Para especialistas, a Covid-19 acelera o processo de digitalização e alterações nas relações de trabalho que já estava em andamento

Rondinely Leal: “A gente tem uma sensação de posse” | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

No auge das medidas de isolamento social para o combate ao coronavírus, que variou de severas a brandas dependendo do país, cerca de 2,3 bilhões de trabalhadores tiveram alguma restrição para exercer suas funções. O número, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), mostra o desafio que é devolver a rotina para essa imensidão de pessoas. Porém, especialistas cravam, quase unanimemente, que essa rotina nunca mais será a mesma.

Em todo o mundo, empresas foram fechadas. Em Goiás, a suspensão das atividades não consideradas essenciais começou no dia 19 de março, com um decreto do governo estadual. Portanto, há exatamente um mês a atividade econômica está praticamente parada – com exceção do comércio de alimento e de higiene, assim como serviços de saúde e poucos mais. Nos últimos 15 dias, houve certa flexibilização. Agora, mais pessoas se preparam para voltarem aos seus postos.

Dilze Percílio: pequenas metas diárias | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

Porém, nada será como antes. O trabalho remoto, visto com desconfiança tanto por trabalhadores quanto pelos empregadores, foi uma imposição – obviamente, para as atividades possíveis. “Esse é um caminho sem volta: o trabalho mediado por ferramentas tecnológicas e remoto”, diz a mestre em Sociologia da Cultura Dilze Percílio, que é diretora da Associação Comercial, Industrial e de Serviços de Goiás (Acieg) e de uma empresa de assessoria em Gestão e Desenvolvimento Organizacional, a Apoio Consultoria de Negócios.

Dilze lembra que o home office não é uma possibilidade nova, mas que ficava restrita a cargos superiores. Com a pandemia, essa foi uma solução para “todo mundo”, obviamente limitada a funções administrativas e atividades que podem ser executadas com um computador ou celular conectado à internet, como vendas e recursos humanos.

O problema é que a maioria das empresas não estava preparada. “Elas não pensaram na estrutura necessária para o home office”, diz. Essa estrutura, segundo Dilze, não se limita aos equipamentos tecnológicos. “Ela passa pelas condições de trabalho, acesso aos sistemas corporativos – inclusive por causa de questões de segurança – e discussão sobre a carga horária”, cita.

Carga horária

A carga horária, inclusive, é questão polêmica. Advogado trabalhista e mestre em Direito das Relações Sociais Trabalhistas, Rafael Lara Martins explica que, a rigor, o home office – que é apenas um tipo de teletrabalho – não estipula jornada o que, consequentemente, não gera horas extras. “O prestador de serviços pode executar o trabalho no horário que for mais conveniente, seja durante o dia ou na madrugada”, explica.

Isso muda, contudo, quando há um controle do horário de trabalho por parte do empregador. “Teletrabalho não é escravidão. Quando o [funcionário] tem de ficar o tempo todo disponível e está sendo controlado, nesse caso cabe a discussão sobre horas extras”, diz o advogado.

Assessora jurídica da Federação das Indústrias de Goiás (Fieg), Lorena Blanco reforça essa preocupação. Ela lembra que a legislação sobre o teletrabalho presume que o empregador não irá controlar a jornada do empregado.  “No entanto, se na prática houver a fiscalização do tempo do trabalho, por exemplo através do período em que o empregado permanece logado no sistema, ou pelo tempo em que o empregado responde os e-mails, a consequência será o pagamento de horas extras se ultrapassado o limite legal da jornada”, esclarece.

Rafael Lara: “Teletrabalho não é escravidão” | Foto: Divulgação

Conforme Rafael Lara, há três aspectos que têm de ficar muito claros quando se opta pelo home office ou outra modalidade de teletrabalho: a própria questão da jornada, o custo com a estrutura (computadores, celular, internet) e o ambiente de trabalho. Esse último item incluiu questões relacionadas à saúde do trabalhador, como a ergonomia dos móveis.

O advogado trabalhista lembra que, mesmo com o trabalho sendo executado na casa do empregado, é o empregador o responsável. “A empresa tem de, no mínimo, orientar o trabalhador sobre essas questões [de ergonomia], seja por um e-mail, treinamento por vídeo ou uma cartilha”, explica. Detalhes como gastos com energia elétrica, telefone e internet podem ser acordados e pagos por meio de ajuda de custo, por exemplo.

Assim como Dilze Percílio, Rafael Lara acredita que a experiência provocada pela pandemia mudará o mundo do trabalho. “O normal nunca mais será igual. O normal serão reuniões pelo Zoom [aplicativo de videoconferência]. As relações de trabalho vão mudar, sem dúvida. Estamos no admirável mundo novo”, diz.

Sem traumas

Esse admirável mundo novo – título do livro distópico de Aldous Huxley – pegou o empresário Cassius Pimenta de surpresa, mas a transição não foi traumática. Dono da Marol Auditoria e Consultoria, que atua em questões ambientais e tributárias, ele tem 60 funcionários, 15 deles em trabalhos internos. “Na nossa atividade é mais fácil trabalhar [em home office], porque precisamos basicamente de um notebook, pois todos os arquivos estão na nuvem”, conta.

Durante esse período, ele conta que a experiência o surpreendeu e foi positiva. Cassius acredita que o trabalho externo forçado pela pandemia quebrou paradigmas e que pode influenciar na tomada de decisões a partir de agora. “Muita coisa vai mudar. O empresário vai notar a questão dos custos, a parte trabalhista. Um amigo está economizando R$ 14 mil em aluguel”, conta.

Na Potência Medições, que presta serviços na área de manutenção de linhas de distribuição de energia elétrica, Rondinely Leal dividiu a equipe interna em dois períodos (quatro pela manhã, quatro à tarde). O restante da jornada os colaboradores cumprem remotamente, mesmo a empresa se enquadrando em serviços essenciais. “Fazendo um balanço, vejo que não perdemos produtividade”, afirma.

Contudo, o empresário admite que ainda há barreiras a serem rompidas para que o home office se torne uma possibilidade mais viável. “A gente [gestor] tem um sentimento de posse. Uma coisa é acompanhar [o trabalho] lado a lado, perceber que está no caminho certo ou se será preciso refazer”, avalia. Para Rondinely, a presença física ainda é essencial. “No home office fica uma sensação de vazio”, diz.

Cinthia Martins: “Trabalho em casa favorece a concentração” | Foto: pessoal

Videoconferências

Quem está em casa também sente a falta do contato pessoal. Cinthia Martins gerencia uma equipe de seis pessoas na Toctao, empresa que atua no ramo da construção civil. Duas delas estão em home office e as demais estão paradas, porque trabalham nos canteiros de obras. “Sinto falta do contato físico”, admite Cinthia. Para quebrar o gelo, a equipe realiza videoconferências para falar de assuntos alheios ao trabalho – assim como a equipe do advogado Rafael Lara, em que um dos parceiros já deu aula de yoga para o grupo.

“O trabalho só em casa acho inviável, mas as empresas precisam considerar essa possibilidade, encontrar um equilíbrio entre o home office e o trabalho presencial”, acredita Cinthia. Ela lembra que empresas inovadoras utilizam com mais intensidade as possibilidades do teletrabalho, mas ressalta que algumas situações precisam ser resolvidas “olho no olho”.

Com vantagens e desvantagens nos dois modelos, Cinthia diz que, após o fim das restrições, gostaria de trabalhar remotamente “dois ou três dias da semana”. Em casa, ela acredita que consegue mais concentração, pois não há interrupção por causa de conversas ou barulho de telefones, por exemplo. No caso dela, contudo, uma coisa facilita: Cinthia não tem filhos e o marido, que trabalha na área da saúde, continua com trabalho externo.

Gessilma Dias, do Centro de Capacitação de Profissionais de Educação e de Atendimento às Pessoas com Surdez (CAS), encontra na especificidade de sua atuação um desafio para o home office. Professora de Língua Brasileira de Sinais, ela explica que o ensino é feito prioritariamente em aulas presenciais, pois “as aulas à distância não são o melhor método” para o aprendizado.

Nesse período de suspensão de aulas presenciais, elas estão sendo filmadas e disponibilizadas, assim como demais atividades, por meio do Google Classroom. Outras ferramentas, como o aplicativo Zoom e o Skype, que permitem videoconferências, também são usadas.

Gessilma, durante aula de libras em home office | Foto: pessoal

A necessidade de utilizar esses recursos tecnológicos, contudo, esbarra nas limitações dos próprios alunos. “Por ser uma instituição pública, temos pessoas de todas as esferas e, inclusive, que moram em outras cidades”, diz. Mesmo assim, Gessilma acredita que o aproveitamento tem melhorado. “Como estamos há 30 dias nesse processo, os alunos já não estão com tanta dificuldade de acessar e acompanhar as atividades”, conta.

Assim como Gessilma, outros 31 mil servidores públicos estão em home office – mais 9,5 mil estão afastados do trabalho, por fazerem parte dos chamados grupos de risco. Da mesma forma que a atividade privada, o setor público teve de enfrentar obstáculos para colocar tanta gente para trabalhar em casa repentinamente.

Serviço público

Gilsa Eva de Souza, subsecretária de Gestão e Desenvolvimento de Pessoas do Governo de Goiás, conta que o Estado já possuía legislação para regulamentar o home office no âmbito do Poder Executivo. O planejamento previa uma série de ações durante o ano, como visitas a órgãos públicos que adotam o modelo. Com a pandemia, os estudos serão acelerados.

Mas, com um mês de isolamento social, foi possível observar o que é necessário mudar na cultura do serviço público para que o trabalho remoto seja utilizado em larga escala. Por um lado, os servidores precisam adaptar suas rotinas, por outro, os gestores têm de mudar a forma como lideram suas equipes. “Sai o modelo de controle para o modelo de confiança”, diz.

A servidora pública conta que alguns órgãos têm relatado, inclusive, ganho de produtividade. É o caso, por exemplo, da Procuradoria-Geral do Estado. “A transformação [do serviço público] já começou. O cidadão busca cada vez mais o serviço digital, alguns paradigmas estão sendo quebrados. O Mindset [termo em inglês usado para designar padrões de pensamento] do servidor está mudando. Ele tem de ser mais criativo, proativo e independente”, afirma.

Lorena Blanco, assessora jurídica da Fieg, afirma que na iniciativa privada a quarentena também tem sido vista como um período de transformação. Ela acredita que os consumidores optarão, cada vez mais, por adquirir produtos sem sair de casa, obrigando as indústrias a se adequarem.

O teletrabalho, diz Lorena, deve crescer ainda mais após a crise causada pelo coronavírus. “A informatização já é uma demanda atual, sendo fundamental que os empresários e empregados entendam que a tecnologia será cada vez mais utilizada nas relações de trabalho”, afirma.

Lorena Blanco, da Fieg: “A tecnologia será cada vez mais usada no trabalho” | Foto: Fieg

Lorena lembra, porém, que nem todas as funções são adaptáveis ao teletrabalho, o que torna necessário a retomada responsável das atividades, de acordo com as normas do Ministério da Saúde. Para o empregado, o mais difícil é ter “um espaço de trabalho suficiente em casa, que seja tranquilo e silencioso para trabalhar sem interrupção”, acredita.

Para quem ainda teme a perda de produtividade dos funcionários, a consultora Dilze Percílio dá uma dica: o estabelecimento de pequenas metas diárias. “Ao invés de dizer para a pessoa faça isso, o gestor deve perguntar: ´o que vamos fazer hoje´?”, diz.

Para usar o jargão corporativo, é uma tremenda mudança no Mindset de todo mundo.