Fentanil e nitazenos: a ameaça que se espalha do Norte dos EUA para a América Latina

22 setembro 2025 às 10h08

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“É uma epidemia”, diz Antônio Caiado, goiano que vive nos Estados Unidos há 20 anos. “Muitos jovens, principalmente no Norte do país, têm morrido por overdose de fentanil. Muitos adolescentes têm perdido a vida”. Desde 2018, cenas de usuários dos opioides sintéticos chamam a atenção nas redes sociais e nos noticiários: pessoas inconscientes, aparentemente paralisadas em pé ou sentadas.
Segundo o Centers for Disease Control (CDC), a crise chegou ao auge em 2023, quando 105 mil pessoas morreram por overdose nos EUA. Desde então, medidas de controle nas fronteiras fizeram com que a disponibilidade da droga caísse e as mortes diminuíssem nos Estados Unidos. Neste período, entretanto, no Brasil e no restante do mundo, cresceu a circulação de fentanil e outros opioides sintéticos ainda mais potentes, como os nitazenos.
O Relatório Mundial sobre Drogas 2025 da ONU revela que os opioides sintéticos foram o segundo grupo de drogas sintéticas mais apreendido no mundo em 2023, com o fentanil dominando em termos de número de doses devido à sua alta potência. O tráfico ainda concentra-se na América do Norte, onde os opióides sintéticos foram originalmente usados como agente de corte para drogas já estabelecidas no mercado, como heroína, mas começaram a surgir também na América Latina.
Estudo de 2025 do Ministério da Justiça e Segurança Pública revelou que as apreensões desses opioides têm se tornado frequentes: de 2022 a 2023, a Polícia Civil de São Paulo realizou 133 apreensões de drogas em que nitazenos estavam presentes. O tipo mais comum identificado foi o metonitazeno, em forma de vegetal seco e fragmentado, o que sugere o uso por via inalatória (fumada). Os nitazenos também foram misturados com canabinoides sintéticos, bem como com cocaína.
Polícias civis de três estados já identificaram nitazenos em apreensões: São Paulo, Minas Gerais e Santa Catarina. Questionados pelo Jornal Opção, tanto a Delegacia Estadual de Repressão a Narcóticos (Denarc) quanto a superintendência da Polícia Federal em Goiás afirmaram que não há registros de apreensões dos opioides sintéticos no Estado. Nos países da América Latina, o fentanil circula principalmente em ampolas desviadas de sistemas de saúde, segundo a subdiretoria de Drogas da Procuradoria Nacional.
Menos de cinco apreensões foram feitas no Brasil no período analisado pelo relatório de 2025 da ONU — mas, desde então, outras apreensões chegaram aos jornais. Em 15 de setembro, uma jovem de 20 anos foi presa em flagrante em Recife portando 20 frascos de fentanil, por exemplo.
Infográfico no Relatório Mundial sobre Drogas 2025 ilustra a potência da droga em comparação com similares:

Renata Mazaro é professora titular do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Universidade Federal de Goiás (UFG). A professora faz parte do Centro Regional de Referência para Formação Permanente sobre Drogas, do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Drogas e Outras Dependências, e desenvolve a linha de pesquisa neurobiologia das drogas de abuso. Em entrevista ao Jornal Opção, a pesquisadora explica o funcionamento dos opioides sintéticos e a razão de sua letalidade.
“Os nitazenos são mais potentes, e portanto provocam maior risco de morte”, diz Mazaro. “Apesar de possuírem o mesmo mecanismo de ação da morfina, precisam de quantidades bem menores para exercer o mesmo efeito, seja analgésico, ou seja de deprimir a região do cérebro que controla a respiração. A morte induzida pelos opioides ocorre, principalmente, pelo fato dessas drogas inibirem a resposta do centro respiratório (neurônios no cérebro que respondem às modificações de parâmetros sanguíneos referentes à respiração, principalmente a quantidade de gás carbônico no sangue).”
“Se a quantidade de gás carbônico estiver alta no corpo, os neurônios do centro respiratório disparam uma resposta para o sistema respiratório aumentar a troca gasosa e eliminar o CO2. Contudo, sob efeito dos opioides, esses neurônios perdem a habilidade de identificar essa alteração, e o corpo não consegue compensar o alto CO2 — o indivíduo vai parando de respirar, até a morte.”
“Como a potência é maior, os nitazenos e o fentanil deprimem o centro respiratório com pouca quantidade. Ao mesmo tempo, induzem a dependência rapidamente; tudo porque os receptores que se ligam as essas drogas têm alta afinidade por elas e possuem um mecanismo de adaptação rápida frente sua a presença. O corpo passa a precisar de mais e mais drogas para obter o efeito inicial.”

A heroína é menos potente em termos farmacológicos em comparação com o fentanil e os nitazenos, mas ainda é muito perigosa, destaca Renata Mazaro.
De problema de saúde à crise geopolítica
O governo do republicano Donald Trump tem tomado medidas para controlar a crise dos opioides nos Estados Unidos. Além de aumentar o controle domesticamente, com operações e forças-tarefa policiais para desmobilizar redes de tráfico, o país passou a cobrar que países latinoamericanos persigam narcotraficantes e produtores de drogas em seus próprios territórios.
A atitude está alinhada à nova diplomacia linha-dura dos Estados Unidos — em harmonia com tarifaços globais, suspensão do suprimento de armas para aliados e disputa agressiva por minérios estratégicos. Na última segunda-feira, 15, militares americanos destruíram um navio venezuelano que viajava em águas internacionais, supostamente com drogas a caminho dos EUA. Nicolás Maduro disse sofrer “agressão” dos EUA, chamando o principal diplomata americano, Marco Rubio, de “senhor da morte e da guerra”.
Embora não tenha recorrido à ação militar, os Estados Unidos pressionaram o México (após a China, o México é o maior produtor mundial de fentanil) a reforçar o combate ao narcotráfico por meio de sanções econômicas. Atualmente, os EUA estão em uma disputa tarifária e política com o Brasil — movida em parte pela condenção do ex-presidente Bolsonaro, aliado de Trump. Abrigando grandes facções criminosas que exportam drogas, o Brasil se preocupa com a possibilidade de se tornar um alvo.
Em 9 de setembro a secretária de imprensa da Casa Branca, Karoline Leavitt, disse que o presidente dos EUA, Donald Trump, não tem medo de usar recursos militares e econômicos contra o Brasil. Um dia antes, o presidente Lula (PT) havia criticado o envio de forças navais dos Estados Unidos para o Caribe (com propósito de coibir o narcotráfico), chamando-as de uma fonte de tensão que poderia minar a paz na região.
Para entender até onde o conflito pode escalar, o Jornal Opção ouviu um militar de dupla cidadania. Nascido em Mossâmedes, Goiás, Antônio Caiado vive nos Estados Unidos há 20 anos. Atualmente morando em Dallas, ele é primeiro-sargento na Texas Army National Guard, responsável por gerenciar equipes que coletam informações usadas na elaboração de operações estratégicas do exército americano. Ele revela detalhes da “guerra às drogas” conduzida por Donald Trump.

“Os Estados Unidos vêm adotando ações não apenas no México, mas também dentro do próprio território. Na semana passada, por exemplo, o exército apreendeu um grande volume de material utilizado na produção de fentanil que estava dentro dos Estados Unidos. O maior produtor é a China. O México funciona, na verdade, como rota de trânsito: os insumos chegam lá, a produção é finalizada e, em seguida, a droga é enviada para os Estados Unidos.”
“Atualmente, no entanto, a fronteira está muito mais fechada, o que dificulta bastante a entrada de qualquer tipo de droga. A forma como Trump tem combatido o tráfico deve reduzir o consumo interno nos próximos anos. Ele reforçou o controle em todo o Caribe, além de intensificar a vigilância nas fronteiras com o México e o Canadá. Ele não está brincando: os Estados Unidos mantêm vigilância em nível global.”
“Por outro lado, à medida que Trump endurece o combate, os traficantes também buscam novas rotas alternativas. Ou seja, a luta contra o tráfico e, em especial, contra o fentanil não é apenas um pretexto político, trata-se de uma preocupação real. A intenção é reduzir as mortes de cidadãos, não se trata de uma tentativa de interferir em outros governos.”
Por que nos EUA e não no Brasil?
Renata Mazaro explica que fatores históricos e de políticas públicas explicam por que os opioides se tornaram um enorme problema nos Estados Unidos, mas nem tanto no Brasil. Essa realidade não diz respeito apenas ao fentanil e nitazenos, mas remonta à heroína no século 20. O elevado custo da heroína desestimulou seu uso no Brasil, enquanto nos EUA, a maior penetração dos opióides está associada ao uso da morfina por veteranos de guerra.
“No Brasil, o perfil de usuários de opioides está ligado aos profissionais da área da saúde, que têm acesso aos medicamentos controlados. Sobre as overdoses, temos principalmente casos de intoxicação acidental, quando essas drogas estão misturadas em outras. Há registro de fentanil colocado nos selinhos de LSD, por exemplo. A pessoa compra o LSD e consome fentanil sem saber.”
“Pela facilidade de síntese em laboratórios clandestinos de algumas moléculas presentes nas drogas sintéticas, elas acabam entrando no mercado de forma muito fácil”, diz Renata Mazaro sobre novas drogas não catalogadas. Ela explica que para que uma nova droga passe a ser monitorada pelas autoridades, os órgãos competentes da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (SENAD) solicitam à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sua inclusão nas listas de classificação. “Isso ajuda muito a polícia no controle da repreensão desse tipo de droga quando chega no Brasil”.
A cientista explica por que e como produtores e traficantes seguem criando novas moléculas. “Pensando da perspectiva dos traficantes, fazendo uma ‘análise de mercado’, a existência de drogas muito potentes, que levam à morte os usuários, isso não é interessante. O tráfico perde seu usuário. Então, eles fazem ajustes de acordo com a resposta de intoxicação desse usuário. É um processo bem primitivo do ponto de vista científico e farmacológico, mas é a forma que eles fazem o equilíbrio do mercado de consumo deles, infelizmente”.
Os laboratórios forenses associados às polícias Civil e Federal são capazes de identificar opioides, sejam naturais ou sintéticos, como é o caso do fentanil e os nitazenos. “A rede dos CIATox (Centros de Informação e Assistência Toxicológica) estão distribuídos em 22 das 27 unidades federativas do Brasil, totalizando 32 centros ativos”, diz Renata Mazaro.
Quando uma vítima busca tratamento e a intoxicação é confirmada, médicos podem reverter o efeito depressor respiratório com a droga Naloxona — um antagonista de opioide indicado para o tratamento de emergência de superdose. “Após o acolhimento e tratamento da vítima, o sangue é enviado para laboratórios de análises cadastrados.”
“O grande alerta feito pela United Nations Office on Drugs and Crime (UNDOC) hoje, e de todos órgãos responsáveis dos países que trabalham avidamente para o combate do tráfico de drogas, são as drogas sintéticas. Essas drogas são produzidas a todo momento. São refúgios de moléculas da indústria farmacêutica que não foram aproveitadas para uso terapêutico, mas que encontraram uso de forma abusiva por conta de seus efeitos colaterais”, conclui Renata Mazaro.