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Relatos de migrantes de estados brasileiros e de países vulneráveis que chegaram à capital goiana em busca de possibilidades – e as conquistaram

“Marcha para o Oeste” é como era chamado o movimento promovido pelo então presidente Getúlio Vargas com a intenção de explorar e desenvolver áreas das regiões Centro-Oeste e Norte do Brasil. Esse foi, inclusive, um tema abordado pelo próprio Vargas em uma visita a Goiânia, no ano de 1940. A ditadura do Estado Novo acabou, mas os fluxos migratórios não diminuíram. 

No último Censo Demográfico, produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010 e divulgado em 2013, a capital goiana foi considerada a segunda capital que mais atraía migrantes no Brasil – perdendo apenas para sua vizinha, Brasília. 

Na época, o próprio  geógrafo e professor do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás (Iesa-UFG), João Batista de Deus, afirmou que essa população que migra para a Região Central do Brasil era formada por pessoas de baixa renda, que enfrentavam grandes barreiras na qualificação profissional e educacional. Em pleno 2021, Goiânia segue recebendo pessoas que chegam de outras regiões e outros países em busca de oportunidades – e encontram acolhimento. 

Quanto a estrangeiros, em 2019 o Sistema de Registro Nacional Migratório da Polícia Federal registrou cerca de 740 pedidos de regularização migratória para Goiânia, sendo esse número 50% maior que no ano anterior – 480 pessoas – 92% desses migrantes (680 pessoas) vieram por deslocamento forçado. As principais nacionalidades registradas entre essa população são da Venezuela, Haiti, Colômbia, Líbia, Peru, Bolívia, República Democrática Do Congo, Argentina e Chile.

Essas pessoas, no entanto, demonstram distintos perfis, fazendo com que se sintam atraídas pela cidade por motivos diversos: seja a saúde, educação, trabalho ou até realização pessoal de um ou outro nível. Para Johnnyldo Barbosa, natural de Manaus, no Amazonas, essa razão foi pela saúde de sua mãe, que desenvolveu um câncer de mama e os médicos locais recomendaram que o tratamento fosse realizado na capital goiana.

Por ser o único filho solteiro e sem estabilidade profissional no estado do Amazonas, John foi o escolhido da família para morar com a mãe em Goiânia e lutar contra a temida doença. “Ficamos sabendo que a saúde de Goiânia era referência entre o Norte e o Nordeste e viemos. Para se ter noção, já encontrei aqui umas dez pessoas da minha cidade que vieram fazer tratamento”, disse o amazonense. 

Vir para Goiânia, no entanto, não estava em seus planos. Isso, porque Johnnyldo se formou no ensino fundamental e médio, fez curso técnico em informática e manutenção de computadores, cursou gestão pública, e já se encontrava empregado no Centro de Educação Tecnológica do Amazonas (CETAM), local onde havia se formado. Com a vida encaminhada, o receio da mudança foi grande. Entretanto, desde que se mudou permanentemente para a cidade goiana em 2012, teve realizações inesperadas, não tendo vontade de retornar para terra natal. “Hoje não penso mais em voltar para Manaus. Vou ficar só aqui e vou vencer aqui, viu?” Não há quem duvide.

Somente a Avenida Anhanguera, considerada a artéria central de Goiânia, com seus treze quilômetros, foi cenário de sua rotina cotidiana durante oito anos, já foi empregado em três lojas distintas que se localizavam próximas na mesma via. John já morou no Bairro Novo Mundo e se apaixonou pelo centro da capital. O Lago das Rosas, um dos principais cartões postais de Goiânia, é citado como um de seus locais prediletos, constantemente frequentado aos finais de semana. “Goiânia é uma área arejada, não é?! É uma cidade bonita, tão jovem, mas tão bela e encantadora, bem trabalhada…”, caracteriza Johnnyldo. 

Quem também teve passagem por Manaus, apesar de ser natural de São Luís, no Maranhão, é Gilmar de Oliveira. Com uma longa e diversa trajetória, Gilmar passou por diversos lugares antes de chegar em seu “pote de ouro do fim do arco-íris”: a capital goiana. Quase sempre trabalhando como pedreiro e pintor, ele partiu de São Luís para os municípios maranhenses Pindaré-Mirim, Santa Inês, e logo em seguida para Castanhal, no Pará. Antes de chegar na capital goiana, passou um ano em Belém (PA) e seguiu para Manaus, onde trabalhou na Zona Franca de Manaus com a venda de produtos importados. 

Saindo de Manaus, chegou a retornar ao Maranhão, se dirigindo a Imperatriz e logo em seguida a sua cidade natal, São Luís. Com poucos recursos, utilizou tudo o que tinha para adquirir um lote e continuar sua rotina de trabalho. Quem o trouxe para Goiânia no ano de 1999, foi sua segunda esposa, com quem não é mais casado. Segundo ele, por já ter trabalhado na capital, conhecia e recomendava a cidade para quem queria “prosperar”. Apesar do receio, Gilmar diz ter se surpreendido. Sua atual esposa veio de uma paixão antiga de resgate de suas raízes em Goiânia: o reggae.

Ele conta que ao visitar a Feira da Marreta, localizada no setor Nova Vila, em um típico domingo, para procurar objetos de colecionador, recebeu um convite inusitado. Tudo começou em sua procura por um CD ou DVD de reggae. Ao receber uma negativa dos vendedores do local, escutou uma voz ao seu lado de um rapaz que seria seu grande amigo pelos próximos anos.

– Oh maluco, você gosta de reggae?
– Sim.
– Vá na Boate Calypso, em Aparecida de Goiânia.

Apesar de não conhecer o homem misterioso que fez o convite, Gilmar foi recebido como Gil do Reggae, apelido pelo qual passou a ser conhecido. Desde então, trabalha com eventos e promove festas embaladas ao som de reggae. As chamadas Domingueiras Reggae – a próxima, inclusive, está marcada para o próximo dia 7 de novembro. Em paralelo, Goiânia fez outras marcas em sua história. Gilmar se lembra de, por um tempo, ter trabalhado na limpeza das arquibancadas do Estádio Serra Dourada, considerado o “maior palco do futebol goiano”. Além do estádio, a antiga Agetop e a Garra Forte estão em seu histórico de trabalhos na cidade.

Hoje, com seus 63 anos, além do trabalho como produtor de eventos, e especialmente de eventos de reggae, faz pequenos serviços de pintor, encanador e pedreiro. “Os [trabalhos] que mantêm os pés no chão”, ele diz, ao preferir não subir mais em andaimes ou elevadores de obra. Além disso, vende ferramentas em feiras e sempre busca tirar um tempo para ajudar seus amigos ou todos aqueles que a requerem. “Os faço [serviços] até de graça mesmo. Os eventos de música, por exemplo, eu vou porque amo música”, diz.

Mesmo tendo vindo para a capital goiana pouco antes de completar 50 anos, Gilmar, que também produz eventos para a Associação de Trabalhadores Civis de Goiás, em que Carlos Alberto é presente, pretende algum dia retornar ao Maranhão. Isso, porque para ele, seu grande objetivo já está sendo concluído. Ao vir de São Luís com apenas “uma cama e um fogão”, diz que voltará à cidade natal levando consigo os grandes frutos conquistados, sejam materiais ou de aprendizado. 

Presidente da associação em que Gilmar atua, Carlos Alberto, por outro lado, diz que veio para Goiânia para “ficar até a morte”. Por estar na cidade há trinta anos, passou por “poucas e boas” antes de chegar ao conforto de hoje. Carlos é natural de Codó, no Maranhão, cidade em que ajudava sua mãe na criação de oito dos seus dezesseis irmãos, trabalhava com seu pai no açougue e fazia de tudo para colaborar com a renda de sua família. Seu sonho por uma vida melhor e, principalmente, por fornecer o conforto a seus pais, foi o que o motivou a vir, metade à pé, metade de carona, ao estado de Goiás e à cidade de Goiânia. 

Aqui, dificuldades não cessaram de imediato. Apesar de ter conseguido emprego como ajudante de pedreiros no Bosque dos Buritis durante a reforma do poço buriti, passou meses revezando as noites de sono entre o banco, o banheiro da rodoviária e o próprio chão da Praça Cívica, centro da cidade de Goiânia. Chegou a se candidatar como vereador da cidade logo que chegou, aos 18 anos, filiado ao Partido dos Trabalhadores. 

Ainda que não tenha sido eleito, sua luta pela classe trabalhadora não teve fim ali. Antes de criar a  Associação dos Trabalhadores Civis de Goiás, que já foi chamada de Associação dos Pedreiros de Goiás, Carlos foi gerente de três parques: Bosque dos Buritis, Vaca Brava e Parque Areião, todos cruciais à história da cidade. Sua relação direta com os parques da cidade lhe proporciona sentimentos natos daqueles que se dizem “do pé rachado’. “Eu faço parte da história de Goiânia”, expressa.

Apaixonado em ajudar as pessoas da mesma forma em que foi ajudado quando chegou em Goiânia, Carlos também criou o Talento Cursos, com cursos livres e profissionalizantes. Além das aulas fornecidas na sede, que funciona na Rua 3, localizada no centro da cidade, a escola tem parceria com diversas prefeituras de municípios do entorno da capital, fornecendo aulas gratuitas para as respectivas populações.

Além de sua esposa, que é goianiense e conheceu aqui na cidade depois que chegou, Carlos afirma que seus outros presentes são seus filhos, que hoje cursam Medicina e Fonoaudiologia, na Pontifícia Universidade Católica de Goiás, também na cidade de Goiânia. Seu hobby preferido também nasceu aqui: visitar feiras e comer pastel. Suas prediletas: a do setor Vila Nova, Feira do Sol e Feira da Lua.

Na do Sol, quando a visita aos finais de semana, o sentimento é de gratidão. “É muito gostoso frequentar à passeio um local que eu trabalhei por muito tempo, para complementar a renda, vigiando carros de outras pessoas na rua. Eu sempre falo: ‘Meu Deus, hoje eu estou aqui passeando!’. O mundo dá muitas voltas”, desabafa, emocionado. 

Quem também atua na Associação presidida por Carlos é Cícero. Seu amor pelo estado de Goiás é refletido logo em seu nome. Ou melhor, apelido. Cícero Rocha, tocantinense criado no estado da Bahia, passou a ser conhecido como Cícero Goiás quando se mudou para a capital goiana e se percebeu completamente encantado com a cidade. 

Falar de Goiânia, para ele, é motivo de grandes emoções. “Preciso de uma bacia para conter as lágrimas”, admite, ao perceber grande diferencial em sua vida depois de se estabelecer na cidade. Assim como Johnnyldo, a saúde e a qualidade de vida foram aspectos que pesaram no momento de tomar a decisão de se mudar. “Achamos que Goiânia ainda é um lugar que as famílias vivem com maior dignidade, então nós nos agarramos na terra do pequi, que na realidade, para nós, é o coração do Brasil”, mensurou. 

Ao chegar na capital com sua esposa e seus cinco filhos, a política esteve muito presente em sua vida. Se candidatou a vereador, deputado estadual e trabalhou na Prefeitura, durante a segunda gestão de Íris Rezende. Enquanto atuou na secretaria de Educação, inclusive, seus colegas o incentivaram a cursar o nível superior, já que Cícero só tinha o ensino médio completo.

Foi então na Faculdade Lions, após um ano de cursinho pré-vestibular, que em 2011 Cícero entrou para o curso de Direito. Hoje, atua como advogado e trabalha em favor de diversas entidades (como a própria Associação dos Trabalhadores Civis). Ele explica que, a mudança de vida, para quem só atuava como mecânico quando morava no Maranhão, foi grande e perceptível. Hoje, Cícero também não pretende sair do município. Encantado pela culinária, se delicia com pratos de frango com pequi em suas refeições e faz o possível para ajudar quem está ao seu redor com os recursos que detém. 

Não apenas um refúgio e um local acolhedor a pessoas de outros estados, assim como os dados revelados pelo site da Polícia Federal, estrangeiros vêm aos montes ao Brasil e à Goiânia, na busca por novas oportunidades. Carlos Hernández e Saturnina da Costa, originários da Venezuela e da Guiné-Bissau, respectivamente. Vindos de cultura diferente, chegar ao Brasil foi um choque, ainda que tenham vindo em busca de oportunidades. Enquanto Carlos buscava um trabalho e maior liberdade, Nyna veio para estudar e alcançar sua independência.

Para vir ao Brasil, Carlos precisou abrir mão de certas coisas, como sua graduação em Engenharia Civil em uma faculdade militar. Como os aspectos negativos, segundo ele, pesaram mais, não foi uma decisão muito difícil de tomar. “Eu já não tinha oportunidades. A inflação estava muito alta. Eu vendia minhas coisas materiais para me sustentar e dar uma vida melhor às minhas filhas, mas não dava. Tudo estava caro e aumentava todo dia”, relatou.

Ao conseguir algum dinheiro, em 2017 se dirigiu a Roraima, algo que não considera ter sido uma experiência tão positiva. Lá, a xenofobia foi grande, algo que diz não ter encontrado em Goiânia. Veio para a capital goiana em 2019, mas ainda que seja recente, já conseguiu abrir sua própria empresa de construção civil, onde prioriza a contratação de venezuelanos e outros estrangeiros, na intenção de fornecer oportunidades àqueles que vêm em busca delas.

Saturnina, por outro lado, ainda que não tenha vindo de origem tão humilde e que tenha encontrado certas resistências na capital goiana – como constantes episódios de xenofobia, machismo e racismo -, para ela, Goiânia é sinônimo de aprendizado, independência, empoderamento e oportunidades. Como seu aspecto predileto na capital goiana, Saturnina cita a calmaria. Ao morar perto do Campus Samambaia da UFG, localizado próximo à Vila Itatiaia, ela comemora o fato de poder habitar em um local de oportunidades e, ao mesmo tempo, silencioso e pouco estressante. 

Aqui, se formou em Ecologia e Análise Ambiental pela Universidade Federal de Goiás (UFG), participou de diversos programas da universidade e, através de incentivo de sua própria orientadora, criou sua marca de roupas e acessórios africanos, chamada Nyna Koxta.

Com a Nyna Koxta, Saturnina faz desfiles em parceria com a Universidade Federal de Goiás e até com a Prefeitura de Goiânia, priorizando na passarela pessoas negras, refugiadas, plus size e com deficiência, com intenção de priorizar a inclusão. Apesar de, no momento, estar em busca de uma segunda fonte de renda para sustentar sua bebê de sete meses, Bethany, ela explica que sua marca proporcionou conquistas inimagináveis a sua trajetória.

Seu próximo desfile, inclusive, será realizado em homenagem ao aniversário de 88 anos da cidade, durante a Feira das Pretas, promovida pela Secretaria de Direitos Humanos e Políticas Afirmativas. Próximo desafio à vista, iniciou a escrita de um livro de auto ajuda voltado a mulheres com câncer de mama. “Estou selecionando uma representante de cada estado para poder ver essa diferença geográfica, como é em cada lugar, como é a relação com a família, se há apoio ou abandono…”, conta. A intenção, inclusive, é contar com o apoio da UFG na publicação da obra que possui tamanha importância social.