Entre os ricos que têm acesso a tudo e os pobres já acostumados com as privações, brasileiros do meio da pirâmide vivem drama inédito em suas histórias pessoais

O que é a classe média? Um modus operandi de viver. Aquela viagem com a família para o litoral no fim do ano, parcelada no cartão de crédito. Uma pescaria no Rio Araguaia com os companheiros de pelada. A escola particular para garantir educação de qualidade e abrir as portas de uma boa faculdade para o casal de filhos. O plano de saúde familiar, para comodidade de consultas e também casos de emergência. A troca do carro por um zero-quilômetro a cada dois ou três anos. Dois ingressos para o próximo Rock in Rio. Uma pequena piscina com uma churrasqueira na casa, para receber amigos e comemorar a vida.

Quem é a classe média? Uma pergunta complexa. Num país desigual – e cada vez mais desigual, ultimamente – como o Brasil, é possível identificar ricos e miseráveis infelizmente com alguma facilidade. Ricos têm às mãos o acesso a praticamente todos os recursos: consultas médicas particulares, seguros pessoais, contas personalizadas em instituições financeiras, escola particular do mais alto nível para os filhos, cursos de línguas de imersão, no exterior.

Pobres não conseguem quase nada sem a assistência do Estado: as consultas e as emergências são pelo SUS; é preciso arrumar uma vaga para o filho pequeno num Cmei; já para o garoto jovenzinho, um cursinho popular para dar um empurrão rumo à vaga no ensino superior. A comida na mesa sempre tem uma ajuda importante de algum programa social. Aqueles “luxos” da classe média, expostos no primeiro parágrafo, para os pobres de fato são ambições.

A classe média seria, portanto, essa faixa da sociedade que consegue, em maior ou menor grau, concretizar, ainda que com limitações, coisas que estão ao alcance de uma parcela menor da população, mais abastada, e que não são nada mais do que sonhos para os pobres.

A primeira década do século foi um período em que a classe média recebeu novos integrantes. Na verdade, um “subgrupo”, para assim dizer assim: a classe C, que passou a ser conhecida como “nova classe média”. Especialmente entre 2003 e 2008, a quantidade de brasileiros considerados estatisticamente como “pobres” foi reduzida em 3 milhões. O efeito do aumento de renda propiciou mudança marcante no padrão de consumo, com o acréscimo de vários novos itens, especialmente alimentos industrializados e bens duráveis, desde eletrodomésticos a automóveis.

Essa inclusão de certo grupo na classe média, com base no aumento do poder de consumo, é contestada por alguns autores, que apontam a insuficiência desse critério como definidor de classe social. Segundo esses, um segmento populacional de determinada faixa de renda não deveria se confundir com a noção de classe média, conceito muito mais abrangente e teoricamente muito mais complexo. Ou seja, apesar de terem passado a consumir certos bens materiais e serviços também consumidos pela “velha” classe média, os recém-chegados à classe C teriam valores, hábitos e visões de mundo parcialmente distintos daqueles atribuídos à classe média tradicional. Uma questão de classe, literalmente.

A classe média seria, por esses estudiosos, também a detentora de certos costumes e práticas que determinariam uma certa “tradição” – na verdade, uma forma de reter poder, com um certo ranço de nobreza de não se misturar com outro “sangue”. Isso, de certo modo, caracterizou um tipo de discurso elitista fora da elite, naqueles idos dos anos 2000: era o olhar torto para o gosto musical dos novos vizinhos; o olhar de estranhamento com um pessoal “diferente” nas filas dos aeroportos; uma mistura ainda não experimentada entre filhos de empresários e de diaristas nos bancos das universidades públicas.

Depois da bonança, a tempestade
Esses tempos ficaram para trás, assim como o “top 10” da economia mundial que o Brasil chegou a alcançar, mas no qual não se sustentou. Mais do que isso, a recessão que veio a partir do segundo governo de Dilma Rousseff (PT) deixou sequelas para todas as classes. O empobrecimento foi geral e, com a pandemia, a situação se agravou de tal forma que os “ex-classe C”, de volta à condição anterior de privações, receberam a “visita” de uma classe média que nunca havia conhecido situação tão remediada.

Uma compilação da consultoria IDados, do Rio de Janeiro, baseada em indicadores da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (Pnad) Contínua, mostra que oito em dez famílias de renda média se apertaram para viver com menos no fim do ano passado. A maior parte dessas pessoas perdeu entre 10% e 50% da renda do trabalho. Para duas em dez famílias, a pandemia levou entre 50% e 80% da renda familiar. E, pior, um em dez domicílios de classe média viu a fonte de renda secar entre 80% e 100%.

Charge “apresenta” classe média às privações de que os mais pobres padecem | Foto: Reprodução

Uma charge do artista gráfico Genildo Ronchi apresenta uma realidade objetiva, mas também uma crítica social: sentado na calçada, um casal de moradores de rua vê outro casal se aproximando e a mulher diz: “Põe mais água no feijão que está chegando mais classe média!”. Os “recém-chegados” à sarjeta estão com camisas amarelas e bandeira nacional. É uma alfinetada a quem reclamava, por exemplo, do dólar no governo Dilma Rousseff (PT) e que foram às ruas para derrubar a presidente e hoje se encontram em uma situação econômica muito pior.

É fato: com a crise econômica agravada pela pandemia e sua péssima condução no Brasil, muitos dos que reclamaram do dólar alto e exigiram “Fora Dilma” hoje podem estar vivendo de cestas básicas – sem dinheiro para o gás de cozinha.

O mundo inteiro vai sair empobrecido do atual momento de exceção, porque é da natureza de uma pandemia mortal como essa trazer dificuldades econômicas de forma global. Entretanto, a maneira com que cada nação terá lidado com o fenômeno sanitário é que deverá determinar o grau de dificuldade e o tamanho do buraco cavado em torno do coronavírus.

“Poderia ter sido tudo muito pior não fosse nosso Estado social”, diz pesquisador da UFG

É praticamente um consenso entre economistas que o Brasil escolheu a pior estratégia para lidar com o binômio saúde-economia: falta de uma mensagem única entre governo federal e esferas estaduais e municipais sobre as restrições de circulação e distanciamento social; ajuda insuficiente para as empresas, notadamente as micro e pequenas; interrupção do auxílio emergencial em meio à pandemia e retorno meses depois com valor menor que a metade do período inicial; demora na compra de vacinas e negligência com medicamentos e suporte para a vida dos pacientes; incentivo ao uso de medicamentos sem eficácia; e vários outros fatores.

Geógrafo Tadeu Arrais, do Iesa/UFG e do Observatório do Estado Social Brasileiro: “Poderia ter sido muito pior não fossem os avanços da Constituição de 88” | Foto: Reprodução

Na avaliação do professor do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa) da Universidade Federal de Goiás, Tadeu Alencar Arrais, faltou mais Estado brasileiro na pandemia. “E poderia ter sido muito pior”, afirma. Para o geógrafo, o que salvou o País de uma catástrofe ainda mais grave foi a “ação acumulada do Estado social”. Em outras palavras, é aquilo que o cidadão já tinha como intervenção do Estado em suas condições de vida antes da pandemia: a aposentadoria, o programa de Bolsa Família, o seguro-desemprego, o remédio de alto custo gratuito, o centro de saúde da família no bairro.

“Mas principalmente temos de pensar em termos de seguridade social. A aposentadoria e o benefício de prestação continuada (BPC), garantidos pela Previdência, remetem ainda a mais de meio século atrás. O BPC foi criado pela ditadura militar. Ainda que pareça algo sempre passível de críticas, o Brasil tem um histórico de cuidar dos cidadãos mais vulneráveis”, diz o pesquisador.

E, para Tadeu, o ápice disso se dá na redemocratização. “O grande marco desse Estado social é a Constituição de 88, especificamente em seu Artigo 6º. Lá estão educação, seguridade social, trabalho, enfim os direitos a que todo cidadão faz jus”, diz. No Observatório do Estado Social Brasileiro, projeto que coordena, Tadeu concentra estudos sobre a importância do papel estatal no País, cobrindo inclusive sua história e memória. “A Previdência no Brasil tem mais de cem anos. A seguridade social, portanto, é algo na vida do cidadão há muito tempo. E os mais de 30 anos de Constituição fizeram com que a crise atual fosse, de certa forma, amortecida.”

O papel-chave do SUS
O principal “colchão”, sem dúvida, foi o Sistema Único de Saúde (SUS). A despeito de tudo que foi feito de modo equivocado na pandemia, a sistematização e a capilaridade do sistema são robustas, a ponto de sobreviver aos governos. “O Brasil não é a Dinamarca. Materializar o que está no papel – a Constituição – na vida real é algo extremamente desafiador. E, no intervalo de 30 anos, cumprimos muito”, acredita o professor.

O Brasil chegou à pandemia já com alta taxa de desemprego e redução. “Mas também chega com boa parte da população mais carente protegida pelo sistema de seguridade e pelo SUS”. Tadeu diz que, desde 1988, o Brasil vem construindo uma “inteligência territorial”, através dos diversos governos. “O único governo que não tem inteligência para entender o Brasil é o atual, ao meu juízo”, diz Tadeu Arrais. Essa “memória de inteligência” faz com que as ações a serem tomadas dependam menos do governante em tela do que das rotinas do sistema em si.

Arrimos de família
Outro aspecto que Tadeu ressalta como um papel do Estado na pandemia tem relação com o número de funcionários públicos. “Essas pessoas, com renda garantida, que muitos consideram privilegiadas na atual conjuntura, na verdade são aquelas que estão neste momento servido de esteio de suas famílias e até da vizinhança ou da própria comunidade.” Ele cita, como exemplo, o caso de professores de escolas públicas que se organizaram para arrecadar alimentos e itens de higiene para alunos e seus familiares.

Isso tudo quando o Brasil tem uma taxa muito maior de desemprego do que aparentam os números oficiais, diz Tadeu. É que, em sua conta, estão nessa conta também os microempreendedores individuais (MEIs). “É preciso entender o MEI como emprego. No Observatório temos todos os últimos dados sobre os MEIs. E quem são os MEIs: cabeleireiros, manicures, gente do varejo de vestuário, diaristas, trabalhadores de aplicativos.” No total, são mais de 11 milhões. “O que leva o País a ter, somados com 14 milhões formais desempregados e 40 milhões de informais, mais gente desempregada do que com carteira assinada, que são 45 milhões, pela primeira vez.” Os dados são parte do trabalho do Observatório do Estado Social Brasileiro.

Mas, e a classe média? No meio de tudo isso, é quem já está penando de uma forma mais grave: é algo triste de escrever, mas os mais pobres já estão acostumados a restrições. “Quem desce de uma forma mais abrupta tende a sentir mais o baque”, ressalta Tadeu Arrais.

“A classe média, durante muito tempo, acusou o ‘Estado fiscal’, pelos impostos que pagava e supostamente não se beneficiava. Agora, vai precisar do ‘Estado social'”

“Essa classe média vai ter de descobrir o Estado: vai ter de descobrir a escola pública, o posto de saúde, o transporte subvencionado, o seguro-desemprego etc. A classe média, durante muito tempo, acusou o ‘Estado fiscal’, pelos impostos que pagava e supostamente não se beneficiava. Agora, vai precisar do ‘Estado social’.

Sobre o empobrecimento, Tadeu Arrais alerta também sobre como a situação deve atacar mais fortemente as grandes cidades. “É simples: o custo de vida é muito mais alto numa metrópole do que no sertão brasileiro. O auxílio emergencial, portanto, teria de ser maior para quem vive nas grandes cidades”, diz, tocando em um ponto polêmico e acrescentando. “Em muitos lugares, no ano passado, vivemos uma realidade estranha: em meio à pandemia, o auxílio de 600 reais aumentou a qualidade de vida nessas localidades e até virou poupança”, dizendo, porém, que o atual valor em nada adianta. “O governo tinha de ter tido coragem de bancar um auxílio digno e esse arranjo em relação às localidades precisaria ser discutido.”

Em uma conjuntura de extrema dificuldade como a atual, num País que parece não ter a mínima orientação sobre qual será seu futuro, todos saem perdendo. A classe média, porém, que vê no bolso e na conta bancária, pela perda do bom emprego ou do negócio da família, surgir o fantasma da impotência – para seguir tendo os mesmos pequenos prazeres e vivenciando até mesmo situações que consideraria humilhantes –, tem um drama particular para ser vivido nos próximos tempos.