Num país em que intelectuais como Luiz Felipe Pondé, João Pereira Coutinho e Denis Rosenfield precisam explicar por que viraram à direita, o político que ousa recusar a pauta da esquerda — como  o candidato à Presidência Pastor Everaldo – acaba segregado entre a indiferença e o ridículo

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Pastor Everaldo: ridicularizado por setores da imprensa por defender teses liberais e conservadoras

José Maria e Silva

Com o trágico fim de Eduar­do Campos, o neto de Mi­guel Arraes que morreu no mesmo dia 13 de agosto que o avô, a acriana Maria Osmarina Silva Vaz de Lima, mais conhecida como Ma­rina Silva, apresenta-se como a terceira via na disputa presidencial, já que o próprio Campos, patinando nas pesquisas com menos de dois dí­gitos, ainda não tinha conseguido empolgar o eleitor. A nova candidata do PSB a presidente da República assume a campanha com um porcentual bem mais alto nas pesquisas, levando em conta os 20 milhões de votos que obteve em 2010, quase 20% do eleitorado. Todavia, Marina Silva está longe de ser a terceira via que diz ser, uma alternativa aos 12 anos de poder do PT, que, somados aos 8 anos anteriores do PSDB, perfazem 20 anos de hegemonia tucano-petista na política brasileira.

Marina Silva é uma volta ao messianismo de 1989, quando os principais candidatos de então – Fernan­do Collor (PRN), Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Leonel Brizola (PDT) – propunham uma espécie de grau zero da escritura política (tomando de empréstimo uma expressão do crítico literário Roland Barthes), que pretendia refundar o Brasil a partir do líder e suas massas, dispensando as instituições, especialmente o Con­gresso Nacio­nal, visto como causa de todos os males da vida brasileira. Hoje, as massas de Marina Silva são as redes sociais, que, a despeito de seu propalado poder, não foram capazes de lhe dar um partido, a tal Rede Susten­tabilidade, que não conseguiu as assinaturas necessárias para se credenciar para a disputa deste ano. Mas essas massas virtuais, em sua maioria, não passam de descontentes com o mando do PT, não por pensar de modo contrário ao partido, mas por se sentirem de alguma forma traídos. Ou seja, Marina é mais uma candidatura oriunda da fértil seara esquerdista.

Por que o Brasil é eleitoralmente incapaz de virar à direita e produz, no máximo, candidatos de centro, mas com pendor esquerdista, cujo caso mais notório é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso? A resposta pode estar na cultura e não propriamente na política. É o que se depreende da leitura de “Por Que Virei à Direita” (Editora Três Estrelas, 2013), em que três intelectuais – João Pereira Coutinho, Luiz Felipe Pondé e Denis Rosenfield – relatam sua opção pelo conservadorismo e explicam, cada um com sua história e estilo, o que entendem por “conservador” – um conceito que se tornou palavrão no Brasil. Quando se fala em conservador, o que vem à mente é um homem branco, machista, fanático religioso, por vezes violento e adepto da ditadura militar, do capitalismo e da desigualdade social, tudo isso encadeado como se fossem sinônimos de um dicionário moral.

artigo_jose maria e silva.qxdSer de direita é ato de subversão

Desde a redemocratização do País, com a retomada das eleições diretas, todos os principais candidatos a presidente da República fizeram questão de manter distância do pensamento conservador. Exemplo notório é o PSDB, que sempre quis posar de mais progressista do que o PT. Como observa o ensaísta Marcelo Consentino, editor da revista “Dicta & Contradicta”, no prefácio do livro “Por Que Virei à Direita”, “posicionar-se à direita no Brasil de hoje é, tecnicamente, um ato de subversão e contracultura”. Em todas as eleições desde 1994, os candidatos se aglomeram do centro para a esquerda e, mesmo na eleição de 1989, a despeito da vitória de Fernando Collor, então no PRN, e do prometido “choque de capitalismo” do tucano Mario Covas, o discurso predominante era de centro-esquerda, representado não só por Leonel Brizola, líder do PDT, e Luiz Inácio Lula da Silva, o líder do PT, mas também pela maioria dos demais candidatos que se esmeravam em prometer benesses estatais, caso fossem eleitos.

A exceção deve ocorrer nas eleições deste ano. O pastor Everaldo Dias Pereira, candidato do PSC (Partido Social Cristão) a presidente da República, resolveu empunhar bandeiras liberais e conservadoras, apesar de ter sido aliado do PT até recentemente, tendo apoiado as candidaturas de Lula e Dilma. Em sua entrevista ao “Jornal Nacional”, da Rede Globo, na noite de terça-feira, 19, o Pastor Everaldo defendeu a privatização em massa das empresas estatais, inclusive da própria Petrobrás, para tirar das costas da sociedade o peso do Estado paquidérmico, e deixou claro que é contra a liberação do aborto e o casamento gay, enfatizando que o casamento, conforme consta da Constituição, é somente entre homem e mulher. Defendeu, ainda, a meritocracia no serviço público, afirmando que ele próprio passou de servente de pedreiro a empresário à custa de seu próprio mérito.

O jornalista Josias de Souza, articulista da “Folha de S. Paulo” classificou como “peça de ficção” e “lero-lero sem sentido” a entrevista do Pastor Everaldo, sob o argumento de que o candidato de um partido nanico não pode fazer propostas que dependem de alterações na Constituição. Ora, Josias de Souza se esquece de que o PT estreou nas eleições em 1982, no ano seguinte à sua criação, fazendo propostas inexequíveis. Resgatando antigos lemas bolcheviques, o PT falava em “Pão, Terra, Trabalho e Liberdade” e pregava que “trabalhador vota em trabalhador”, renegando a presença de patrões em seus quadros. Nem por isso aquele utópico PT deixou de entusiasmar jornalistas e acadêmicos, gozando de grande respeito entre os formadores de opinião, que aderiram ao PT muito antes do povo – algo que volta a ocorrer com Marina Silva, que se define como “sonhática” e, mesmo assim, é levada a sério.

Em Goiás, por exemplo, o professor Athos Magno, candidato do PT nas primeiras eleições diretas para o governo, em 1982, ostentava no currículo um sequestro de avião com destino a Cuba, durante a luta armada contra o regime militar, e simplesmente pregava a implantação do socialismo através das urnas. Na época, sob a égide da Lei Falcão, os candidatos não podiam falar no horário político de rádio e TV, limitando-se a exibir sua foto acompanhada de uma locução com seus dados biográficos. O programa do PT era um desfile de barbudos, muitos dos quais se orgulhavam da ficha corrida na luta armada. Athos Mag­no era um deles. Teve uma votação insignificante, devido ao “voto vinculado” que obrigava o eleitor a escolher todos os candidatos de um mesmo partido, mas já desfrutava do respeito da imprensa, a exemplo do próprio PT, que, ostentando princípios radicais, criou a imagem de um partido diferenciado, chegando ao poder no País 20 anos depois.

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Marina Silva (PSB): apesar de se definir como “sonhática”, candidata é levada a sério pelos intelectuais

Desqualificando conservadores e liberais

Ao criticar o Pastor Eve­raldo, o objetivo do jornalista Josias de Sou­za não é atacar o candidato, mas desqualificar as ideias liberais e conservadoras que ele professa, transformando a proposta de privatização das estatais numa verdadeira heresia, a exigir a excomunhão política de qualquer candidato que venha a defendê-la. Essa tá­tica vem sendo bem-sucedida desde 2002, quando Lula conseguiu transformar Fernando Hen­rique Cardoso num desalmado “entreguista”, um “vendilhão da pá­tria”, que submeteu o Brasil às potências estrangeiras. Valendo-se de modo recorrente do fantasma das privatizações, os petistas acuaram o PSDB, que ainda hoje tem di­ficuldade para defender as privatizações do governo FHC, apesar do provável fracasso do Plano Real, caso elas não tivessem ocorrido.

Em “Por Que Virei à Direita”, o filósofo gaúcho Denis Rosen­field, 64 anos, no depoimento intitulado “A Esquerda na Contramão da História”, mostra o apreço que a intelectualidade tem pelas ideias de esquerda ao relatar a epopeia do PT gaúcho, cuja fama ultrapassou as fronteiras do País, repercutindo na Europa como sinônimo de uma “nova esquerda”. Doutor em filosofia pela Sorbonne, com pós-doutorado na École Normale Supérieure de Fontenay-St.Cloud, Denis Lerrer Rosenfield é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul desde 1982 e, a exemplo dos dois outros autores do livro em questão, também já flertou com a esquerda antes de virar à direita.

Rosenfield conta que, em 1989, quando o petista Olívio Dutra era prefeito de Porto Alegre, seu vice, Tarso Genro, convidou o filósofo marxista Cornelius Castoriadis para acompanhar uma reunião do Orça­men­to Participativo, realizada num bairro de periferia, ao qual se chegava por uma rua de terra, que havia virado um lodaçal devido às chuvas. “Na época, um repórter da ‘Folha de S. Paulo’ perguntou a Castoriadis o que ele pensava do Orçamento Partici­pativo. Sem hesitar, e exaltado, ele comparou a iniciativa à experiência dos Conselhos Húngaros de 1956”, conta Denis Rosenfield, lembrando que esses conselhos foram esmagados, na época, pelos tanques soviéticos e acrescentando que Castoriadis, mesmo se definindo como anarquista, julgava o anarquismo ingênuo, por não saber “fazer contas”.

João Pereira Coutinho: religiões seculares oferecem simplificação
João Pereira Coutinho: religiões seculares oferecem simplificação

Patológica atração pela violência

Em outra ocasião, foi a vez do socialista português Mário Soares, então presidente de Portugal, dar visibilidade internacional ao Orçamento Participativo, cobrindo de elogios a iniciativa, que, a essa altura, segundo o filósofo, já estava totalmente colonizada pelo PT, que elegia a esmagadora maioria dos representantes comunitários, mantendo o controle das assembleias. “A presença do socialista Mário Soares deu legitimidade política ao evento. Na versão transmitida pelas TVs internacionais, Porto Alegre estava vivenciando uma experiência inédita de democracia participativa e direta”, escreve Rosenfield, observando que essa “competência do PT no processo de formação da opinião pública ajuda a explicar o lento, porém seguro, caminho da conquista do poder pelo partido”.

Denis Rosenfield observa, ainda, que o Fórum Social Mun­dial, fortemente bancado pelo governo petista do Rio Grande do Sul, “tinha se tornado uma referência do ‘novo socialismo’ na França e em outras partes do mundo”, o que contribuía para mistificar as iniciativas petistas no Estado. Mas só o evento, em si, não explica a projeção internacional do PT gaúcho. Na verdade, a esquerda internacional, capitaneada pelos intelectuais franceses, está sempre em busca de novas experiências revolucionárias que compensem o fracasso das anteriores. Decorre disso o apelo internacional de uma figura como Hugo Chávez com o seu propalado “socialismo do Século XXI”, hoje sob o comando de seu pupilo e herdeiro Nicolás Maduro, uma figura ainda mais caricata.

A esquerda é incapaz de aprender com os recorrentes erros de sua história, pois desconhece a consciência individual, feita de responsabilidade e arrependimento, e sempre atribui a terceiros – o capitalismo, o burguês, o imperialista etc. – todas as consequências deletérias de seus atos. As montanhas de cadáveres das experiências comunistas formam uma cordilheira genocida na trajetória da humanidade e, no entanto, o comunismo jamais foi atirado à lata de lixo da história, como ocorreu merecidamente com o nazismo. O sangue parece ser a moeda corrente do socialismo. “A atração dos intelectuais franceses pela violência é um caso patológico”, observa Denis Rosenfield, lembrando que o filósofo Michel Foucault tomou-se de fanático entusiasmo pela Revolução Iraniana do Aiatolá Khomeini, saudando na imprensa a “retomada da violência revolucionária”.

O simplismo das religiões seculares

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Ao explicar por que também virou à direita, com o ensaio “Dez Notas para a Definição de uma Esquerda”, o jornalista e cientista político português João Pereira Coutinho, 38 anos, o mais novo dos três ensaístas do livro, também enfatiza o caráter violento da ideologia de esquerda, lembrando que o sociólogo francês Raymond Aron detectou com rigor o caráter dessas utopias ao chamá-las de “religiões seculares”, por entender que elas se apresentam como substitutos, no século XX, das “religiões exaustas”. Diz Coutinho: “As ‘religiões seculares’ oferecem um ‘sistema’ – ou, uma vez mais, uma vulgata, uma simplificação. O seu problema, porém, não está apenas nessa dimensão mimética; está na inevitabilidade da violência que contém”. E acrescenta: “Um dogma não se questiona: aplica-se. E se o resultado não é o desejado, é necessário encontrar os inimigos – reais ou imaginários”.

O filósofo pernambucano Luiz Felipe Pondé, 55 anos, no ensaio “A Formação de um Pessimista”, afirma que virou à direita ainda muito jovem, antes mesmo de entrar na USP para estudar filosofia. Inicialmente estudante de medicina, com uma passagem pelo teatro como diretor de quatro peças em Salvador, Pondé conta que essas experiências o afastaram da esquerda, com a qual apenas flertou (“como faz todo jovem”), na condição de “sartriano convicto”. E acrescenta: “Percebi que, além de serem diversos uns dos outros, os homens possuem capacidades e inteligências em diferentes graus. Aqueles que são mais capazes se incumbem dos encargos mais difíceis, enquanto os demais se aproveitam e, se são de esquerda, valem-se de uma série de argumentos para justificar sua preguiça e sua mediocridade”.

Recorrendo a Alexis de Toc­que­ville, Pondé critica o “cartesianismo selvagem do homem de­mo­crático (e sua tagalerice)”, por sinal, explorado com sucesso pela es­querda, que, historicamente, sempre usou as liberdades democráticas para solapar a democracia. Diz Pondé: “A democracia es­timula em todos a crença nas próprias opiniões (versão medíocre do ‘penso, logo existo’, de Descartes), porque faz todo mundo se achar ‘igualmente’ capaz de emitir opiniões sobre tudo. Mas sabemos que não construímos nossa opinião a partir de nós mesmos, e sim de uma longa teia ancestral de ideias, práticas morais e afetos”. Pondé observa que “a esquerda idealiza a democracia porque gosta da retórica do povo” e, com Tocqueville, salienta que “a identidade entre democracia e liberdade não é uma evidência”.

A democracia só funciona em favor da liberdade com o contrapeso das diversas instituições que se entrechocam, como a família, a religião, as associações, os sindicatos etc., criando um ambiente de poder descentralizado. Entregue a si mesma, sem o concurso das instituições, a democracia pode resultar numa ditadura da maioria. O francês Alexis de Tocqueville, lembra Pondé, intuiu que “a democracia levaria à eliminação – ou ao desejo de eliminação – de hábitos inúteis e faria de todos nós alegres habitantes de um admirável mundo novo”, alicerçado na “obsessão pela eficácia e utilidade”, como se vê, por exemplo, no culto à saúde, que chega a proibir propaganda de leite em pó num País em que há bebês que herdam da mãe o trágico vício do crack, com todos os sintomas de abstinência da droga.

A “democracia direta” pregada pela esquerda é uma tentativa de dispensar as instituições, que se erguem e se consolidam ao longo da história, para delegar todo poder às assembleias de ocasião, constituídas dos que detêm o poder no presente. A esquerda substituiu a violência revolucionária pelo condicionamento ideológico, que se impõe através das próprias instituições, como escolas, meios de comunicação e até o sistema judiciário, cada vez mais aparelhado. Por isso, a direita não pode ir às urnas – e se vai, é logo transformada em caricatura, como deve acontecer com o Pastor Everaldo. É que as ideologias não resistem aos fatos e, para sobreviver, precisam suprimi-los, alimentando-se da vã esperança dos desinformados.