“A vida na Venezuela está muito difícil. Não há trabalho, comida, saúde ou segurança. Maduro destruiu nosso país, que está se deteriorando gradualmente. Pobres e ricos estão deixando suas casas e famílias em busca de sobrevivência. Um salário não vale nada lá; o bolívar não tem mais valor. É preciso trabalhar cerca de 20 dias para comprar um frango. Deixamos parentes e animais de estimação e partimos sem saber para onde ir, apenas em busca de comida.” 

“Aqui em Goiânia, com R$ 100, podemos comprar muitos frangos. É muito melhor aqui. Não queremos mais viver na Venezuela. Não sabemos como estão nossos parentes, se ainda estão vivos. Muitos idosos foram deixados para trás.” Estes são os relatos de Alexander Paz, de 45 anos, e Nelso Sucre Sucre, de 44 anos, eles são indígenas da etnia Warao, visitados pela reportagem do Jornal Opção.

Alexander Paz e Nelso Sucre fazem parte do grupo de quase 200 venezuelanos que vivem no Estado de Goiás. Os indígenas moram em grupos e enfrentam mais barreiras para conseguir trabalho formal devido à dificuldade de adaptação com o idioma e a cultura. Como habitantes nativos, às mulheres trabalham e os homens cuidam da casa, dos idosos, das crianças e se dedicam à caça e pesca.

No local, cerca de seis famílias indígenas venezuelanas vivem, incluindo Nelso, Alexander, e suas famílias, além de muitas crianças. Todos têm algum parentesco. O espaço é um sobrado típico da periferia, com três cômodos em cada andar e dois banheiros. A estrutura é precária e representa sério risco para a segurança dos moradores. Cada família vive amontoada em um pequeno espaço. Nelso relata que pagam R$ 35 por dia de estadia e conseguem dinheiro nos semáforos, onde também recebem alimentos. Além do aluguel, ainda têm despesas com água e energia.

Alexander revela que a única ajuda que recebem dos governos é o bolsa família de R$ 600. Ele reclama que nem a prefeitura nem o estado se preocupam com eles (leia adiante a versão do Estado). “Ninguém vem aqui para saber se estamos comendo ou não. Nenhuma cesta básica. Tudo que ganhamos vem de doações nos semáforos da cidade. Graças a Deus, as pessoas de Goiânia são muito boas e nos ajudam”, disse ele. Na casa, percebe-se que há necessidade de tudo.

Nelso conta que passou por momentos muito difíceis na mata ao fugir de sua terra natal. “Passamos por muitos perigos. Achávamos que íamos morrer. Foram momentos complicados na selva com idosos e crianças até chegarmos em Pacaraima, em Roraima. Como sou cristão, me apeguei a Deus o tempo todo. Foi ele quem nos ajudou”, acredita.

Nelso Sucre, venezuelano da etnia Warao | Foto: Jornal Opcao

Julio Garcia, de 31 anos, veio para o Brasil com sua mulher e filha de um ano da mesma forma que a maioria dos que chegaram ao país, ou seja, por Pacaraima, cidade que faz fronteira com a Venezuela. Ele explica que deixaram seu país devido à crise econômica e tiveram que atravessar a mata, já que as fronteiras estavam fechadas devido à pandemia em 2021. “A única opção que tivemos foi atravessar a mata. Ou saíamos ou morreríamos de fome. Perdemos nossos empregos e não tínhamos outra alternativa”, conta.

Ao chegarem ao Brasil, Julio e sua família foram para Manaus e depois se estabeleceram em Goiânia, onde já morava um cunhado. Julio destaca que eles se adaptaram rapidamente à capital de Goiás. Na Venezuela, Julio trabalhava como vendedor autônomo, e menciona que, embora ele e sua mulher tenham formação profissional (ela é formada em enfermagem e Julio é técnico em administração), trabalhar como autônomo era mais lucrativo, pois os salários para trabalhadores formais eram sempre muito baixos.

Julio relata os perigos que enfrentaram durante a viagem pela mata, além do risco de perderem o pouco que levavam consigo. “As pessoas nas barreiras montadas pelo governo de Maduro pegavam os dólares de quem tinha algum valor escondido. Havia também os atravessadores, que tomavam uma parte como pagamento, e os militares que também ficavam com uma parte. Muitas pessoas até saíam com algum dinheiro, mas acabavam perdendo tudo durante a jornada”, diz, indignado.

Ele se considera privilegiado por não ter vendido completamente sua casa e carro para vir ao Brasil, o que evitou que passassem por dificuldades extremas. “Quando chegamos em Goiânia, alugamos uma casinha e eu consegui trabalho como carregador no Ceasa. Depois, consegui um emprego em uma metalúrgica como ajudante e agora sou soldador. Graças a Deus, as coisas estão indo bem. Até temos um filho de um ano que nasceu em Goiânia”, conta, emocionado.

Julio expressa sua insatisfação com o sistema socialista, que, segundo ele, promete muitas coisas boas para a população mas não as cumpre na prática. “O pessoal do governo comove as pessoas com discursos sociais e, como há muitas pessoas pobres em meu país, elas acabam acreditando. Os políticos se aproveitam. Confesso que as propostas do socialismo para as pessoas pobres são boas, mas nunca saem do papel. Eles só fazem para si mesmos, e a população continua na miséria”, afirma.

Família Warao vivendo em Goiânia | Foto: Jornal Opção

Segundo Julio, o governo socialista obriga as pessoas a comprarem produtos de baixa qualidade feitos na Venezuela, enquanto eles próprios consomem apenas itens importados, de alto valor, “desfrutando do que há de melhor no mundo”. “Somos um país petroleiro; não deveria ser assim. Na verdade, os políticos socialistas só pensam em si mesmos. “

Para o jovem Rodrigo Angél, a situação caótica em seu país teve início nos governos de Hugo Chávez e piorou ainda mais com o governo atual. Segundo ele, desde que Maduro assumiu o poder, a inflação aumentou, a comida está cada vez mais escassa, o poder de compra diminuiu e a criminalidade aumentou. Rodrigo  afirma que não é mais possível viver no país que ama, perto de quem ama, e que o povo é expulso à força.

Formado em engenharia, Rodrigo possui uma loja no ramo de estética automotiva e venda de acessórios no Parque Amazonas. Ele está satisfeito com o seu negócio, que tem dado certo. Rodrigo deixa um alerta para os brasileiros, afirmando que não se deixem enganar pelo socialismo, pois esse sistema político arruinou seu país.

População

Quando a reportagem do Jornal Opção deixava a casa da família venezuelana, um homem que não quis se identificar, morador do mesmo bairro, expressou sua preocupação com a presença dos estrangeiros em Goiânia. “Esse povo vem para cá só para tirar aquilo que é nosso. Fico vendo todas as autoridades e pessoas da mídia preocupadas com a situação deles, se estão bem ou não, mas com nós brasileiros, que também estamos passando por dificuldades financeiras, ninguém se importa. Ninguém vem aqui em casa para saber de nada. Sou contra esses venezuelanos morando aqui. Por mim, eles deveriam voltar para o país deles”, disse o homem, revoltado.

Por outro lado, Assir Barbosa, um advogado de 64 anos e morador da região norte da capital, comentou que a situação na Venezuela é a pior possível. “Outro dia, assistindo a um jogo que acontecia em Valência, cidade daquele país, pude perceber que as ruas próximas ao estádio não tinham energia elétrica, estava tudo às escuras. Concordo plenamente com a migração dos venezuelanos para o Brasil, pois estão tentando sobreviver, fugindo do regime ditatorial de Nicolás Maduro. “

Estado de Goiás

No Estado de Goiás, tanto os venezuelanos quanto outros imigrantes e refugiados têm seus direitos garantidos pela Constituição Federal, de acordo com Biany Lourenço, gerente de Direitos Humanos do Estado. Ela afirma que todos recebem assistência em relação à saúde, educação, moradia e outras necessidades.

Biany Lourenço explica que existem dois grupos de venezuelanos em Goiás: os indígenas Warao e os não indígenas. Ambos chegaram ao Estado devido à crise econômica na Venezuela e ao risco de guerra civil ou intervenção estrangeira. Ela ressalta que há diferenças entre as duas características, pois os indígenas sempre foram dependentes de ajuda social, tanto no seu país de origem quanto em Goiás, enquanto os outros venezuelanos são mais independentes em relação ao trabalho.

Biany Lourenço – Gerente de Direitos Humanos do Estado | Foto: Acervo Pessoal

A Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Goiás (Seds) oferece atendimento direto aos venezuelanos, incluindo a elaboração de cartilhas explicativas sobre a regularização desses refugiados, distribuídas em todos os municípios goianos. A Secretaria capacita os municípios para receberem esses venezuelanos e oferece cursos para que os servidores do Estado, em parceria com a Polícia Federal e a Defensoria Pública da União, possam instruí-los a conseguir documentos. Os documentos mais importantes para imigrantes e refugiados são os chamados Autorização de Residência por Reunião Familiar”, Solicitação de Refúgio e o Documento Provisório de Registro Nacional Migratório.

Além disso, a Secretaria realiza a qualificação de gestores sociais para lidar com a regulação migratória nos municípios e oferece cursos de língua portuguesa em parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG) para refugiados, migrantes e apátridas. Também há o programa Mães de Goiás, que auxilia as mães venezuelanas.

Há um projeto de lei em tramitação que visa fornecer aluguel social de 50 casas para os venezuelanos em situação de vulnerabilidade social, em parceria com a Agência Goiana de Habitação (Agehab). Outra parceria é com a Secretaria de Estado da Retomada, que ajuda essas pessoas a conseguirem empregos. Mais um projeto é o de inclusão da população venezuelana que já trabalha com artesanato na feira “Goiás Feito à Mão”.

Biany Lourenço afirma que há uma ação conjunta tão importante quanto as outras, em parceria com a Secretaria de Estado da Saúde de Goiás (SES), que submete o venezuelano ao tratamento de doenças tropicais no momento de sua chegada a Goiás. O próximo passo é a cooperação da Organização das Voluntárias de Goiás (OVG). Biany Lourenço reitera que todos os venezuelanos que o Estado tem conhecimento de que estão em Goiás estão regularizados e possuem o protocolo de refúgio.

Atualmente, a Superintendência de Direitos Humanos do Estado de Goiás contabiliza 161 venezuelanos indígenas da etnia Warao e não indígenas que estão sendo acompanhados diretamente pelo Estado nas cidades de Goiânia e Aparecida de Goiânia. No entanto, é admitido que pode haver venezuelanos em outros municípios. Biany Lourenço aproveita a oportunidade para fazer um apelo às demais cidades para que acolham essas pessoas e entrem em contato com a Superintendência o mais rápido possível. “Aqueles que recebem nossa assistência estão em nossos cadastros, sabemos onde encontrá-los. Por isso, é necessário obtermos informações sobre onde os demais estão. “

Biany Lourenço esclarece que os Warao mencionados na reportagem foram encaminhados para a Secretaria da Retomada e receberam empregos no Ceasa. No entanto, eles não conseguiram cumprir os horários estabelecidos. Ela ressalta que essa situação é semelhante para a maioria dos indígenas, pois eles têm dificuldade em se adaptar ao trabalho convencional e preferem pedir nos semáforos.

Projeto de Lei

A vereadora Aava Santiago, do PSDB, assegura que está trabalhando para melhorar a vida desses migrantes por meio de um projeto de lei que cria os Núcleos Permanentes de Língua Portuguesa para Imigrantes e Refugiados. O projeto foi inicialmente vetado pelo prefeito de Goiânia Rogério Cruz, do Republicanos, mas o veto foi derrubado pela Câmara Municipal. Aava afirma que destinou uma emenda impositiva de R$ 200 mil para a criação de núcleos de ensino da língua portuguesa na UFG. O curso está em fase de estruturação e deverá ter início no segundo semestre de agosto. A vereadora destaca que poderiam ser feitos mais projetos, porém, sem o suporte do município, a situação se torna complicada.

Secretaria Municipal de Educação

Warlúcia Pereira Guimarães, coordenadora do Núcleo de Estudo Afros Brasileiros e Indígenas (Neabi) da Secretaria Municipal de Educação (SES), esclarece que foi criado um grupo de trabalho e estudo para crianças migrantes. Trata-se de um documento orientador para recepção e acolhimento dessas pessoas na rede municipal de ensino da capital. Segundo a coordenadora, também há parcerias com instituições de ensino superior, e atualmente a rede comporta mais de 300 estudantes migrantes de vários países. Warlúcia Pereira Guimarães revela que está em processo de estudo um trabalho específico com os indígenas Warao, de acordo com as demandas da defensoria pública.

Mulher Warao pede dinheiro em semáforo de Goiânia | Foto: Jornal Opção

A coordenadora informa que 6% de todas as crianças que frequentam os centros municipais de educação infantil (CMEIs) são imigrantes, não apenas venezuelanas, e todas aquelas que procurarem a rede municipal serão atendidas. No entanto, Warlúcia Pereira Guimarães deixa claro que, nesses casos, às vezes é necessário esperar por vagas no sistema. “Eles são obrigados a participar do processo de seleção, da mesma forma que as outras crianças. Infelizmente, não há vagas para todos”, ressalta.

A SES informa que o e-book com orientações para a recepção e acolhimento às crianças migrantes aborda assuntos como o enfrentamento ao preconceito e xenofobia, matrícula de aluno estrangeiro, envolvimento das famílias e linguagem a ser utilizada em sala de aula. O documento foi apresentado para coordenadores pedagógicos das instituições que possuem estudantes imigrantes. Warlúcia Pereira Guimarães acredita que é necessária uma avaliação mais cuidadosa com esse estudante. “É preciso estabelecer uma relação de confiança, afetividade e acolhimento desses estudantes, desde a educação infantil até a educação de jovens e adultos para evitar a evasão”, complementa a coordenadora.

Secretaria Municipal de Saúde

A Gerência de Atenção às Populações Específicas em Saúde, responsável pela atenção à saúde da população de migrantes, considera o princípio da equidade em saúde no Sistema Único de Saúde (SUS). Ela preconiza que os serviços de saúde devem promover cuidados especiais para grupos mais vulneráveis, como os imigrantes indígenas.

Com o crescente número dessa população em Goiânia, os desafios se tornam cada vez mais complexos devido a diferenças culturais, questões de documentação, idioma e determinantes sociais. A Gerência de Atenção às Populações Específicas em Saúde ressalta que todas as unidades de saúde de Goiânia estão preparadas para prestar atendimento a todas as populações, sejam migrantes ou não. Com o objetivo de facilitar o acesso, destaca-se o Centro de Saúde Norte Ferroviário como referência para atendimento a essa população, uma vez que eles estão concentrados nessa região da cidade.

A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Humano e Social (Sedhs), por meio de nota, informa que possui uma política de assistência social que atende a população de migrantes, inclusive os venezuelanos. A pasta ressalta que essa é uma situação complexa que envolve diversas secretarias do governo para obter resultados efetivos.

Segundo a secretaria, as unidades de Centro de Referência de Assistência Social (Cras) têm recebido orientações sobre o atendimento a esse público. Além disso, foram estabelecidos grupos de trabalho com outras pastas, como Direitos Humanos, Saúde, Educação, entre outras, com o objetivo de discutir ações concretas para o bem-estar dessa população. A pasta comunica que o Cras da Vila Isaura foi designado como referência para o atendimento desses imigrantes. Nessa unidade, eles podem realizar o Cadastro Único para programas sociais do governo federal e ter acesso ao Bolsa Família, por exemplo.

A crise na Venezuela

A Venezuela está passando por uma crise socioeconômica, política, humanitária e migratória que teve início no final do governo de Hugo Chávez e se aprofundou no atual governo de Nicolás Maduro, ambos do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). 

Maduro assumiu a presidência pela primeira vez, de forma provisória, em 2013, logo após a morte de seu mentor político, Hugo Chávez. Seu governo é marcado por polêmicas e seu autoritarismo é questionado pela comunidade internacional.

A queda do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e per capita entre 2015 e 2018 foi mais grave do que a dos Estados Unidos durante a Grande Depressão, ou da Rússia, Cuba e Albânia após a dissolução da União Soviética. A inflação atingiu mais de 300% em 2022 e faz com que a população veja seu poder de compra diminuir diariamente. 

A fome assombra as famílias do país caribenho. Atualmente, mais de 7 milhões de venezuelanos deixaram o país desde 2015 em busca de sobrevivência. Desse total, cerca de 6 milhões se estabeleceram em outros países latino-americanos. Estima-se que mais de 200 mil escolheram o Brasil como seu destino.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o número de venezuelanos refugiados é semelhante ao de ucranianos e já supera o número de sírios que deixaram a Síria devido a conflitos. Maduro é acusado de ser autoritário e responsável por inúmeras violações dos direitos humanos, incluindo prisões e execuções de cidadãos que questionam seu governo.

Maduro foi reeleito em 2019 em uma eleição considerada fraudulenta pela comunidade internacional, recebendo uma forte onda de rejeição. O governo dos Estados Unidos oferece uma recompensa de US$ 15 milhões pela captura do mandatário venezuelano. Os americanos acusam Nicolás Maduro e membros de seu grupo político de narcoterrorismo, lavagem de dinheiro e tráfico de drogas.