Delações premiadas: ferramenta da Justiça ou tiro no escuro? Procurador do MPF responde

23 agosto 2020 às 00h01

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O sistema de colaboração é amplamente usado pelo MPF. Mas até onde vão seu risco e eficácia?

Em relatório assinado no dia 11 de agosto e que veio a público no dia 16, a Polícia Federal (PF) concluiu que trecho da delação premiada do ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci, fechada em 2018 em ação contra Lula, não tem comprovação fática. Conforme o delegado federal Marcelo Daher, no relatório da PF, os “fatos delatados por Palocci foram desmentidos por todas as testemunhas, declarantes e por outros colaboradores da Justiça”.
Antes disso, no início do mês, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) também anulou acusações produzidas em conjunto por Palocci e pelo ex-juiz Sergio Moro às vésperas da eleição presidencial de 2018, em ação penal contra Lula. Segundo o ministro Ricardo Lewandowski, “a juntada, de ofício, após o encerramento da fase instrução, com o intuito de gerar, ao que tudo indica, um fato político, revela-se em descompasso com o ordenamento constitucional vigente”.
Os acontecimentos envolvendo delações do ex-ministro Palocci trouxeram novamente para o centro dos debates o velho questionamento que nasceu junto com a Lava Jato: até que ponto delações premiadas devem ser usadas e creditadas? Até que ponto elas são úteis para verificar corretamente o dolo, ou não, dos investigados numa operação?
Para o procurador da República e representante do Ministério Público Federal (MPF) em Goiás, Helio Telho, aquilo que ele chama de colaboração é, na verdade, uma moeda de duas facetas. O procurador explica que quando um investigado decide delatar, sua cooperação vira um instrumento de acusação, do ponto de vista de quem é delatado, ou uma tática da defesa, do ponto de vista do delator. Porém, pode ajudar nem um e nem outro.
Tudo depende da situação do acusado e do material coletado pela investigação. “O advogado vai avaliar a situação jurídica do cliente e analisar as opções de defesa. Se ele tiver uma opção que não seja a colaboração que possa trazer uma maior vantagem para o cliente dele, ele vai aconselhar o cliente a não colaborar”, esclarece Telho.
Entretanto, mesmo que o investigado manifeste desejo de colaborar, ele pode não obter sucesso. O procurador relata que se o acordo proposto pelo investigado beneficia apenas o seu lado, oferecendo ao MPF informações já apuradas ou sem base fática, o próprio órgão pode recusar a proposta. “Às vezes, a defesa apresenta uma proposta de acordo que para a acusação não é interessante, porque aquilo que a defesa está oferecendo em termos de colaboração, de informação, de prova, a acusação tem outros meios de conseguir, ou a acusação já conseguiu, ou são coisas que não têm relevância quando comparado com o papel do investigado na organização criminosa”, diz.
Comprovação de informações
Se para comprovar o crime do acusado bastasse a simples palavra, meio mundo de processos já estariam finalizados. Todavia, para se apontar a culpa de alguém, deve-se apresentar provas e esse princípio jurídico também se aplica às colaborações feitas por investigados pelo MPF.
Conforme o procurador Helio Telho, sob a ótica da investigação, a colaboração tem por objetivo obter informações e provas que, se não fosse pela colaboração, “ou não se conseguiria ou seria muito difícil, custoso e demorado para se conseguir”. Porém, Telho explica que a palavra do delator só tem validade caso ele apresente, junto aos fatos relatados, evidências que confirmem tudo o que contou aos procuradores. Caso contrário, a simples “boa fé” do colaborador não tem serventia alguma. “O colaborador não é aquele criminoso que se arrependeu de ter cometido o crime. Pode até acontecer isso, mas, via de regra, não é isso que acontece. Ele colabora porque é melhor pra ele”, conta Telho.

“A lei brasileira condiciona que o colaborador só vai receber os benefícios se aquilo que ele está afirmando for corroborado por outras provas. Não basta a palavra, é preciso que haja provas de corroboração. Muitas das vezes o colaborador tem essas provas. Ele pode ter conversas de Whatsapp, tem e-mails, extratos de conta bancária, recibo de depósito, passagens aéreas. E às vezes ele não tem a prova, mas ele sabe onde a prova está e tem condição de indicar”, explica o procurador.
Caso os fatos informados sejam corroborados pelas evidências apresentadas pelo delator, os “prêmios” podem ser muitos. De acordo com Telho, um acordo bem-sucedido dá ao investigado a possibilidade de receber o perdão judicial ou até mesmo não ser denunciado no inquérito. Além disso, o delator pode receber outros benefícios que não o livram da pena, mas pelo menos a suavizam. “Por exemplo, ele pode ter a pena reduzida em até dois terços. Pode ter pena privativa de liberdade substituída por restritiva, em que ele vai cumprir uma pena que não é necessariamente um regime fechado no presidio. Ele pode cumprir a pena em regime domiciliar, prestando serviços à comunidade”, esclarece.
Contudo, caso se comprove que o delator mentiu, sua situação pode ficar ainda mais complicada. “Se ele revela fatos que não têm comprovação, ou que ao final se comprove que eram falsos, além de não receber os benefícios, ele vai responder por crime de denunciação caluniosa”, conta Telho.
O que aconteceu no caso Palocci
Se o MPF cobra evidências das colaborações oferecidas ao órgão por investigados, então como Palocci conseguiu que informações falsas fornecidas por ele fossem homologadas no processo contra Lula?
A delação de Palocci foi fechada em 2018 pela própria PF e tem 34 anexos. Nesse anexo que levou a uma investigação aberta em São Paulo, o ex-ministro relatou que André Esteves movimentou no banco BTG, em nome de terceiros, valores recebidos por Lula em crimes de corrupção e caixa 2. Em contrapartida, Esteves teria recebido informações privilegiadas do governo sobre a mudança da taxa Selic, que permitiu que ele tivesse lucro e que usasse parte desses recursos para fazer doações para a campanha do PT em 2014.
Porém, o delegado da PF, Marcelo Daher, após investigação, acabou constatando que os fatos narrados Palocci parecem ter sido tirados de “pesquisas na internet” e “notícias dos jornais”, sem que sejam apresentadas provas que sustentem a continuidade da investigação.

O procurador Helio telho revela que o MPF já sabia que a delação de Palocci era uma furada. Conforme Telho, em 2018 a defesa do Palocci procurou o MPF e ofereceu colaboração em troca de benefícios, apresentando um relato de fatos que ela pretendia incluir no objeto do acordo de colaboração e informando quais as provas que teria a respeito dos fatos.
Porém, Telho conta que o MPF analisou a proposta da defesa do Palocci e as provas que ele disse que tinha, comparou com as provas que já estavam em poder do MPF e as investigações que já tinham sido realizadas até então, e chegou à conclusão que o que o Palocci estava oferecendo não valia um acordo. “O Palocci ou estava falando sobre fatos que já eram de conhecimento do MPF e já estavam investigados e comprovados, ou estava falando sobre fatos que ele não tinha como comprovar. Então o MPF recusou e não fez acordo”, recorda.
Ao ter a possibilidade de colaboração negada pelo MPF, a defesa de Palocci, então, recorreu à Polícia Federal. Em 2018, o STF decidiu que a PF pode negociar e celebrar acordos de delação premiada mesmo sem anuência do Ministério Público. Para a maioria dos ministros, a autorização não fere a Constituição nem prejudica o poder do MPF.
Telho conta que a Justiça chegou a pedir a manifestação do MPF sobre a possibilidade da PF fechar acordo com a PF. A resposta foi categórica. “Nós [do MPF] dissemos que éramos contra. Pedimos pra que não se homologasse o acordo, porque ele não acrescentava em nada, não era útil”, afirma o procurador. Mesmo assim, a PF acatou as informações fornecidas por Palocci e selou o acordo de delação.
O procurador acredita que a PF somente aceitou a proposta da defesa de Palocci por causa da discussão da possibilidade do órgão de ter poder fechar acordos com investigados sem o crivo do Ministério Público. “E essa possibilidade legal estava sendo questionada pelo MP, pela PGR, dizendo que era inconstitucional e que so o MP podia fazer acordo, e a pf queria ter essa possibilidade de fazer acordo, então ela fez. Não porque isso iria trazer fatos novos e trazer novas punições, mas porque isso iria reafirmar a possibilidade legal” da PF, arremata.