Conflito dos EUA com o Irã pode impactar exportações goianas
05 janeiro 2020 às 00h01
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Historiador diz que o governo erra ao permitir que o Itamaraty emita nota em que manifesta apoio aos norte-americanos no “combate ao terrorismo”
O conflito entre os Estados Unidos e o Irã, que chegou a um nível de tensão preocupante na sexta-feira, 3, quando um drone norte-americano atacou o comboio que levava o general Qassem Soleimani, matando o segundo homem mais poderoso do país persa, tende a ter reflexos diretos em setores econômicos do Brasil, inclusive de Goiás. Segundo dados do Ministério da Economia, os iranianos compraram 2,1 bilhões de dólares do Brasil até novembro de 2019. De Goiás, foram 132,8 milhões de dólares no período.
Em relação às exportações goianas, o Irã responde por 2,07% do total, conforme os números do ComexVis, plataforma de visualização do comércio internacional brasileiro. Pode parecer pouco, mais o valor é semelhante ao que Goiás vende aos Estados Unidos (197 milhões de dólares) e Rússia (193 milhões de dólares) e é maior que o comercializado para a Argentina (34 milhões de dólares) e França (54 milhões de dólares), por exemplo. Ainda que não esteja entre os maiores parceiros (o posto principal é ocupado pela China), o Irã é, portanto, um importante parceiro comercial.
Por isso a nota divulgada ainda na sexta-feira pelo Itamaraty, preocupa o historiador Tiago Zancope. “É uma nota que sai pela tangente, mas que deixa marcas”, diz. No texto divulgado, o Itamaraty diz que o governo brasileiro está unido na luta contra o terrorismo, sem citar o caso diretamente. “Ao tomar conhecimento das ações conduzidas pelos EUA nos últimos dias no Iraque, o governo brasileiro manifesta seu apoio à luta contra o flagelo do terrorismo e reitera que essa luta requer a cooperação de toda a comunidade internacional sem que se busque qualquer justificativa ou relativização para o terrorismo”.
Para o historiador, mesmo não sendo explícita, a nota deveria ser mais amena. “Não acho que haverá retaliação da Liga Árabe contra essa nota. Mas, na minha opinião, nesse momento o governo deveria ter escrito a mesma coisa que os demais: `O governo brasileiro pede aos envolvidos para que se esforcem em construir um entendimento a partir dos canais diplomáticos, evitando, assim, uma possível escalada da violência`”, diz Zancope, que é mestre em História pela Universidade Federal de Goiás.
Ao dar esse passo, por meio do posicionamento oficial, segundo o historiador, o governo de Jair Bolsonaro sinaliza uma política internacional que contraria sua vocação histórica. “O Brasil sempre foi pragmático comercialmente e, mesmo a aproximação com os Estados Unidos, a partir da política do Barão do Rio Branco, não foi feita sem deixar de lado aquilo que já havia sido construído em parceria com os europeus”, afirma.
Zancope lembra que os presidentes que antecederam Bolsonaro buscaram ampliar o leque de parceiros comerciais. “Fernando Henrique foi apelidado de Viajando Henrique Cardoso; Lula, de Aerolula, porque buscou cumpriu com a orientação do Celso Amorim de rearticular esse eixo Sul-Sul; enfim, o Bolsonaro quer ter um único melhor amigo sendo que você poderia ter um grupo de amigos. O mais curioso disso é que esse seu único melhor amigo, não é o seu melhor amigo, porque ele, igualmente, tem os seus melhores amigos”, diz.
A tese de Zancope tem um exemplo recente. Há poucos meses, o presidente americano, Donald Trump, ameaçou impor taxas extras a produtos minerais brasileiros. A favor de Bolsonaro, note-se que Trump recuou após uma conversa entre ambos. Em outra frente, porém, o norte-americano tem pressionado o Brasil na disputa pela tecnologia 5 G, em que a chinesa Huawei surge como forte concorrente pelo serviço no País.
Para Zancope, o presidente deveria construir uma política de relações internacionais que olhe os interesses do Brasil, ainda que eventualmente isso colocasse o país em choque com os norte-americanos. “Os EUA podem liderar a região, mas uma margem mínima de manobra, nós precisamos conservar”.
Além da balança comercial, outro aspecto da economia pode ter reflexos imediatos com o conflito. Já no dia do ataque, o dólar voltou a subir e o preço do petróleo em mercados internacionais também. Esse movimento, caso permaneça, certamente vai se refletir em aumento no preço dos combustíveis internamente. “O que pode detonar até mesmo uma nova paralisação dos caminhoneiros”, alerta Zancope.
Sem Guerra Mundial
Ainda que observe que há motivos para preocupação, especialmente pelo poderio exercido por Soleimani, Zancope não vê, ao menos no momento, possibilidade de uma guerra global. Para ele, o mais provável é que o Irã utilize parceiros para dar o contra-ataque. Uma das possibilidades, diz, é que o grupo Hezbollah, aliado dos persas, promova ataques contra Israel, o maior parceiro dos Estados Unidos no Oriente Médio.
“A grande questão é saber onde o Irã vai atacar. Onde vai retaliar. Vai retaliar numa base americana menos guarnecida? Estimular o Hezbollah para fazer esse serviço? Provocar algum aliado xiita?”, questiona. Segundo o historiador, os iranianos são perspicazes no momento de revidar, deixando claro que está por trás do ato, mas sem deixar suas digitais. “O Soleimani era exatamente o pai dessa estratégia. Ele pensou toda a geopolítica iraniana da década de 1990 para cá”, afirma.
Zancope lembra, também, que o ataque ordenado por Trump tem motivos de política interna dos EUA. “Como os democratas poderão falar em impeachment [há um processo em curso] quando o país está na iminência de uma guerra?”, ressalta. “Trump não tem nenhuma vitória a política externa. Esse ataque é uma chave para ficar parecendo que ele conseguiu ser vitorioso numa espécie de conflito, amedrontando o Irã e o colocando com o papel secundário”.
Zancope diz, ainda, que é preciso acompanhar o movimento dos outros gigantes da geopolítica internacional, como China e Rússia. “A China não tem muita presença no Oriente Médio, já a Rússia tem. Os russos têm interesse nessa confusão. A Rússia vai tentar vender armas, armas que estão testando. Além disso, desejam que os americanos saiam da região, para se reaproximar do Mar Cáspio”, acredita.
Para o historiador, o que ocorre agora no Oriente Médio tem origens em décadas. “Nunca terminamos alguns conflitos do século 20. Estamos falando de desdobramentos da revolução iraniana, que foi nos anos 1970”, diz, citando a revolução que levou o aiatolá Ruhollah Khomeini ao poder e deu início ao estado teocrático no país persa.