórico de 60 funcionários e isso tem três anos. Isso é um abuso.” Para o cozinheiro, a criatividade está diretamente ligada ao público-alvo. “Cada cozinheiro cozinha para um grupo específico. O gosto do meu cliente é o que eu vou cozinhar para ele”, explica.

Hoje, segundo ele, seu trabalho está mais voltado a encomendas e ao atendimento direto de famílias. “No fim do ano, Natal, isso para mim é muito mais prazeroso do que ficar na boca de fogão de dono de restaurante.”

Ao ser provocado sobre Goiânia já ser um mercado consolidado de alta gastronomia, Marra diz: “É propaganda para vender. Goiânia é muito nova. Como falar de algo ancestral num mercado com 80 anos? É um bebê. Não sabe comer, não sabe vender, não sabe ter experiência. Isso é dourar a pílula.”

Na avaliação dele, a comida que realmente define o território está fora dos restaurantes. “Você tem meia dúzia de restaurantes fazendo gastronomia e centenas de milhares de pessoas fazendo comida perfeita dentro de casa”, afirma.

Marra encerra com uma crítica à herança europeia ainda dominante no discurso gastronômico. “O Brasil não precisava disso. O Brasil sempre teve uma comida maravilhosa, feita pelas mulheres pretas, uma cozinha que não tem nada a ver com o europeu. Mas alguém resolveu importar esse modelo”, conclui.

Humberto Marra | Foto: Arquivo pessoal

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