“É a economia, estúpido”: a revolta contra a corrupção começa com o bolso vazio
19 março 2016 às 12h44
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Com as contas em ordem — dólar sob controle, indústria produzindo, comércio vendendo e empregos brotando —, haveria 6 milhões de brasileiros nas ruas em um domingo, para protestar contra as bandalheiras no governo?
Você, que é contra a corrupção em geral ou contra o governo do PT, em particular, não está na rua por um motivo qualquer. Há sua razão de ser, mas não vem por causa, exatamente, do que você imagina que seja tão óbvio. Em outras palavras, os escândalos de sua base só são a face visível do que está derrubando o governo Dilma Rousseff (PT). O que seria, então?
Por mais que, em princípio, pareça complexo explicar, a origem de todo esse caos instalado e agravado na última semana se resume a uma expressão: é a economia, estúpido! Não é uma grosseria com o leitor (melhor avisar isso em tempo de agressões generalizadas nas redes e linchamentos virtuais). A história segue dessa frase um tanto rude está nos próximos parágrafos.
Em 1992, Bill Clinton, pelos democratas, e George Bush, tentando o quarto mandato republicano consecutivo – em uma sequência iniciada com dois governos do ex-ator Ronald Reagan – disputavam a cadeira principal da Casa Branca. Às vésperas das eleições, Bush era tido como praticamente invencível pelos especialistas políticos. Ele havia conseguido feitos importantes durante seu mandato: a Guerra Fria acabou e também teve êxito sua investida, na Guerra do Golfo, contra um tal Saddam Hussein, que daria muito trabalho para seu filho na década seguinte e invadira o Kuwait, do qual saiu, não sem antes incendiou centenas de poços de petróleo.
A popularidade de Bush pai, perto de 90%, o credenciava a uma vitória até esmagadora sobre Clinton. Foi aí que surgiu na história James Carville, o marqueteiro dos democratas. Ele indicou o caminho para o sucesso: focar nas questões relacionadas mais diretamente com a vida dos eleitores, principalmente as que envolviam seu bolso. Na sua cartilha estava a frase forte: “The economy, stupid!”. A forma inicial ganhou o “it’s” para reforçá-la. E em português, passam a ter sua tradução, “é a economia, estúpido!”. Grosseiro, mas eficiente: Bill Clinton virou o jogo e teve dois mandatos para, ironicamente entregar a Presidência de volta à mesma família, então para George W. Bush.
O caso poderia ser considerado pontual, mas basta um giro pela história para perceber como as grandes crises econômicas parecem pontuar grandes mudanças de rumo na política. Ou então como uma economia pujante pode atropelar as demais mazelas de um governo. Foi assim em vários lugares do mundo, é assim também no Brasil.
Vejamos: em 2005, quando estourou o caso mensalão, o Brasil já estava em lua de mel com o governo Lula, que, em outros tempos, seria temido por qualquer agente de mercado. Afinal, era o “Sapo Barbudo” do socialismo, aquele que viria para colocar o país nos moldes do que existia por trás da Cortina de Ferro – o Leste europeu, onde o comunismo já tinha virado pó já havia mais de década.
Voltando no tempo, é bom relembrar que Luiz Inácio Lula da Silva só conseguiu ser bem aceito – ou, pelo menos, tolerado – pelo mercado quando se vestiu de “Lulinha Paz e Amor” e redigiu a “Carta aos Brasileiros”. Era uma espécie de pacto, um contrato firmado com os setores produtivos e especulativos, pelo qual ele se comprometia com a manutenção de condições adequadas para o funcionamento “normal” da economia nacional. Outro fator importante foi a escolha a dedo do candidato a vice-presidente, o empresário José Alencar (PR). Para a ala mais radical da esquerda, esse conjunto de fatores registra o momento em que o PT se vendeu às “elites”.
Após a vitória de Lula sobre José Serra (PSDB), no segundo turno, o partido pôs a mão na massa – nem tanto mais com as massas, porém. A disposição parecia ser a de querer cumprir muito bem seu trato com o mercado. A maior prova foi a “contratação”, para presidir o Banco Central, do goiano Henrique Meirelles, que tinha sido campeão de votos para deputado federal. E pelo PSDB. Meirelles era nada menos do que o ex-presidente mundial do BankBoston. Para a Bovespa, as agências de risco e o mundo financeiro em geral, não poderia haver prova maior de adesão. Se o problema era o partido, ao assumir e trazer alguém como um ex-banqueiro desse porte, tudo parecia apaziguado. Para fora, sim; por dentro, não. O conglomerado de tendências chamado PT, no poder, já deixava órfã parte de sua ala mais à esquerda, que não assimilava a “parceria” com o capital.
A harmonia da dupla Lula–Meirelles, um atuando habilmente na política e o outro regendo o Banco Central como um experiente maestro da orquestra, fez o País se recuperar em um tempo relativamente curto do desastre que se viu ao fim do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Para ter ideia do buraco, os números e índices atuais do governo Dilma, por mais decadentes que estejam, ainda não conseguiram atingir o fundo do poço, se comparados aos últimos tempos de FHC no poder.
Foi com o Brasil em franca ascensão mundial, galgando posições expressivas entre as maiores potências econômicas, que veio à tona o escândalo do mensalão, denunciado por uma figura conhecida de outros momentos pouco puritanos da política nacional: o então deputado Roberto Jefferson, presidente nacional do PTB, que, se sentindo insatisfeito com o tratamento que o governo lhe oferecia, abriu o jogo sobre o esquema e cunhou o termo que viraria verbete nas enciclopédias virtuais.
Era o partido da ética atingido em cheio exatamente na sua alardeada principal diferença em relação aos demais partidos. Ao contrário do início do governo, quando algumas alas debandaram por discordar do pacto com o setor empresarial, agora uma nova sangria no PT se dava pela decepção com aqueles que tinham feito o partido jogar o jogo político que eles próprios tanto haviam condenado quando eram oposição. Entre outras consequências, boa parte da dissidência formou o PSOL, para onde migraram nomes como Heloísa Helena e Luciana Genro.
Apesar de algumas oscilações por causa das desventuras ético-políticas, a economia brasileira ia muito bem. Resistiu ao momento de turbulência e serviu como ponte para o segundo mandato de Lula no ano seguinte. O presidente, novamente em segundo turno, venceu o tucano Geraldo Alckmin e pôde dar sequência ao projeto de poder do partido. Mas seus principais nomes estavam queimados e descartados como opções para sua sucessão: ex-chefes da Casa Civil, José Dirceu e Antonio Palocci sofreram com escândalos, e o primeiro terminaria condenado à prisão, anos depois, como mentor do mensalão.
A alternativa em que Lula passou a apostar foi Dilma Rousseff, ex-ministra de Minas e Energia. A mineira radicada no Rio Grande do Sul, lançada na política pelo PDT de Leonel Brizola, se tornaria a “mãe do PAC”, o Programa de Aceleração do Crescimento, um pacote que teve muito de espetaculoso e pouco de efetivo, mas colaborou para que o presidente a elegesse como sucessora, em 2010.
De fato, o Brasil não sentira de modo tão forte a crise imobiliária de 2008, que arrasou a economia dos Estados Unidos. Lula apostou que era uma “marolinha” e ganhou, momentaneamente, a banca. Eleita, impondo uma segunda derrota a José Serra em uma disputa presidencial, Dilma viveu dois anos de muita bonança: o País ainda sentia os efeitos positivos do mercado e atraía dólares. Mas a China já entrava em um processo de desaceleração – e isso decidiria o futuro financeiro do Brasil.
Na verdade, durante os anos de estabilidade desde a criação do Plano Real, em 1994, uma coisa que nenhum governo havia feito agora era sentida de forma muito forte: o investimento na produção. Lula, especialmente, para combater os efeitos da economia mundial, que retraía, apostou em medidas anticíclicas e no consumo. Quando o dinheiro se foi e a recessão começou a se delinear, o Brasil virou a cigarra da fábula: tinha feito festa com o que acumulara e não lhe sobrava estrutura em que se apoiar. Os dólares começaram a procurar outros mercados e Dilma – que chegara a ter índices de popularidade maiores que o de Lula – se afundava, principalmente a partir das manifestações difusas de junho de 2013. Nunca mais seu governo teria paz.
As eleições de 2014 foram tensas. O País começava a rachar entre “coxinhas” e “petralhas”, o que ficou extremamente evidenciado no segundo turno. Reeleita com 51% dos votos válidos sobre Aécio Neves (PSDB), Dilma precisaria conter os 49% raivosos com o resultado e prontos a materializar sua insatisfação. Os números da economia se dissolviam, sua divulgação abalava a confiança do mercado e dos próprios brasileiros. Em meio a isso, começava a fazer estrago na política uma operação policial que começou em um posto de gasolina e por isso se chamava Lava Jato.
Vieram os protestos de março de 2015; depois, outros menores durante o ano. Os gritos de impeachment eram cada vez mais fortes, e anabolizados a cada vez que aparecia o nome de alguém ligado ao governo. Até a coisa bater no ex-presidente. Lula se tornou o alvo das ações, bem como sua família.
Um sítio em Atibaia (SP) e um apartamento tríplex no Guarujá (SP) são o centro das investigações contra o petista. Vem, então, a pergunta que não quer calar: se o País estivesse com sua economia em ordem – dólar sob controle, indústria produzindo, comércio vendendo e empregos brotando –, será que haveria 6 milhões de brasileiros nas ruas em um domingo, para protestar contra a corrupção no governo? O que houve em 2005 indica que não. Novamente, “é a economia, estúpido”. l