Em seu centenário, Paulo Freire vê um governo destruir o que ele não pôde executar

19 setembro 2021 às 00h02

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Um dos maiores nomes da história brasileira e referência do ensino-aprendizagem no mundo vê suas ideias deturpadas por gente que nada constrói

Era março de 1964. Paulo Freire, a serviço do Ministério da Educação e Cultura (MEC), estava liderando um trabalho de formação de professores em Goiânia, dentro do Programa Nacional de Alfabetização. O educador vivia momentos de expectativa: em 13 de maio, esse mesmo projeto, inspirado em grande parte em seu método, seria lançado pelo governo federal.
Na capital goiana, ele tinha todo o suporte necessário por parte do Estado, dirigido por Mauro Borges. Seu braço direito na formação era Carmita Andrade, que sempre repassava a ele notícias sobre o instável quadro político de Brasília, onde morava sua família desde que assumira cargo na Comissão Especial do Programa Nacional de Alfabetização.
As tensões se agravavam e aumentava a pressão sobre o presidente João Goulart. Incomodavam muito as mobilizações conservadoras, que viam em várias medidas não usuais do governo – nada usuais porque elaboradas com prioridades não usuais na República, voltadas à classe trabalhadora e aos menos favorecidos – o avanço do comunismo no Brasil (aqui é importante ressaltar que vivia-se o contexto geopolítico da Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética).
O mês estava acabando quando Carmita recomendou que Freire voltasse de imediato à capital federal. Mas nada mais havia a fazer. No primeiro dia de abril, os militares se instalaram no poder, para ficar nele por não menos do que 21 anos.
O golpe militar contra o suposto comunismo de Jango e seu ministério acabou com muitos projetos de base inovadores. Entre eles, ruía o sonho de lançar mais de 60 mil círculos de cultura, com a ambiciosa meta de alfabetizar 1,8 milhão de brasileiros ainda naquele ano – o que corresponderia a 8,9% do total na faixa de 15 a 45 anos, da população da época, que não sabiam ler nem escrever. O Programa Nacional de Alfabetização foi extinto em 14 de abril, sem nunca ter sido de fato levado a cabo, sem que seus efeitos pudessem ter tempo de “acontecer”.
Entre as motivações para seu fim estavam a de que “o material a ser empregado na Alfabetização da População Nacional” deveria “veicular ideias nitidamente democráticas e preservar as instituições e tradições do nosso povo”. E o material didático do programa de que Freire participava, claro, foi avaliado como “de caráter subversivo”. O novo governo fez duras acusações ao trabalho que Paulo e sua equipe vinham desenvolvendo; apontaram o material didático produzido como contrário aos interesses da nação e acusaram seus autores de querer implantar o comunismo no país. Mas não foi só isso: de volta a Pernambuco, onde era diretor do Departamento de Extensões Culturais da Universidade do Recife – que se tornaria a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) –, no dia 16 de junho o professor que queria alfabetizar o Brasil seria preso por… traição à Pátria.
A maioria das informações acima estão no primeiro capítulo de O Educador: um Perfil de Paulo Freire, livro de Sérgio Haddad, lançado em 2019. Só isso já poderia (e deveria) descredenciar qualquer argumento sobre a narrativa atual, dos chamados “conservadores” brasileiros, de que a educação nacional estaria “impregnada” de Paulo Freire e de sua “pedagogia comunista”.
Se isso seria comunismo ou não, pouco importa: como se viu, Freire não teve tempo de implantar nenhum plano enquanto esteve no governo. Voltaria a atuar diretamente na política quando Luiza Erundina foi eleita prefeita de São Paulo pelo PT, como secretário municipal da Educação, entre 1989 e 1991, num momento em que já era uma figura mundialmente conhecida e referência no processo de ensino-aprendizagem, com sua obra seminal, Pedagogia do Oprimido.
Presente de grego
Neste sábado, 19, deveria ter sido comemorado – em um país que preservasse a memória de seus ícones – o centenário de nascimento de Paulo Freire. Contudo, o educador, morto em 1997, se estivesse vivo teria ganhado um presente de grego na véspera. Tangendo o pessoal do cercadinho na saída do Palácio da Alvorada, Jair Bolsonaro (sem partido) aproveitou uma deixa típica de seus seguidores para mais uma vez em sua trajetória de vida pública desvalorizar professoras e professores.
Tudo começa com o próprio Bolsonaro provocando a plateia, por entre elogios de fãs e pedidos/promessas de orações, ao puxar uma conversa sobre o que considera uma de suas realizações no governo. “Você não vê mais livros que os pais não gostariam que os filhos tomassem conhecimento na escola. Vão dizer que é pouca coisa, não é pouca coisa, é muito”.
Os fiéis que lhe são devotos, então, começam a dizer que “tem muito comunismo na escola”. Um lembra o termo, outro atrás repete, outros concordam. É a deixa para Bolsonaro se lembrar de Dilma Rousseff (PT). Segundo o mandatário atual, a presidente fez concursos para 100 mil professores na Educação – na verdade, o MEC recebeu novos 55 mil servidores, entre docentes e técnicos, durante o governo Dilma. Mas a sempre presente falta de precisão na informação é o que menos importa. O que vem a seguir denota o apreço que Bolsonaro tem pela classe. “Não vou entrar em detalhes aqui, mas o Estado está muito inchado. Não estou dizendo que não precisa de professor, mas o excesso atrapalha.”
Paulo Freire, por sua vez, achava que o que atrapalhava a Nação era excesso de analfabetos. Desde a década de 40, mais precisamente em 1946, quando foi indicado ao cargo de diretor do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social de Pernambuco, ele já havia começado seu trabalho com analfabetos pobres. Mas foi em 1963 que o educador que nunca se formou em Pedagogia, muito menos faria mestrado ou doutorado, conquistaria alta visibilidade. Em trabalho desenvolvido com a equipe do Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade de Recife, ele foi para Angicos (RN) com uma meta bem audaciosa: conseguir alfabetizar 300 alunos em 40 horas. Conseguiu. O processo tradicional de alfabetização recorria – e ainda recorre – à repetição de frases com estruturas fonéticas e semânticas simples. É o caso de “o rato roeu a roupa do rei de Roma” ou “Eva viu a uva”.
Freire seguiu por outro caminho, em tese mais complexo, porém que se revelou mais prático e eficiente: concentrou-se em aplicar o aprendizado à rotina de seus alunos. A imensa maioria era formada por adultos, de trabalhadores braçais a donas de casa. No conceito paulofreiriano, o alfabeto e tudo o que vem a partir de sua descoberta se revelariam com referências ao que eles podiam ver no cotidiano de cada um. Ou seja, um operário que teve o privilégio de ser aluno de Freire, aprendeu primeiro as grafias de palavras como tijolo, cimento, obra, areia, argamassa; as donas de casa aprenderiam primeiro a escrever casa, fogão, geladeira, café, almoço, janta etc.
Talvez Bolsonaro não goste de professor por também não gostar de disciplina. Foi um mau militar – e quem fez a avaliação foi o nada comunista general Ernesto Geisel, presidente de 1974 a 1979. O mesmo Geisel que, em 1964, logo depois do golpe, se comunicou com Paulo Freire e, ao ser questionado, disse-lhe que não havia impedimento para ele voltar em paz para Recife. E o mesmo Geisel que, em 1974, liberou a impressão da Pedagogia do Oprimido, no fim dos anos de chumbo da ditadura.
Ao contrário do que toca a banda comandada por bolsonaros, olavos e weintraubs, não há nada de balbúrdia no projeto de Paulo Freire para a educação. E, ainda que seus princípios pedagógicos tenham tido sempre muita simpatia por parte da esquerda brasileira, eles foram estudados e até aplicados países dos mais diversos continentes, com as mais diversas ideologias políticas.
Atacar a memória de Paulo Freire, como tem sido ostenstivamente feito nos últimos anos – a pretexto, por parte dos “conservadores”, de uma guinada nos rumos educacionais do Brasil –seria apenas estultice se não fosse método. E o método é o do caos, como tem sido aplicado em outros setores do governo: impõe-se um pretexto para mudar ou desativar o que está posto para não colocar nada no lugar. Como Bolsonaro já disse e repetiu várias vezes, ele não chegou ao governo para construir algo, elaborar projetos ou fazer planos estratégicos para o futuro. Talvez nem acreditem no futuro, por isso destroem tão facilmente o que foi pensado ou erguido por gerações inteiras – e isso vale tanto para a educação como para o meio ambiente, como para outros tantos setores.
Por isso, o presidente diz, tão tranquilamente, que “você não vê mais livros que os pais não gostariam que os filhos tomassem conhecimento na escola”. Você não vê também os que foram colocados, porque obviamente não há esse interesse. Talvez pensem, em pouco tempo, que bastará uma Bíblia para fundamentar todo o processo.
De onde estiver, Paulo Freire observa tudo com perplexidade, mas, muito mais ainda, com silêncio. É preciso ouvir mais do que falar. E, no centenário do mestre, essa lição vem a calhar para o momento. No caso, para deixar que os estultos caiam pelas próprias palavras.