Entenda o histórico político da crise da saúde em Goiânia
28 janeiro 2024 às 00h01
COMPARTILHAR
Ainda nesta semana, o Jornal Opção noticiou o fechamento do Centro de Referência em Ortopedia e Fisioterapia (CROF), em Goiânia. Funcionários denunciaram o desmonte da unidade ao longo dos últimos cinco anos. As três maternidades da cidade paralisaram seus atendimentos em setembro do ano passado por 60 dias, quando apenas serviços de urgência e emergência funcionaram. Servidores relataram falta de insumos básicos e pagamento, com salários atrasados desde o mês de maio.
As maternidades Hospital e Maternidade Dona Iris (HMDI), Nascer Cidadão (MNC) e o Hospital e Maternidade Municipal Célia Câmara (HMMCC) funcionam sob gestão da Fundação de Apoio ao Hospital das Clinicas (Fundahc), que alegou falta de pagamento da prefeitura. Uma enfermeira do HMMCC afirmou que, no hospital, faltavam ambulâncias para transferência dos pacientes. Em setembro de 2023, a diretora da Fundahc, Lucilene Maria de Sousa, disse ao Jornal Opção que nas maternidades faltavam analgésicos para as pacientes grávidas, que estavam dando à luz sem a medicação adequada.
O ponto mais crítico talvez seja a gestão do IMAS (Instituto Municipal de Assistência à Saúde dos Servidores de Goiânia). Os servidores públicos pagam mensalmente pela assistência, mas não estão recebendo atendimento. A porta de entrada para a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), Pronto-Socorro Psiquiátrico Professor Wassily Chuc, reflete o sucateamento saúde mental na capital.
A Rede de Atenção à Saúde em Goiânia é composta por:
- 54 Unidades de Saúde da Família
- 21 Centros de Saúde
- 16 Unidades de Atenção à Urgência
- 14 Centros de Atenção Psicossocial
- 3 Maternidades
- 13 Ambulatórios de Especialidades
- 1 Farmácia de Insumos e Medicamentos
- 1 Centro Municipal de Vacinação
- 1 Central de Regulação
Além de serviços contratualizados (internações, exames e reabilitação).
Diante da situação enfrentada pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS), a reportagem questionou a pasta se seria necessária a criação de um Hospital Municipal em Goiânia. “Não há nada definido a respeito desse assunto”, afirmou a SMS. Em entrevista ao Jornal Opção, o Secretário de Saúde, Wilson Pollara, disse que “Goiânia tem tudo para ser exemplo para o Brasil” e os problemas na Saúde de Goiânia poderiam ser resolvidos com melhoria na atenção básica.
Segundo o secretário, há um erro na distribuição de demandas nas unidades, fazendo com que alguns locais estejam lotados de pacientes aguardando atendimento, enquanto outros que executam o mesmo serviço estão vazios. O titular da pasta explicou à reportagem que assumiu a Secretaria em um momento difícil por conta da herança deixada pela pandemia da Covid-19, que causou uma crise geral na saúde, pública e privada. “Foram muitos contratos e convênios feitos, muitas UTI’s (Unidade de Terapia Intensiva) contratadas e muitos recursos foram desviados para a alta complexidade, tirando os recursos da atenção básica”, pontuou.
O médico Wilson Pollara assumiu no dia 3 de outubro a Secretaria de Saúde de Goiânia. A saída de Durval Pedroso do cargo marcou o início da reforma do secretariado municipal. Pollara é professor, pós-graduado, Mestre, Doutor e Livre-Docente em Cirurgia Geral, com experiência na área de saúde e também em administração hospitalar. Ele foi secretário-adjunto do Governo do Estado de São Paulo durante a gestão de Geraldo Alckmin e secretário municipal de João Doria.
Sônia Maria Ribeiro dos Santos, presidente do Conselho Municipal de Saúde em Goiânia, afirmou: “O SUS foi concebido dentro do modelo de atenção à saúde, e qual é o modelo? Investir na atenção primária exatamente para diminuir custos com a atenção secundária e terciária. No caso, um hospital estaria na terciária.”
Para ela, a falta de investimentos na atenção primária — de prevenção/promoção da saúde — é uma das falhas que explica a alta demanda nas áreas secundária e terciária. “Isso não significa que não seja necessário investimentos também nesse outro nível da atenção”, pontuou Sônia. “A demanda de atenção hospitalar em Goiânia realmente existe? Seria uma demanda por policlínicas ou um hospital geral? Precisamos de estudos mais aprofundados”, questionou a representante.
Néia Vieira, presidente do Sindicato dos Trabalhadores do Sistema Único de Saúde no Estado de Goiás (Sindsaúde-GO), afirma que um Hospital Municipal poderia resolver a demanda da saúde na capital. “Goiânia compra muitos serviços da rede privada de saúde do município, exatamente porque não tem um hospital municipal capaz de atender especialidades e atender as demandas da população de modo geral”, explicou.
Qual prefeito fez mais pela saúde em Goiânia?
Para entender a crise na saúde municipal, faz-se necessário um histórico dos últimos 20 anos. Considerado por muitos como o herdeiro de Pedro Ludovico Teixeira, Iris Rezende é ainda hoje um dos prefeitos mais lembrados pela população e ficou conhecido como um tocador de obras. Entre as mais importantes, estão o Parque Mutirama, o Centro de Convenções de Goiânia, a Rodoviária, pavimentação e construção de vários conjuntos habitacionais. Se aproximou da população com seus mutirões populares e possui um inegável legado para a capital, mas não deixou uma grande obra na área da saúde. Durante os dez anos em que foi prefeito, Iris Rezende (MDB) não construiu nenhum hospital em Goiânia. Durante sua gestão, faltaram profissionais, medicamentos e sobraram doentes não atendidos.
Tanto Sônia Maria quanto Néia Vieira apontaram a gestão do professor Pedro Wilson (PT) como aquela em que houve maior “incentivo à atenção básica”. A presidente do Conselho Municipal elogiou a gestão de Pedro Wilson (PT) em especial pela democratização do acesso e profissionalização dos servidores. “Por exemplo, no governo Pedro Wilson houve uma expansão muito grande da Rede de Atenção Psicossocial”, pontuou.
Os especialistas entrevistados afirmaram que, para avaliar a melhoria na área, é necessário visualizar um conjunto de indicadores, como estrutura básica, investimento financeiro, gestão administrativa, valorização profissional e inovação tecnológica. “Pedro Wilson criou equipes de saúde da família. Houve a entrada dos agentes comunitários na sociedade, a possibilidade de termos uma atenção básica fortalecida, populações periféricas sendo atendidas, muitos postos de saúde sendo abertos com essas equipes de saúde da família. Também foi um período em que se investiu na construção da Maternidade e Nascer Cidadão”, explicou Néia Vieira.
Durante as últimas gestões, incluindo as de Iris Rezende e de Paulo Garcia, testemunhou-se um aprofundamento da crise na área da saúde. Houve escasso investimento e uma gestão considerada desqualificada pelos pacientes e representantes do setor.
Entretanto, Néia Vieira, presidente do Sindsaúde afirma: “O pior momento que a saúde vive em Goiânia é agora com o prefeito Rogério Cruz, com o ex-secretário Durval Pedroso. O doutor Pollara chegou muito recentemente a Goiânia, mas a gente precisa ver ações mais concretas para garantir que a gente tenha, no mínimo, um pouco mais de avanços na saúde do município.”
Paulo Garcia foi vice-prefeito de Iris Rezende e assumiu o Paço com a renúncia do emedebista. Apesar de deixar a gestão mal avaliado, o petista foi responsável, na área da saúde, pela construção do Hospital e Maternidade Dona Íris, inaugurado em 2013. Natural de Goiânia, era médico neurocirurgião, formado pela Universidade Federal de Goiás (UFG), teve a militância política originada nos movimentos da vida acadêmica e nos movimentos da área da saúde.
Paulo Garcia foi também presidente da Unimed Goiânia e dirigente no Sistema Nacional Unimed; professor de Neurocirurgia e presidente do colegiado do curso de medicina da UFG; secretário da Academia Brasileira de Neurocirurgia e membro do Conselho Regional de Medicina de Goiás (CRM-GO). O prefeito dizia que a Capital sofria para atender pacientes de praticamente todos os municípios de Goiás e de outras unidades da Federação. Por isso, defendia a criação de um hospital municipal.
O Brasil precisa sentar e rediscutir o pacto federativo. Não é possível mais os municípios brasileiros ficarem com a menor fatia do bolo. Tudo o que é arrecadado no País em forma de tributo fica em sua grande parte com a União. Goiânia tem 1,3 milhão de habitantes e 6 milhões de inscritos no SUS. Goiânia acolhe pacientes de 600 municípios, sendo que Goiás tem apenas 246. Ou seja, um contingente monumental de pacientes de Estados vizinhos.
Paulo Garcia durante entrevista coletiva em 2016.
Terceirização e privatização não são soluções
Sônia Maria Ribeiro dos Santos, presidente do Conselho Municipal de Saúde, afirmou: “Desde que eu estou na presidência do Conselho de Saúde, percebo a estratégia de sucateamento da saúde pública para a transferência da gestão para Organizações Sociais de Saúde (OSs). Por exemplo, faltam insumos, medicamentos, coisas básicas para que realmente o serviço seja eficiente e sempre falta. É impressionante que a gente procura uma explicação e nunca tem uma explicação plausível’.
Através de decreto, a Prefeitura de Goiânia criou um grupo de trabalho para estudar a viabilidade de se contratar Organizações Sociais para gerir a rede municipal de Saúde da Capital. O grupo foi denominado Conselho Gestor de Parcerias Público-Privadas com Organizações da Sociedade Civil (CGPPP/OSC).
O atual Secretário de Saúde afirmou que o modelo de OSs perdeu a credibilidade. “Grandes empresas privadas de saúde buscaram a filantropia de pequenas santas casas no interior como fachada e atuar normalmente. Entretanto, o maior problema do modelo não tem a ver com a filantropia ou o lucro privado. Tem a ver com a remuneração por resultado”, disse Pollara.
O secretário afirmou: “Por mais filantrópica que uma instituição seja, é impossível trabalhar com saúde sem algum lucro que te permita reinvestir em seus serviços, ou o negócio estará sempre precário. A nova lei das OS (nº 13.019) atualizou o modelo. Agora, as OS são contratadas via licitação. Se ela for eficiente e obtiver lucro, declara o lucro e paga os impostos como os demais serviços, e está tudo bem. A nova legislação modernizou o modelo e considero que resolveu grande parte dos problemas com as OS. Antes, as empresas disfarçaram o lucro, que saía da companhia de maneira espúria. Hoje, não vemos mais casos como esses.”
A procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT), Milena Costa, reforça que os governos, após sucatearem as unidades de saúde, têm usado as organizações sociais sob a alegação de que a gestão pública é ineficiente e com isso as relações de trabalho são totalmente precarizadas, “desmantelamento total das condições de trabalho”, exemplifica. A procuradora lembrou que a prefeitura de Goiânia segue o modelo aplicado no governo do Estado: “Observamos em Goiás a ‘quarteirização’ e até mesmo uma ‘quinteirização’ dentro dos hospitais, que estão ‘pejotizando’ tudo e acabando com os processos seletivos e o regime de CLT”.
Há solução para a crise na saúde municipal?
Para a presidente do Conselho Municipal de Saúde, Sônia Maria Ribeiro dos Santos, é preciso um controle social que garanta os direitos constitucionais. “O que eu faria? Investiria pesado na atenção primária, nas unidades básicas de saúde, para fazê-las funcionarem bem, com contratação de profissionais e valorizações desses profissionais, dando as condições básicas, uma boa estrutura de funcionamento, não deixando faltar os insumos, os medicamentos, trazendo todos os equipamentos necessários para que a unidade funcione bem.”
Sônia Maria Ribeiro dos Santos explica que as Unidades de Saúde da Família em Goiânia (54 no total) precisam ser mais resolutivas e dinâmicas no atendimento. “É preciso investir em programas de prevenção e promoção de saúde. Se você fizer essas unidades funcionarem bem, cada uma em sua especificidade, nós melhoraríamos muito a situação da saúde na Capital”.
Néia Vieira citou modelos fora do Brasil que funcionam e oferecem uma saúde pública que garante atendimento de qualidade às pessoas, como na Inglaterra e no Canadá. “É possível quando se tem vontade política, quando se pensa na saúde como direito e não como mercadoria”, afirmou. Como sugestão, ela apontou a necessidade de colocar em cargos técnicos profissionais que compreendam de gestão pública e de saúde.
“O que vemos hoje é um loteamento dos cargos de direção das unidades de saúde sendo feita por vereadores à pessoas que não têm qualificação técnica para gerir a saúde pública no município”, disse Néia Vieira. Com estrutura adequada, profissionais qualificados, a decisão pelo investimento fica facilitada porque há menos possibilidade de desvios e má aplicação desses recursos.
Como exemplo, ela citou como é feita a gestão da educação. Os diretores dos CMEIs (Centros Municipais de Educação Infantil) são escolhidos por eleição direta, pela comunidade, tanto de profissionais quanto pela comunidade que utiliza as escolas. “Isso faz uma diferença muito grande. Na saúde, passamos mais frequentemente por crises. É preciso ter eleições com pessoas que participem do processo eleitoral, mas sendo qualificadas para o exercício da função, e não como é feito hoje”.
A Comissão de Saúde e Assistência Social (CSAS) da Câmara Municipal de Goiânia é presidida pela vereadora Kátia Maria (PT), sob vice-presidência de Gian Said (MDB). Participam ainda os seguintes parlamentares: Anderson Sales Bessa (Solidariedade), Edgar Duarte (DC), Gabriela Rodart (PTB), Igor Franco (Solidariedade) e Pastor Wilson (PMB).
De acordo com o secretário Wilson Pollara, em 2023 foram investidos, pela Prefeitura de Goiânia, 22.06% dos recursos próprios em Saúde. O percentual, conforme frisou, está acima da meta de 15% preconizada pela Constituição Federal. Pollara ressaltou, contudo, a necessidade de se investir mais na atenção primária a saúde.
Para a vereadora Kátia Maria, o secretário “tenta passar uma imagem de que está tudo bem”, mas que não observa observa essa realidade em visita às unidades básicas de atendimento, aos Centros Centros de Atenção Integrada à Saúde (Cais), e às maternidades. Segundo a vereadora, os números apresentados não refletem a qualidade na prestação do serviço prestado. “São inúmeras as queixas, as reclamações. Faltam insumos básicos, as filas para cirurgias são grandes. E nós queremos entender isso. Nosso papel aqui é fiscalizar; nosso interesse é que a população não seja prejudicada por falta de planejamento e de gestão. Doença não espera e todos precisam ser atendidos”, sustentou.
“O que queremos é que seja estruturado o Sistema Único de Saúde, o SUS, não a carreta, não o contrato com a empresa privada, não a OS. Queremos que a rede de assistência à saúde de Goiânia, na atenção básica, na média e na alta complexidade, possa funcionar corretamente e atender a nossa população com a dignidade que ela merece”, completou.
Leia também: MP estuda entrar com ações judiciais em caso de crise nas maternidades de Goiânia
Leia também: Consultórios fechados e suspensão de 60 atendimentos por dia: veja os efeitos da crise em maternidade de Goiânia