Duas novas espécies de fungos descobertos em Goiás têm potencial aplicação biotecnológica

12 fevereiro 2023 às 00h00

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Pesquisadores da Universidade Estadual de Goiás (UEG) descobriram duas espécies novas de fungos nas florestas de Silvânia e nas cavernas do Parque Estadual Terra Ronca, no nordeste do estado. Esses seres vivos, até então desconhecidos pela ciência, têm potencial aplicação biotecnológica, como, por exemplo, na despoluição de ambientes poluídos por substâncias de difícil degradação.
Uma espécie é a de um cogumelo, batizado como Furtadomyces sumptuosus (nome que descreve sua característica suntuosa). A espécie foi descrita como exuberante, com grande ramificação e com vários píleos (chapéu), bem diferentes de um cogumelo tradicional. A outra espécie descrita pela primeira vez foi a de um bolor, chamado de Preussia bezerrensis (uma homenagem à caverna onde ele foi encontrado, que é conhecida como Lapa do Bezerra).
A equipe do Laboratório de Micologia Básica, Aplicada e Divulgação Científica (FungiLab) conduziu análises morfológicas, fisiológicas e genéticas para determinar que tratam-se de fato de espécies desconhecidas. Após confirmar que as descobertas eram novas, enviaram uma amostra das espécies para museus biológicos e banco de culturas, para atestar nos bancos de dados internacionais a existência das espécies pela comunidade científica.
As descobertas foram publicadas em 2022 em revistas científicas internacionais. Os fungos foram encontrados por dois alunos da Pós-Graduação, Lucas Leonardo da Silva e Antônio Sérgio Ferreira de Sá, sob a orientação de Solange Xavier dos Santos, que coordena o FungiLab da UEG. O Jornal Opção conversou com Solange dos Santos para compreender o significado das publicações.

Italo Wolff – Como os pesquisadores sabem onde procurar por fungos desconhecidos? Vocês já sabiam que poderiam encontrar novas espécies naqueles locais?
Solange Xavier dos Santos – As estimativas apontam que o número de espécies de fungos que conhecemos até o momento não chega a 5% do total de espécies que existem na Natureza. Os fungos estão em praticamente todos os lugares, mas, quanto mais difícil for o acesso a esses lugares pelo ser humano, maior a chance de se encontrar espécies desconhecidas pela Ciência.
O percentual pequeno de espécies conhecidas significa que, com a intensificação dos estudos, é provável que espécies novas sejam encontradas em diferentes lugares. Hoje, diariamente novas espécies de fungos são descritas no mundo todo, mas o Cerrado ainda é um local muito pouco explorado nos estudos da Funga (diversidade de fungos), havendo muitas lacunas nesse conhecimento. Desta forma, há grandes chances de se encontrar novas espécies em todo o bioma.
Em se tratando de ambientes cavernícolas, a expectativa por novidades é ainda maior, visto que esses ambientes são pouco explorados por cientistas, sem contar que foram originados a milhares de anos e, diferente do ambiente superficial, são mantidos intocados na maioria das vezes.
Essas nossas duas descobertas são fruto de dois projetos de pesquisa de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Recursos Naturais do Cerrado (RENAC) da Universidade Estadual de Goiás, que visam inventariar as espécies de diferentes grupos de fungos em unidades de conservação representativas do bioma Cerrado, como é o caso da Floresta Nacional (FLONA) de Silvânia, onde foi encontrado o cogumelo, e do Parque Estadual Terra Ronca (PETER), onde foi encontrada a nova espécie de bolor.
Como é o trabalho de identificação dos fungos? Pelo que os cientistas procuram para determinar suas espécies, e como sabem se é uma nova espécie?
A identificação dos fungos é baseada na análise da morfologia (estudo das características físicas), macroscópica e microscópica, e também na análise de outras propriedades, como as fisiológicas (estudo de como as estruturas funcionam) e estudos genéticos.
A princípio, são analisadas as características mais aparentes, que podem ser vistas a olho nu, como sua forma, tamanho, coloração, tipo de crescimento, substrato; depois aquelas que só podem ser vistas com auxílio de um microscópio, como as células que os compõem, seus esporos (estruturas reprodutivas), entre outros.

Se essa análise apontar características diferentes das já conhecidas, então partimos para a investigação genética, com a extração do seu DNA, para posterior análise da sequência desse DNA nos genes. Essa sequência será comparada com milhares de outras sequências, depositadas em banco de dados públicos e internacionais, e a partir do percentual de semelhança entre essas sequências, uma “árvore genealógica” será construída com auxílio de softwares e programas estatísticos, para determinar o grau de parentesco com as espécies já conhecidas, sendo, então, possível afirmar que se trata de uma nova espécie ou não.
Depois disso tudo, é preciso enviar uma amostra da espécie para um museu biológico, como um herbário e/ou um banco de culturas, para que possa existir uma amostra física que ateste a existência da espécie (voucher) e, enfim, a publicação do trabalho em uma revista científica para que possa ser reconhecida pela comunidade científica.
O que sabemos sobre os novos fungos encontrados (Furtadomyces sumptuosus e Preussia bezerrensis)? Do que se alimentam? Servem de alimentos para outros seres? Podem causar alguma patologia?
Ao contrário das plantas, os fungos não produzem seu próprio alimento e precisam se alimentar a partir de outros organismos, tal como fazem os animais. Se esse organismo que vai lhe fornecer alimento ainda estiver vivo, essa relação pode se dar de forma harmônica ou desarmônica. No primeiro caso, pode-se dizer que há uma troca, uma simbiose, em que o “parceiro” fornece alimento ao fungo e é beneficiado pelo fungo de alguma forma, como proteção, a transferência de água ou minerais, ou substâncias químicas produzidas pelo fungo, como enzimas, entre outras. Se o fungo prejudica o organismo que lhe fornece alimento, o fungo é considerado parasita ou patógeno, podendo causar doenças ao hospedeiro. Agora, se o fungo se alimenta da matéria orgânica de um organismo que já não está mais vivo, o fungo é considerado decompositor, apodrecedor ou saprobionte. E este é o caso da maioria dos fungos.
Aparentemente ambas as espécies encontradas são decompositoras (saprobiontes), ou seja, se alimentam a partir da matéria orgânica morta (restos mortais de seres vivos). Isso significa que eles têm um importante papel ecológico ao promover a ciclagem de nutrientes e assim, contribuir com o equilíbrio dos ecossistemas. Mas estudos complementares ainda são necessários para confirmar essa condição como permanente ou facultativa. Algumas espécies, a depender das condições a que são expostas, podem se comportar também como simbiontes ou patógenos.
O cogumelo (Furtadomyces sumptuosus) descrito em nossos estudos, por exemplo, faz parte de um grupo de fungos conhecido, principalmente, pela capacidade de decompor a madeira, uma tarefa bastante complexa, que poucos seres vivos (apenas alguns grupos de fungos) são capazes de realizar eficientemente. Quanto à comestibilidade, serão necessários estudos visando à composição química, testes de toxicidade, palatabilidade, entre outras características desses fungos.

Como é a diversidade de fungos no Cerrado? O clima seco significa que este bioma é um ambiente inóspito para os fungos?
Quando comparamos os estudos da Funga nos biomas brasileiros, vemos que o Cerrado está entre os menos estudados. Ou seja, há grandes lacunas no conhecimento dessa biodiversidade no bioma. Em geral, os estudos se concentram nas proximidades de onde os pesquisadores desta especialidade (os micólogos) estão sediados. Com isso, há grandes extensões ainda sem nenhum estudo, isso prejudica o entendimento sobre a distribuição geográfica dessas espécies.
O longo período de estiagem, bem como as paisagens mais campestres (savânicas), típicas do Cerrado, de certa forma restringem a ocorrência de grandes fungos macroscópicos, como os que podem ser encontrados mais facilmente em ambientes úmidos e sombreados. Contudo, devemos lembrar que o Cerrado é composto por uma mistura de paisagens que varia entre formações campestres e formações florestais. Nos ambientes que margeiam os cursos hídricos, há mais facilidade de se encontrar espécies macroscópicas.
Mas é importante lembrar que os fungos são organismos de grande resiliência, que desenvolveram diferentes mecanismos de adaptação, até mesmo viver (discretamente) no interior de outros seres vivos, ou sob o solo, associados a raízes de plantas, alcançando grandes extensões. Então, o fato de não os observarmos, não significa que eles não estejam presentes.
Até o momento, como estes são os primeiros registros de ocorrência dessas espécies, não se sabe se elas ocorrem em outros locais, ou se são endêmicas. Mas temos alguns indícios para acreditar que Furtadomyces sumptuosus seja rara, uma vez que ela ocorreu numa localidade que estudamos com relativa frequência há mais de uma década, que é a FLONA de Silvânia, e ela nunca havia sido antes encontrada.

Quais são os próximos passos para o FungiLab em relação a essas espécies? Existem oportunidades de novas pesquisas sobre esses fungos?
Com a conclusão da pesquisa básica, focada nos aspectos morfológicos e genéticos dessas espécies, o próximo passo é entender o seu papel ecológico nos ambientes onde ocorrem e como as condições ambientais as afetam. Isso inclui o estudo das condições resultantes de ações humanas.
Além disso, esses fungos agora estão sendo domesticados, ou seja, cultivados em meio de cultura no laboratório para que possamos estudá-los quanto aos seu potencial de aplicação biotecnológica. Nosso objetivo é pesquisar as substâncias produzidas pelos fungos e compreender se podem ter importância econômica. Há diversas áreas possíveis em que os fungos podem contribuir com a melhoria da qualidade de vida do ser humano.
Se considerarmos que fungos são capazes de sobreviver em condições bastante rudes, em função da ausência de luz (que reduz drasticamente a disponibilidade de nutrientes nas cavernas), isso faz com que eles desenvolvam mecanismos bastante peculiares para sobreviver aproveitando poucos recursos orgânicos, ou aproveitando recursos pouco convencionais. Essas características fazem deles candidatos ideais a serem explorados em propostas de aplicação biotecnológica, como, por exemplo, na despoluição de ambientes poluídos por substâncias de difícil degradação.
Nesse sentido, os fungos que crescem sobre madeira também merecem destaque, uma vez que por serem capazes de degradar e usar como alimento esse substrato de grande resistência, que é a madeira, também são capazes de decompor uma infinidade de outras moléculas de grande complexidade, como é o caso de muitos poluentes ambientais.