A ideia tem ganhado força entre os políticos, mas uma alteração dessa proporção no calendário eleitoral tem um caminho longo

Antes tida como impossível, ideia de adiar eleições agora toma os debates / Foto: Reprodução

Com uma lamentável marca de quase 55 mil mortos no mundo inteiro até agora, a Covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus, tem feito com que o ano de 2020 amargue no luto e na aflição. As autoridades públicas têm adotado medidas consideradas essenciais no combate à proliferação do vírus, o que inclui, sobretudo, o isolamento social. Mas, enquanto decretos são editados, estabelecimentos são esvaziados e leitos de hospitais são ocupados, uma dúvida sonda a população e os governantes: as eleições, evento de grande movimento e fluxo de pessoas que está previsto para este ano, vão acontecer? Apesar de longínqua, a possibilidade de adiamento do pleito vem ganhando força e já é pauta de parlamentares e entidades.

Conforme a legislação eleitoral, as eleições municipais no Brasil estão marcadas para o dia 4 de outubro deste ano. É nesse dia que os cidadãos deverão ir às urnas escolher prefeitos, vice-prefeitos e vereadores. Porém, o pleito não se resume a apenas um dia e fim, “acabou-se”. O processo de escolha dos mandatários de cada município brasileiro é longo e movimentado, e começa antes, muito antes da chegada do mês de votação.

Nos meses de julho até setembro, o embate político se intensifica, assim como o fluxo de pessoas nas ruas, diretórios, entidades, órgãos políticos e palanques. Do dia 20 de julho ao dia 5 de agosto, segundo o calendário eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), são realizadas as convenções partidárias, eventos que reúnem centenas, às vezes milhares de pessoas. E a partir do dia 16 de agosto, o clima se acirra de vez: tem início a campanha eleitoral, e os candidatos saem às ruas, fazem passeatas, carreatas, comícios, e toda sorte de evento que envolva aquilo que o novo coronavírus mais gosta: aglomerações.

Uma vez que a pandemia do coronavírus, acontecimento que, definitivamente, está marcando (negativamente) a geração atual, a possibilidade de adiamento das eleições tem levantado debates e discussões. O que antes era absolutamente impossível e improvável, hoje pode ser, talvez, uma saída inevitável para evitar um colapso nacional.

No contexto da crise provocada pelo novo coronavírus, alterações no calendário eleitoral começaram a ser solicitadas. Em março, por exemplo, o deputado federal Glaustin da Fokus, do PSC, chegou a encaminhar um ofício ao TSE, que tem a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber como presidente, solicitando a revisão do calendário eleitoral em razão da pandemia. O parlamentar pediu a prorrogação da janela partidária, que é período em que vereadores podem mudar de partido antes das eleições de outubro, e que se encerrou no último dia 3 de abril.

Para Fokus, a propagação do vírus que está levando milhares ao óbito prejudicou o processo por impedir articulações políticas nos municípios. À época, Fokus argumentou que os municípios são onde as pessoas participam ativamente da democracia, porque são os espaços em que a vida acontece de fato, “em que é possível acompanhar e fiscalizar a realização das promessas de campanha, pela proximidade cotidiana e até mesmo física com os políticos”. Entretanto, a solicitação do deputado foi negada em votação unânime no plenário da corte, sob o argumento de que o prazo em questão é regido por lei federal, o que impossibilita qualquer interferência ou alteração por parte do TSE.

Porém, o agravamento do cenário no Brasil parece estar mudando o rumo das coisas. Até a noite de sábado, 4, o país tinha, segundo o Ministério da Saúde, mais de 10 mil casos confirmados de coronavírus e mais de 430 óbitos em razão da Covid-19. Para se ter uma noção em números da gravidade do momento, houve um aumento de 72 mortes pelo vírus em um prazo de 24 horas, conforme o Ministério.

O crescimento da quantidade de pessoas infectadas e de óbitos tem feito com que as autoridades reforcem ainda mais as medidas de quarentena. Em Goiás, o governador Ronaldo Caiado tem se manifestado diariamente pedindo o cumprimento por parte da população da medida de isolamento social. Todavia, a aproximação da intensificação da corrida eleitoral é um fator de preocupação não só para o Poder Executivo, mas também para todos os outros.

No Senado, debate sobre o adiamento das eleições de 2020 tem ganhado força

Quanto mais o coronavírus progride no país, mais preocupante se torna o cenário que se formará com as eleições. Seguindo nesse pensamento, as propostas legislativas de adiamento das eleições municipais de 2020 para 2022 têm tomado conta das discussões dos senadores federais. Os mais radicais falam, inclusive, de “unificação dos pleitos”, ideia defendida, por exemplo, pelo senador Major Olimpio, do PSL.

Para Olimpio, a junção das eleições federais, estaduais e municipais evitaria, além da utilização dos recursos do fundo eleitoral, os gastos com as campanhas eleitorais neste ano, trazendo, segundo ele, uma economia para os cofres públicos de até R$ 1,5 bilhão. O senador também recorreu ao TSE, mas foi além da solicitação do deputado Glaustin da Fokus. Olimpio pediu o adiamento das eleições, e pretende, agora, apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nesse mesmo sentido.

O também senador da República Elmano Ferrer, do Podemos, concorda com a proposta do Major Olimpio. O parlamentar afirmou que está empenhado para viabilizar outra PEC, de sua autoria, também com o intuito de trazer para a realidade as eleições gerais de 2022 que, por enquanto, permanecem apenas como uma sugestão.

A ideia de adiar o pleito recebeu endosso, inclusive, do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Em uma conferência realizada no mês passado com prefeitos, Mandetta manifestou suas preocupações. Ele teme que que questões políticas possam influenciar no combate ao coronavírus, e chegou a sugeriu que fosse deliberada a possibilidade de adiar as eleições municipais.

Todavia, o debate sobre o adiamento está limitado, por enquanto, a isso: debate, e não há nada de concreto ou confirmado a respeito. Receando que a discussão acerca da possibilidade da alteração no calendário eleitoral pudesse circular entre o grande público já como uma verdade, o TSE chegou a publicar em suas redes sociais um informativo dando conta da atual situação, com os seguintes dizeres: “Atenção! Até o momento, não há adiamento das #Eleições2020. Mudanças no calendário ou em regras eleitorais dependem de alteração legislativa ou do texto constitucional. A Justiça Eleitoral deve cumprir os prazos previstos em lei.”

Se proliferação do vírus continuar crescendo, não haverá condições de fazer eleição, diz deputado estadual de Goiás

Em Goiás, o debate acerca das chances de as eleições serem adiadas ainda não tem forma, mas já corre em forma de especulação. Na Assembleia Legislativa de Goiás, que tem cumprido suas atividades parlamentares via on-line desde o dia 16 de março, em razão da quarentena no Estado, a pauta levanta dúvidas e temores.

Para alguns deputados estaduais, a adesão à proposta de adiamento do pleito de 2020 será inevitável caso a curva de transmissão do novo coronavírus não apresente um declínio considerável. É o caso do deputado Álvaro Guimarães, do DEM. Segundo ele, não há como saber quando a proliferação do vírus será aplacada, mas a tendência de aumento de infectados, notada até agora, pode – e deve – sim impactar diretamente no calendário eleitoral.

Adiamento de eleições pode ser inevitável, diz deputado / Foto: Divulgação

O parlamentar afirma que, se não houver uma melhora de conjuntura mais adiante, pode ser inviável a realização das eleições municipais deste ano. “A gente não sabe se vai acabar amanhã, ou depois. Não tem como saber quando essa coisa horrível vai acabar [se referindo à pandemia do novo coronavírus]. Mas não está regredindo, só está crescendo. Acabei de ver aqui no jornal que já são mais de um milhão de infectados! Se isso continuar dessa maneira, não teremos condição de fazer eleição. Reunir as pessoas ao mesmo tempo, no mesmo lugar, para votar, fazer reunião, comício… não tem jeito!”, pontua.

Porém, Guimarães afirma que ainda é cedo para concluir algo, e conta que tem confiança no discernimento da população para acatar as medidas de isolamento. “Temos ainda seis meses pela frente. A gente espera que, até lá, as coisas melhorem. Ainda tem muita água para passar debaixo da ponte, mas vai depender do comportamento das pessoas, se elas vão se comportar conforme as recomendações da Organização Mundial da Saúde, e eu acredito que isso aconteça”, diz.

O parlamentar também comentou as ações impostas no Estado pelo governador Ronaldo Caiado contra o avanço do coronavírus e disse que o chefe do Executivo estadual vive um dilema. “É como se diz lá na roça onde eu nasci: ‘se correr o bicho pega, se ficar o bicho come’! A situação do governador é muito difícil, porque, cientificamente, como médico, ele tem feito o que deve ser feito. Mas, como governador, ele sabe que o Estado precisa de arrecadação, precisa se movimentar”.

Adiamento de eleições é possibilidade remota, mas agravamento da crise pode contribuir para concretizá-la, explica advogado

Difícil, mas não impossível. Assim é definida a chance de adiamento das eleições municipais de 2020 pelo advogado especialista em Direito Eleitoral e presidente da Comissão de Direito Político e Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Goiás (OAB-GO), Wandir Allan. Segundo ele, existem caminhos legais para se viabilizar a alteração do calendário eleitoral, mas tais caminhos não são nada maleáveis.

Wandir explica que não é possível para a Justiça Eleitoral alterar o calendário sem primeiro haver mudança na legislação. De acordo com ele, isso deve ser feito por meio de uma PEC que, “em primeiro lugar, modifique o artigo 16 da Constituição Federal, afastando o princípio da anualidade”, que diz que toda alteração do processo eleitoral só pode ser feito com um ano antes das eleições. A chance existe, mas, conforme o advogado, não é fácil.

Para advogado, caminho para se adiar eleições é tortuoso / Foto: Arquivo pessoal

“A partir dessa alteração, [é possível] adiar as eleições para uma nova data. É possível que isso aconteça? É possível, mas tem que haver uma convergência política para que viabilize a aprovação, uma vez que uma emenda constitucional não é algo fácil de se aprovar. Hoje, no cenário em que a gente está, é remota a possibilidade, mas ela está no horizonte”, esclarece.

Porém, de acordo com Wandir, em caso de extensão do período de quarentena nos Estados, o que abarcaria a manutenção das medidas de isolamento social, a realização das eleições ficaria, de uma forma ou de outra, inviável. Caso contrário, a hipótese deve ser concretizada somente em última instância. “Toda ideia de adiamento [das eleições] tem que levar em conta a tentativa de fazer essa eleição dentro desse ano”, afirma ele.

O advogado também falou sobre a proposta de alguns parlamentares de realização de eleições unificadas, e teceu duras críticas à sugestão. Para ele, essa é uma ideia que não se pode admitir, uma vez que representaria um retrocesso no que tange ao processo democrático brasileiro.

“É preciso ficar atento para afastar esse discurso casuístico, de fazer coincidir as eleições municipais com as federais. Isso é um prejuízo muito grande para a democracia, e atrapalha por completo o processo eleitoral”, argumenta.

Segundo Wandir, nenhuma outra democracia moderna possui um sistema de coincidência de todas as eleições, e a adesão do Brasil a esse modelo seria prejudicial e atípica. O advogado finaliza dizendo que essa mesma proposta já havia sido feita anteriormente, mas sido afastada pelo Congresso, porém “agora estão aí, tentando fazer novamente”, conclui ele.