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Estado quer reaver uma área pública equivalente a 50 campos de futebol que está sob o comando do Clube Jaó. Justiça concedeu liminar para reintegração de posse, mas administração se nega a devolver e acusa governo de perseguição política 

Área do Estado que é usada pelo Clube Jaó há quase 40 anos
Área do Estado que é usada pelo Clube Jaó há quase 40 anos

Alexandre Parrode

Uma batalha silenciosa tem sido travada em Goiânia no último ano. Desde abril de 2014, o Estado de Goiás tenta recuperar quase 400 mil m² de área pública – o equivalente a quase 50 campos de futebol — que estão sob o comando do Clube Jaó, sem autorização. Localizados no setor homônimo, os terrenos incluem, inclusive, o famoso lago do complexo e estão em uma Área de Preservação Permanente (APP).

Embora sejam do Estado, o clube administra as áreas há quase 40 anos. Fundado por Ubirajara Berocan Leite, em 1962, é um dos mais tradicionais espaços da capital goiana e conta, atualmente, com mais de 30 mil sócios. De acordo com o administrador e filho do fundador, Ubirajara Berocan Leite Filho, o imbróglio começou no fim dos anos 1970 quando, após a crescente poluição do Rio Meia Ponte — que margeava o espaço —, a empresa decidiu fazer uma barragem de terra para criar e preservar um lago — hoje, o conhecido Lago do Jaó (ou Lago dos Marrecos).

Àquela época, Berocan conta que houve uma ação movida pela Procuradoria Geral do Estado de Goiás (PGE-GO) contra a barragem. No entanto, conta Berocan, o então governador Irapuã Costa Júnior impediu que o órgão prosseguisse com a ação, por “entender a importância ambiental da atitude”. “Há muitos anos o Clube Jaó se preocupa em cui­dar do meio ambiente e preservar os recursos naturais. Imagina co­mo não estaria essa região caso não tivéssemos feito a barreira. É só olhar a diferença na qualidade da água do lago e a do rio”, afirmou ele.
Em 1980, na busca pela regulamentação da área que margeia o clube, conseguiram que o governador Ary Valadão sancionasse uma lei instituindo um comodato, que autorizou o clube a manter uma área de 35 mil m² — no local da represa da Usina Hidrelétrica Jaó (Lago dos Macacos).

Em entrevista ao Jornal Opção, Berocan insiste que há um processo contínuo de preservação da região, que tem garantido a sobrevivência da nascente do Córrego Jaó — nas proximidades do Aeroporto Santa Genoveva, dentro da área da Infraero. “Havia muita erosão porque o aeroporto jogava todo o esgoto pluvial na cabeceira da nascente. Meu pai, percebendo a gravidade do assunto, decidiu recuperá-la. Fizemos, ainda em 1980, um cinturão de bambu e duas lagoas de contenção para proteger a nascente”, lembra ele e completa: “Paga­mos aluguel durante 20 anos para isso”.

O clube chegou a adquirir toda a margem esquerda do córrego — na Alameda Paraná — para que, de acordo com ele, cuidasse do curso da água — que segue justamente até o Lago do Jaó. A faixa que pertence ao clube faz divisa com a grande área do Estado, que estava, segundo o administrador, sob o poder do governo federal. “Quan­do o terreno estava cedido ao Ministério da Agricultura, houve muitas invasões e lutamos para não permitir que isso ocorresse novamente”, relembra.

A enorme área ficou, de acordo com Berocan, por muitos anos cedida à pasta — o que dificultava a negociação do uso da terra nas proximidades do Clube Jaó. Foi aí que, por volta de 1989, o pai de Berocan recorreu ao então ministro da Agricultura, Iris Rezende (PMDB), para que houvesse a devolução dos terrenos ao governo de Goiás. Iris teria deixado uma carta de instrução ao sucessor Lázaro Ferreira Barboza, que atendeu à reivindicação.

Iris Rezende voltou ao Governo de Goiás em 1991, quando teria organizado toda a parte jurídica para ceder o uso do terreno, já do Es­ta­do, ao Clube Jaó — como negociado previamente. Em 1994, o então governador sancionou, finalmente, a lei 12.316, concedendo duas glebas, que somadas totalizavam 102 mil m² durante 20 anos. De acordo com o texto, “os terrenos destinavam-se à implantação pela entidade beneficiária de projetos de preservação e proteção ambiental dos mananciais ali existentes”.

O grande problema, reconhece Berocan Filho, reside no fato do clube ter cercado uma área maior do que a permitida. O Clube Jaó tinha autorização para usufruir de 137 mil m² se consideradas as duas leis. No entanto, atualmente, são mais de 390 mil m² sob o comando da empresa – sendo 255 mil m² ilegais. No entanto, ele justifica que tal apropriação foi feita só para “preservar uma mata que estava sendo desmatada e poderia sofrer invasões”. A área citada por Berocan faz divisa com a nova sede do Tribunal de Contas do Estado de Goiás (TCE-GO) e foi aí que, segundo ele, a confusão teve início.

Reintegração de posse

Quando o TCE-GO iniciou as obras de sua nova sede, localizada na Av. Ubirajara Berocan Leite, um estudo foi desenvolvido pelo departamento de engenharia do órgão, que constatou diversas irregularidades na região — em especial, na de uso do Clu­be Jaó. De acordo com o administrador, o órgão de contas teria acionado a PGE-GO e dado início a uma “perseguição política” contra ele e o clube. Se­gundo Berocan, “sem motivo aparente”, o Estado decidiu fazer a retomada das terras, mesmo reconhecendo que a lei que concedeu os 20 anos de uso expirou no ano passado e que o Estado solicitou a área cedida em comodato.

Berocan considera “absurdas” as constatações do TCE — que, segundo ele, relatam até crimes ambientais — e garante que o clube tem um processo junto ao Estado desde 2006 para que haja regulamentação da área. “Enten­demos que o que cercamos não foi cedido, mas fechamos para proteger a mata”, insiste. Quando o atual governador Marconi Perillo (PSDB) ocupava uma cadeira no Senado Federal, Berocan afirma que chegou a conversar com ele sobre a área e que o tucano teria sinalizado positivamente para o clube.

Berocan apresentou ao Jornal Opção os mapas e a área do Estado | Fotos: Fernando Leite / Jornal Opção
Berocan apresentou ao Jornal Opção os mapas e a área do Estado | Fotos: Fernando Leite / Jornal Opção

O diretor conta, ainda, que tentou entrar em acordo com o presidente do TCE à época, conselheiro Edson Ferrari, e chegou a propor um projeto que devolveria parte da área ao Estado, colocando-a sob responsabilidade do tribunal. Em contrapartida, áreas seriam cedidas ao clube, como a faixa por onde flui o córrego e onde estão os lagos.

“É uma injustiça o que querem fazer. O clube é uma entidade de utilidade pública, as áreas são públicas, a gente só controla. Não há cobrança e nem retorno financeiro para o clube”, clama Berocan Filho. Só que o próprio diretor reconhece que no Lago do Jaó — que está em área pública —, por exemplo, recebe um aluguel mensal de 3 mil reais de uma empresa de Stand-Up Paddle (SUP), que oferece a prática do esporte aquático. Além disso, às margens do lago há um restaurante e um pesque-pague, mas que funciona, segundo ele, em represas feitas pelo clube em suas dependências.

Outro lado

Procurador Rodrigo Ganem | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção
Procurador Rodrigo Ganem | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

Os procuradores do Estado Rodrigo Ganem e Cleuler Barbosa das Neves receberam o Jornal Op­ção na Procuradoria de Defesa do Pa­trimônio Público e do Meio Am­biente para explicar a situação. De acordo com eles, há uma decisão liminar em favor do Estado para que haja a reintegração de posse, pois o clube se nega a devolver as áreas de maneira voluntária. “Te­mos tentado, desde o ano passado, fazer isso de maneira amigável para evitar o desgaste”, conta Rodrigo.

Eles corroboram a história de Berocan Filho, reconhecendo que havia interesse do Estado em ceder as áreas ao Clube Jaó, sob a condição de que houvesse a preservação. No entanto, o cerne da questão é que a lei que autorizava tal uso venceu em 2014 e o poder público quer reaver tais terrenos. “Inde­pendentemente de qualquer coisa, ele [Berocan] sabia que o prazo se expiraria, portanto não era nem necessário termos que notificá-lo para fazer a devolução. O que tenta agora é ‘dar uma de Joãozinho sem braço’ para ver se consegue se manter ali”, critica Rodrigo.

Segundo Cleuler, antes de entrar com o processo judicial, o Estado tentou por diversas vezes resolver o impasse amigavelmente. Fez a notificação para que o Clube Jaó fizesse a devolução amigável. O clube se recusou e apresentou uma contranotificação (defesa administrativa). “Só que não trouxe nenhum argumento válido. O Clube Jaó, por meio de seu representante, se vale mais de alegações de cunho político para poder se justificar na área, querendo demonstrar influência de que supostamente gozaria nos meios sociais goianos, do que de alegações jurídicas para legitimarem sua permanência no local. O réu tem uma visão quixotesca de que estaria sendo alvo de um inimigo: a Corte de Contas”, versa a Procuradoria.

Questionado se haveria alguma “injustiça” para com o clube, Rodrigo Ganem explica que ocupação de área pública tem que preencher dois requisitos básicos: “Primeiro, que haja interesse público. Ou seja, que essa ocupação traga algum benefício para a coletividade”. No caso do Clube Jaó, complementa, o benefício foi que nas décadas de 1980 e 1990 como havia um crescimento demográfico muito grande em Goiânia, o Estado estava preocupado em preservar essa área e receoso que a expansão acabasse com a área ambiental. “Hoje não há mais tal preocupação”, defende.

O segundo requisito seria a formalização do ato. No caso do clube, teria sido a lei, que expirou no ano passado. “Repito: o que ele está tentando fazer é protelar porque sabe bem que não tem direito de permanecer ali. Está explorando economicamente a área, como, inclusive, confessou na matéria publicada na versão on-line do Jornal Opção”, sustentou Cleuler, em alusão à fala de Berocan na qual conta que recebe aluguel de uma empresa de esporte aquático, além de comandar o restaurante e o pesque-pague no Lago do Jaó.

Procurador Cleuler Neves | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção
Procurador Cleuler Neves | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

“Ele está se valendo do jus sperniandi, a gente fala sempre isso aqui. É o direito de espernear para ficar dentro de um bem público já que a pessoa sabe que juridicamente não tem como ganhar”, complementa Rodrigo. Na defesa, o Clube Jaó alega que tem direito a receber benfeitorias, pois investiu na área durante todos esses anos, mas os procuradores garantem que isso não é verdade, pois a cessão foi feita por meio de um comodato — que é uma transferência gratuita. “É importante lembrar que o Clube Jaó também se aproveitou da mesma sem pagar aluguel. Por isso o lapso de tempo é grande. Para que ele possa construir, explorar e usufruir e, assim, compensar tais investimentos que fez”, justifica Cleuler, reiterando: “Ele distorce os fatos para poder justificar a posse. Ele não tem argumento jurídico então tenta trazer a discussão para o lado político”.

De fato, Berocan insiste em dizer que sofre perseguição. Contudo, a PGE afirma que está dando para ele o mesmo tratamento que todos recebem. “Ele faz sugestões de que o procurador Alexandre Tocantins é compadre do ex-presidente do TCE e que a motivação da recuperação seria meramente um capricho de Edson Ferrari. Isso é um absurdo”, critica Cleuler.

Possíveis crimes ambientais na mira de procuradores

Os procuradores questionam também a explicação de que o Clube Jaó teria fechado a área além do permitido pelas leis apenas para “proteger de invasões e preservar a mata”. Para eles, quem gere área pública é o poder público. “Particular não pode sair tomando a frente de gestão de área pública. Pode, sim, usar área pública mas com autorização e res­peitando os limites dela. Área pública não é ‘de ninguém’, é ‘de todos’”, explica Cleuler. Se­gundo ele, se o Estado resolver ce­der alguma área para o interesse particular, tem que ser feito por meio de licitação para que to­dos tenham o direito de concorrer.

Além disso, a Procuradoria põe em xeque a bandeira levantada pelo Clube Jaó de que há preocupação com o meio am­biente. O processo que corre na 1ª Vara da Fazenda Pública Estadual conta com um dossiê com diversos autos de infração na Agência Municipal do Meio Ambiente (AMMA). “Desma­tamento, supressão de mata ciliar, construções sem licenciamento”, elenca Rodrigo. Em 2012, por exemplo, o clube foi condenado a pagar uma multa de 15 mil reais por infração ao artigo 61 do Decreto Federal nº 6.514/2008, com os artigos 70 e 75 da Lei Federal nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais) e do 1º artigo do Decreto Municipal nº 2.149, de 12 de agosto de 2008.

Imagens retiradas do processo, que mostram a suposta degradação do meio ambiente por parte do Clube Jaó
Imagens retiradas do processo, que mostram a suposta degradação do meio ambiente por parte do Clube Jaó

“Fizeram um represamento do Córrego Jaó sem autorização, passarela de alvenaria sobre o córrego dentro de uma APP, barragem sem autorização. Ater­ramen­to para construir a estrutura do Colégio Yara, de três pavimentos, que não respeitou o limite de distância. Afloramento do lençol freático. Além de desmatamento da área”, complementou.
Berocan nega que o corte das árvores tenha sido feito pelo clube e acusa a Celg de ter realizado a poda de maneira ilegal. Sobre as obras dentro da APP, o diretor insiste que tudo foi feito para proteger o curso do córrego que, segundo ele, estaria sofrendo com as enxurradas da chuva, que causam assoreamento. “Mas a questão é: tinha licença para fazer isso? Tem que ter autorização. Não dá para fazer intervenção em área de Preservação Per­ma­nente de qualquer jeito”, questiona o procurador Cleuler.

O Ministério Público já pediu administrativamente para ser notificado sobre o caso e os procuradores esperam que o MPGO entre com uma ação contra o Clube Jaó pelos danos ambientais causados à área.

Em sua defesa, o Clube Jaó destaca, ainda, que tem feito relevantes trabalhos para a comunidade e tem projetos de conscientização e promoção do meio ambiente. “O Bioparque é um celeiro para o desenvolvimento de pesquisas científicas e/ou acadêmicas”, versa. No entanto, os procuradores questionam tais atividades. “Na vistoria que foi feita, constatou-se que as trilhas estão todas destruídas, impossível de acesso ao público. O educandário ambiental está fechado, ou seja, ele não está atendendo a nenhum interesse público. Pode até ter feito algum tempo atrás, mas hoje não há manutenção”, aponta Rodrigo.

Uma das preocupações levantadas pelo administrador do Clube Jaó é justamente o destino que as áreas vão ter depois que haja a reintegração. Para ele, se o Estado não vender, haverá invasões e aposta até na degradação ambiental. Berocan não acredita que os planos do TCE-GO de construir um Parque Ecológico serão levados a cabo e critica a possibilidade de criação de uma ONG para geri-lo. “Se nós estamos fazendo isso há tanto tempo, por que não deixar que continuemos?”, questiona.

A Procuradoria explica que o órgão responsável pela gestão de todo o patrimônio do Estado é a Secretaria de Planejamento e, assim, é esta quem definirá o que será feito. No entanto, o procurador Rodrigo Ganem adianta que há, sim, planos da Segplan de construir um parque na região. “A administração pública é que vai analisar. É importante frisar que interesses meramente econômicos do particular jamais podem se sobrepor ao interesse público”, arremata ele.

Com a liminar em mãos, a PGE-GO deve prosseguir para a reintegração das áreas, mesmo que de forma não amigável, e a expectativa é que todos os 392 mil m² de área que estão sob o comando do Clube Jaó voltem para o Estado ainda neste ano. l