Desprezo da elite pelo Centro afeta o cotidiano de quem mora e depende do bairro

20 agosto 2023 às 00h01

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Era por volta das 15h quando estacionei minha moto em uma vaga ao lado do Teatro Goiânia e da Lojinha do Queijeiro, que se instalou ali 1989, no mesmo ano da primeira eleição direta depois da ditadura militar. Costumo passar pela Avenida Anhanguera sempre que quero ir ao Centro. No hábito, para dizer a verdade, eu quase não piloto pela linha do Eixão, mas ela sempre foi minha referência para atravessar a cidade desde os tempos em que o transporte coletivo era a única opção.
Planejei comer um curau gelado, mas logo um burburinho me chamou a atenção e passei a assistir a cena de dois homens e uma mulher discutindo política. A derrocada de um e o slogan do outro. A busca por refúgio em Goiânia. Seguiram colocando caixas e caixas dentro de um carro enquanto riam dos próprios argumentos. Para uma sexta-feira como tantas outras do clima quente e seco de agosto, o clima era ameno. Não muito longe dali, se reuniam os tomadores de decisões.
“Opa, meu ônibus chegou e está vazio”, diz uma moça subindo as escadas do coletivo que rumava para a Praça Cívica. Desde a implementação da Zona 40 naquela região, o trânsito parece mais amigável ao pedestre, mas as calçadas e desníveis de uma das seis pistas da Avenida Anhanguera ainda são desafios para se locomover. O sinaleiro do outro lado da rua é difícil de enxergar, bem como os carros vindos de todas as direções.
Seguimos. Observo apenas o vai e vem de gente e prosa. Me lembro da igreja que vi na semana passada, mas que agora, ao contrário da última vez, poderia visitar por uns minutos. Cruzei na Rua 4 as muitas lojas que vendem plantas para banhador e receitas, vibração de energia e remédio.
Quando eu cheguei à igreja, a missa havia acabado, restando apenas carros estacionados e grades fechadas. Na última vez, tinha visto quatro gatos na lateral da igreja. Hoje, nem eles estavam lá. Botei a cara entre as grades para que os olhos ficassem o mais perto possível dos detalhes, dos vitrais. Conforme a luz do Sol baixava , o reflexo que antes escondia agora revelava com mais clareza.

A janela com formato de vela tem tantos detalhes que um registro fotográfico dificilmente capta. Aos pés de Nossa Senhora das Graças, com um chapéu que ao primeiro olhar parece uma nuvem, dois vasos com flores de narciso-silvestre. No conhecimento popular, a planta, ainda que tóxica, era usada para tratar feridas na pele e nervos. Ou talvez fosse um lírio, que pode ser usado para tirar dor, inflamação e desintoxicar. No ritual descrito naqueles vitrais junto à Nossa Senhora, aparece uma freira entregando uma cumbuca para o acamado. A cura através do pedido simboliza as celebrações daquela igreja branquíssima. .
O contraste entre a história e o atual cenário pode ser visto nas ruas. O Centro de Convenções se preparava para receber um evento de empreendedores e a falta de espaço para tanto carro era notável antes mesmo do lugar encher. Sem estacionamento para todos, os carros invadem os passeios e se amontoam em cima do piso tátil para pessoas com deficiência.
Ainda com algum resquício de luz, muitos moradores reúnem na porta de casa, ou na do vizinho, banquinhos, cadeiras e as preocupações. “Tal imobiliária está no pé”, dizem. “A incorporadora do fulano também”, escuto de longe.
Nesta andança pelo Centro, é fácil notar as duas maiores preocupações dos moradores e trabalhadores daquele pedaço. O medo de que o Centro fosse tomado. A obra do BRT (Bus Rapid Transit) é uma única certeza: não termina nunca. “E pior, ainda perdemos o canteiro para um monte de caminhão e máquinas, poeira”, reclama.
Professora de arquitetura e urbanismo, Maria Ester explica que muitos monumentos são substituídos com o passar do tempo. Áreas ajardinadas vão sendo trocadas por concreto, enquanto as demonstrações cívicas perdem o sentido e o comércio vai perdendo força. “A gente tem uma cultura de urbanização que induz que tudo que foi feito, precisa ser desmanchado. E dá uma ao antigo pejorativa, sem valor. Não temos cultura patrimonial”, desabafa.

Sem o acolhimento do que é velho, o abandono cultural e das pessoas leva cada vez mais moradores aos condomínios periféricos. O movimento, claro, não é novo. “Você pensa um lugar cujo projeto original era um Boulevard, mas resolve cortar a praça para colocar um BRT. O comércio não suporta tantos anos de obras”, argumenta.
Para que o comércio respire, o espaço público depende de pessoas circulando. “Esse movimento é até natural. Abre e fecha, abre e fecha. Aí vem uma gestão e, irresponsavelmente, interrompe essa circulação de pessoas por oito anos. Ninguém mais quer ir pra avenida Goiás”. Maria Ester conclui que a preservação do patrimônio e a promoção da diversidade são essenciais para manter a vitalidade do centro urbano.
De uma forma mais simples e certeira, um comerciante, ao ser perguntado sobre o BRT, reclama. “É que nem o personagem do Chico Anysio dizia: o pobre que se exploda”. As obras intermináveis e os arredores tomado por vendedores ambulantes, levam a clientela para longe.
O pouco respiro dos moradores vem da tradição das culturas, misturada à arte de rua. Na Livraria Opção, uma discussão acalorada sobre direito, patentes e claro, o trambolho lá fora. Sem ideia do que será feito e de como serão feitas as tais reestruturações do Centro, eles cobram diálogo.
A tomada dos espaços públicos tenta acuar os moradores, empurrá-los para dentro ou para longe. No artigo ‘Avenida Goiás: Uma Trajetória do Monumento Intencional ao Monumento Histórico’, a arquiteta Irina Alencar de Oliveira descreve o processo de degradação que Goiânia passou a partir dos anos 70.
Isso envolveu a demolição de edifícios e estruturas que haviam perdido seu valor memorial ou identitário, possivelmente devido ao rápido crescimento populacional e urbano que ocorreu nessa época. A urbanização acelerada muitas vezes resulta na perda da conexão afetiva com os espaços pré-existentes e pode levar a decisões de remover monumentos que não são mais relevantes para a nova identidade urbana emergente.
“Conforme observado anteriormente, a Avenida Goiás, com seus elementos pitorescos e monumentais, pretendia marcar o tempo de seu nascimento, desde o projeto”, escreve Irina Alencar de Oliveira. “A força de tal intenção impregnou sua existência e sua imaginário urbano, influenciando a forma como os indivíduos tem se apropriado de seus espaços ao longo do tempo, no âmbito material ou abstrato. Os eventos realizados em suas vias, como passeatas, desfiles e atividades culturais, são um exemplo do seu valor simbólico para parte da população”.
