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Os Institutos Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação (INCTs) são programas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) para formar redes de pesquisa internacionais, envolvendo pesquisadores e bolsistas em projetos de alto impacto científico. Entre os 202 INCTs em atividade no Brasil, dois estão em Goiás — ambos sediados na Universidade Federal de Goiás (UFG). 

Por possuir os equipamentos e pesquisadores qualificados, o INCT em Ecologia, Evolução e Conservação da Biodiversidade (EECBio), foi responsável durante a pandemia de Covid-19, por sequenciar e monitorar a evolução do genoma do vírus e sua dispersão. “Se tivermos estrutura e pessoal qualificado, podemos fazer qualquer coisa que tenha DNA no meio”, diz Mariana Pires de Campos Telles, pesquisadora do INCT-EECBio. 

Mariana Telles, que coordenou o trabalho com coronavírus durante a pandemia, afirma que, após a pandemia, diversas questões urgentes de genética e genômica em saúde pública permanecem um problema. O país não tem um banco com informações genéticas sobre o HPV, por exemplo. Para mapear e combater o vírus, seu sequenciamento deveria ser regionalizado. Este tipo de aplicação deve ser assumido, nos próximos anos, por órgãos como o Centro de Excelência em Genética e Genômica (CEGGen), na PUC Goiás, que será inaugurado em 15 de outubro, também coordenado por Mariana Telles.

O INCT-EECBio, por sua vez, deve se especializar no tema das soluções ecoevolutivas para as mudanças ambientais globais. Recentemente, o EECBio foi aprovado pelo CNPq para um novo ciclo de mais cinco anos (2025-2030). O instituto deve passar por um rebranding e as pesquisas vão se afunilar em questões na intersecção entre a ecologia e a genética. Algumas dessas pesquisas podem ter aplicações na saúde, como aquela que sequencia o genoma da árvore da cagaita, em busca de genes que produzem compostos com aplicações veterinárias, de saúde e cosméticas. 

Mariana Telles | Foto: Reprodução / PUC-GO

Soluções para mudanças ambientais

José Alexandre Felizola Diniz-Filho, coordenador geral do INCT-EECBio, afirma que boa parte dos esforços do Instituto é dedicada a criar, validar e adaptar metodologias para subsidiar outros estudos. Um exemplo é a criação de uma metodologia que pode ser aplicada à ecologia no contexto das mudanças climáticas do Cerrado: “A partir de uma lista elaborada juntamente com parceiros, como a Embrapa, podemos mapear uma espécie nativa com interesse comercial, como o baru”.

“Quando o clima muda, a distribuição do baru e outras espécies muda”, exemplifica José Alexandre Diniz. “Enquanto o norte do estado se torna mais quente, o clima de Cerrado se desloca para o sudeste. Fazemos o monitoramento da distribuição vegetal há cerca de 20 anos, então temos muitos dados para subsidiar modelos, mas há alguns problemas. Há possibilidade de o baru se adaptar a um clima mais quente? Mesmo se conseguir migrar para o sudeste, a qualidade de sua produção continuará igual? Essas questões o modelo não responde.”

Com novos estudos conduzidos pelo INCT, novas possibilidades se abrem. O sequenciamento genético do baru permite identificar genes que proporcionam tolerância à seca ao vegetal, e incorporar essa informação aos modelos. Os modelos atuais presumem que não há evolução, mas novas pressões seletivas podem fazer com que adaptações surjam nas espécies. 

O sequenciamento do genoma e a aplicação dessas informações à ecologia podem prevenir perdas econômicas para produtores e consumidores. O café, por exemplo, teve alta de 77% em um ano, segundo o IBGE, o que levou 39% dos consumidores a mudar para marcas mais baratas e 24% a diminuir o consumo. A razão foram as quebras de safra devido a fatores climáticos — geadas e mudanças no regime de chuvas. 

“Ninguém estava preocupado com café, porque se pensava: ‘já desenvolvemos uma linhagem capaz de sobreviver ao clima mais quente, está tudo bem’”, diz José Alexandre Diniz. “O problema é que o fruto dessa linhagem, em termos econômicos, não têm os mesmos resultados. Não rende da mesma forma”.

José Alexandre Diniz | Foto: Guilherme Alves / Jornal Opção

DNA Ambiental

Na linha de pesquisa do INCT-EECBio sobre DNA ambiental, pesquisadores desenvolvem ferramentas para monitorar mais rapidamente a biodiversidade em larga escala, com base na análise de amostras do ar, solo ou água. 

Mariana Pires de Campos Telles, pesquisadora do INCT-EECBio, exemplifica: “Há muitos microrganismos na água que servem como bioindicadores, apontando a qualidade do meio e a presença de espécies ali.” Amostras de DNA da água podem até mesmo indicar a presença de espécies invasoras de peixes. “É um método mais rápido e barato do que verificar a presença desses invasores pela coleta, com pesca.”

Os pesquisadores também podem aplicar essas metodologias à agricultura, estudando a saúde do ecossistema por meio da associação entre o DNA ambiental e o solo. “Na relação solo-planta, temos como indicadores certos grupos de bactérias e fungos que revelam o nível de degradação do solo e sua capacidade de produção”. 

A maior parte do trabalho está em desenvolver e adaptar essas novas metodologias de pesquisa. “Quase tudo é desenvolvido no norte global, em países onde há muito menos biodiversidade. Quando vamos aplicar aqui, não funciona, precisamos calibrar os protocolos. 

Desmatamento e genética

O Rio Araguaia é um corredor ecológico que liga o Pantanal ao Cerrado, e o Cerrado à Floresta Amazônica ao longo de Goiás, Tocantins e Pará. A ligação entre áreas de habitat fragmentadas (chamada conectividade) permite o movimento de espécies, a dispersão de sementes e o fluxo genético. Sua importância reside na manutenção da biodiversidade, aumento da variabilidade genética, conservação de espécies ameaçadas, adaptação a mudanças climáticas e restauração de ecossistemas.

Esses atributos do Araguaia estão ameaçados, porque o uso da terra nas margens do rio se transformou ao longo dos anos — de vegetação nativa, à agricultura, passando por pastagens degradadas e zonas urbanas. Há  movimentos para proteger os corredores ecológicos em grande escala, como o Projeto de Lei (PL) 909/24  proposto pelo deputado federal Ismael Alexandrino (PSD) para proteger os corredores do rio Araguaia e Tocantins. Se aprovado, o PL criaria o Corredor Ecológico Onça-Pintada, território contínuo de 20 km de cada margem do rio, envolvendo Áreas de Preservação Permanente, Reservas Legais e áreas produtivas, desde suas nascentes até sua foz. 

Mapa mostra o corredor da onça-pintada | Fonte: Agência Câmara de Notícias

Para o presidente do Instituto da Onça Pintada (IOP), Leandro Silveira, o projeto também versa sobre reconhecer esse corredor ecológico como a área mais importante do Brasil. “Vai ser o maior corredor de biodiversidade do mundo. Atualmente, menos de 10% das onças pintadas estão em áreas protegidas pelo governo”, alerta. O especialista também explica que os animais são excelentes bioindicadores, porque “só vivem em ambiente que está com qualidade ambiental alta. Então o local onde uma onça vive e se reproduz precisa ter abrigo e muita comida, tanto para a onça quanto para suas presas”. 

O texto, entretanto, está parado desde março na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS) da Câmara dos Deputados. José Alexandre Diniz afirma que não seria necessário criar unidades de proteção, apenas organizar o território de acordo com o Código Florestal existente. Alocar as áreas de reserva ao longo do rio Araguaia para manter a conectividade. 

A conectividade está ligada à capacidade dos animais conseguirem migrar ao longo das manchas de Cerrado na paisagem. “O Cerrado está muito fragmentado, mas sabemos que ainda há áreas de expansão agrícola, com potencial de ameaçar ainda mais os corredores ecológicos”, diz Mariana Telles. “Queremos estudar para avaliar o estado das coisas, estimar como se fizéssemos uma fotografia do momento atual”.

Para compreender a importância dos corredores ecológicos, Mariana Telles fala sobre os trabalhos do INCT-EECBio no tema da conectividade no Araguaia: “Para entender a genética de populações, vamos coletar as fezes de diversos indivíduos de onça-pintada. Coletar uma onça é difícil [risos], mas é possível estudar toda uma população por meio da análise das fezes dos indivíduos, basta validar metodologias criadas em outros lugares.”

“No INCT, a lógica é metodológica”, diz Mariana Telles. “Vamos pegar o que o pessoal faz fora e  adaptar, fazer aqui. Usamos cachorros treinados para farejar as fezes das onças, lobos guará e outros mamíferos. Com a análise genética das amostras dessas espécies guarda-chuva, podemos compreender várias populações abaixo na cadeia alimentar. O DNA das fezes de onças revela um censo populacional de diversas espécies abaixo na cadeia alimentar.” Além do número de indivíduos, os marcadores genéticos são marcadores indiretos para questões hormonais, entre outros. 

O Brasil não tem soberania científica sobre sua biodiversidade

Além de criar metodologias para pesquisas e subsidiar o desenvolvimento possíveis tecnologias com aplicações práticas, os pesquisadores do INCT-EECBio relatam preocupação com a lacuna de conhecimento sobre o genoma das espécies do Cerrado. Por questões históricas, o bioma é menos conhecido do que seus pares. Suprir essa falta de informações e manter os dados no Brasil, entretanto, não é fácil.

Como um dos objetivos do programa do MCTI é formar redes de pesquisa internacionais, a colaboração para mapear o genoma da biodiversidade tem de ser cuidadosamente desenhada. Mariana Telles diz: “Vamos capacitar nossos pesquisadores para fazer sequenciamento do genoma com referência em todos os padrões europeus. Temos colaboradores em Madrid, Berlim — eles estão bem avançados em termos de boas práticas, de protocolos. Queremos deixar de enviar os dados de nossas coletas para que o trabalho seja feito e publicado no exterior”. 

Essa não é a forma tradicional com que cientistas brasileiros se relacionam com estrangeiros. Há séculos, também na ciência os países desenvolvidos têm relação predatória com países em desenvolvimento. Os exemplos clássicos são os fósseis, em especial o caso do Ubirajara jubatus, primeiro dinossauro não-aviário conhecido, cujo fóssil foi encontrado no Ceará e levado ilegalmente para a Alemanha em 1995, onde foi estudado. “O comum é a gente dar nossa biodiversidade para eles sequenciarem e publicarem”, diz Mariana Telles. “Agora, queremos aprender para trazer essas práticas ao Brasil, para fazer aqui, nós mesmos.”

Os pesquisadores acreditam que o tema deve ser central na 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 30), em Belém, no próximo mês. Por possuir uma legislação específica para regulamentar o acesso ao patrimônio genético e genômico — o marco legal da biodiversidade no Brasil (Lei nº 13.123/2015) — deve vir à tona o debate sobre os bancos de dados para armazenar o sequenciamento genético da biodiversidade, ou Digital Sequence Information (DSI). 

Os dados dos sequenciamentos genéticos ficam armazenados em datacenters ao redor do mundo. Um dos principais datacenters que permite o acesso público às suas informações para fins de pesquisa é o National Center for Biotechnology Information, do governo dos Estados Unidos (no National Institute of Health). “Se algum dia Donald Trump decidir que acabou, perdemos o acesso a tudo. O Brasil não tem soberania científica sobre as informações genéticas e genômicas de sua própria biodiversidade.”

Em um cenário de redução da colaboração internacional, com aumento do isolacionismo global, os pesquisadores se preocupam com as redes de parcerias científicas no futuro. O contexto é de disputas globais com tarifaços, competição por recursos naturais (como minérios de terras raras), embargos a países concorrentes na produção de tecnologia. Há conversas sobre a criação de plataformas locais, como o Sistema de Informação sobre a Biodiversidade Brasileira (SiBBr) — mas esta ainda não está totalmente preparada para dados genéticos e genômicos, diz Mariana Telles.