Cientistas ressaltam que não é preciso esperar o número de óbitos aumentar para confirmar fortalecimento da pandemia – é necessário monitorar taxa de transmissão e prevenir aumento de casos

Pacientes recuperados de Covid-19 no Hospital de Aparecida de Goiânia | Foto: Ascom

Nesta quinta-feira, 26, completaram-se nove meses desde que o primeiro caso do novo coronavírus foi confirmado no Brasil. Embora as medidas para a contenção da Covid-19 continuem em vigor, pesquisas revelam o esgotamento físico e mental de profissionais de saúde e da população em geral, de forma que é difícil avaliar quanto essas medidas estão sendo seguidas. Além disso, autoridades de saúde, governos e empreendimentos têm flexibilizado as regras de isolamento, o que tende a endurecer pandemia.

Por estes fatores, começa-se a falar em uma segunda onda brasileira, ao moldes daquela que atinge a Europa neste momento. Em algumas capitais, cientistas registram a reversão de tendência de queda na taxa de infecção do vírus, ou seja, um aumento na velocidade de propagação da doença, desde outubro. Entretanto, apesar da situação epidemiológica não estar sob controle, a flexibilização continua em marcha progressiva pelas cidades brasileiras.

O número de novos casos, hospitalizações e de óbitos vem diminuindo desde meados de agosto, como explica José Alexandre F. Diniz Filho, doutor em Ciências Biológicas e coordenador de pós-graduação da Universidade Federal de Goiás (UFG). Porém, os números absolutos ainda são em geral muito elevados, de modo que a situação pode rapidamente sair de controle novamente. Além disso, estes números voltaram a aumentar nos últimos dias, suscitando a preocupação de que podemos estar no princípio de uma nova onda.

Haverá segunda onda?

Professor José Alexandre Felizola Diniz Filho | Foto: Ana Clara Diniz
Professor José Alexandre Felizola Diniz Filho | Foto: Ana Clara Diniz

José Alexandre Diniz publicou em seu blog um texto e simulação matemática em que modela uma cidade hipotética com um milhão de habitantes onde é observada taxa de propagação da doença (R) semelhante a que verificamos na média do Brasil real. O cientista simula que, à princípio, sem medidas de controle da pandemia, o R da cidade seja igual a 2, ou seja, que 100 pessoas sejam capazes de infectar outras 200. Após um surto inicial, a cidade fictícia fecha escolas e o comércio, o que faz com que o R caia para 1,2 (cada 100 infectam 120). Deste modo, a epidemia vai continuar a crescer, mas em um ritmo muito mais lento. 

“Podemos ver que, nessa simulação, a epidemia cresce e chegamos a cerca de 2800 óbitos depois de 8 meses, ao final de outubro. Na simulação, no pico da pandemia na cidade seriam necessários algo como 700 leitos de UTI ao mesmo tempo para atender aos casos mais graves. Mas vemos que, gradualmente, o número de eventos começa a diminuir e chega-se ao final de outubro com a epidemia praticamente sob controle”, escreve o professor.

A estabilização ocorre com cerca de 35% da cidade infectada porque o número médio de contatos que cada pessoa tem com as demais na sociedade é constante. “À medida que algumas pessoas começam a se infectar (e assumimos que se tornam imunes a partir daí, o que ainda é uma incerteza), isso significa que a chance de uma pessoa infectada transmitir a Covid-19 aos seus contatos diminui”, escreve José Alexandre Diniz.

Seria em um cenário semelhante a este em que a maioria das capitais brasileiras se encontra. José Alexandre Diniz lembra, em conversa com o Jornal Opção, que a realidade é mais complexa do que este modelo modelo SIR básico, que não leva em consideração a eficiência do uso de máscaras, higienização pessoal, e outros. 

A elevação do número de novos casos dos últimos dias pode ser devida as transmissões acumuladas durante o apagão de dados | Foto: Worldometers / Reprodução

Com a desaceleração da pandemia, cria-se a impressão de segurança e pessoas começam a abandonar o isolamento. Com metade das pessoas que estavam isoladas voltando a trabalhar fora de casa e ter contatos, com liberação de eventos públicos e retorno das escolas, estima-se um aumento de 50% até 100% no Re. Para conhecer o impacto disso em números de novas infecções, hospitalizações e óbitos, a simulação projeta um cenário para 2021.

No pior dos cenários, o que vemos é uma explosão no número de casos – o número de óbitos acumulados mais do que dobraria até março de 2021 e voltaria a desacelerar novamente apenas a partir de abril ou maio de 2021. O cenário parece catastrófico, e justamente por isso, é improvável que aconteça sem que antes se adotem novas medida de contenção do vírus. “Se isso acontece, volta-se, digamos, para um Re igual a 1,2 a partir de março, quando os eventos a dinâmica mudaria e a trajetória voltar a desacelerar mais cedo, mas ainda assim haveria um grande aumento no número de óbitos até que as novas medidas voltassem a fazer efeito”, escreve José Alexandre Diniz.

Enquanto ressalta que o modelo não leva em consideração as dinâmicas de espalhamento do vírus em diferentes classes sociais e que é simples ao considerar a reabertura total e com poucos protocolos em toda a cidade simultaneamente, José Alexandre Diniz chama atenção para o fato de que devemos ser mais cautelosos com a possibilidade real de o início de uma segunda onda em nossas cidades, pois essa tem potencial para ser desastrosa. O cientista depreende quatro conclusões do exercício de projeção da cidade hipotética:

Primeiro, ressalta: “O tempo de percepção do crescimento da pandemia é muito longo. Um aumento expressivo no Re em novembro, se a epidemia estiver bem controlada, só aparece de forma mais clara no final de janeiro! É preciso, portanto, monitorar o Re e as hospitalizações continuamente, inclusive corrigindo o efeito do atraso na notificação de novos casos. Mas, além disso, é importante avaliar os números absolutos de eventos, principalmente as hospitalizações, e fazer isso de forma transparente, alertando a sociedade e esclarecendo a todo o momento a situação epidemiológica da cidade.”

Em segundo lugar, destaca que, na cidade simulada, a estabilização ocorre com 35% dos habitantes infectados, e esta proporção é maior do que a que vemos na prática das principais cidades brasileiras. Isso significa que, no mundo real, as chances de uma pessoa infectada transmitir a Covid-19 aos seus contatos é maior, já que não há tantos imunizados quanto na simulação. “Assim, é fundamental continuar investindo em testagens e avaliações epidemiológicas detalhadas”, relembra.

Medidas drásticas, como o fechamento do comércio, podem não ser necessários caso haja o rastreamento de contatos entre pacientes da Covid-19 | Foto: Jornal Opção

Em seguida, José Alexandre Diniz admite que medidas como novos lockdowns ou quarentenas são drásticas e improváveis no cenário econômico brasileiro atual. “O ponto crítico é bloquear as cadeias de transmissão, reduzindo o Re de forma ‘cirúrgica’. Há maneiras mais efetivas, rápidas e baratas para fazer screenings iniciais e talvez os tomadores de decisão estejam mais conscientes das relações custo-benefício entre essas estratégias locais e medidas mais drásticas de quarentena e lockdown.”

Por último, José Alexandre Diniz afirma que, caso a taxa de espalhamento da doença cresça, veremos seus efeitos antes da disponibilidade de uma vacina. Embora estados como o Rio Grande do Sul já registrem crescimento nessa taxa, o cientista afirma ainda não enxergar o valor do R se elevando em Goiás. Para que isso se mantenha, é importante continuar com as medidas básicas de contenção, sob o risco de mesmo com a vacina aparecerem novos surtos.

Festas de fim de ano

Dada a exaustão dos brasileiros com o isolamento social, a flexibilização da quarentena adotada na maioria das cidades e a aproximação do natal e festas de fim de ano, é provável que os contatos entre familiares e amigos aconteçam – quer a ciência recomende essas reuniões ou não. Em uma tentativa de reduzir os danos e a dimensão do contágio, aqueles que irão confraternizar deveriam seguir as recomendações de médicos e cientistas.  

Vitor Mori, doutor em engenharia biomédica que atua no Observatório Covid-19 BR, enumera medidas contra o espalhamento da Covid-19 nas festas de fim de ano em webinar promovido pelo Fórum de Reportagem sobre a Crise Global de Saúde, uma iniciativa do Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ, em inglês). O cientista afirma que, ao contrário do que se pensou no começo da pandemia, o caminho mais prevalente da transmissão da Covid-19 não se dá por meio de superfícies contaminadas.

Ao invés disso, o cientista reforça a necessidade do uso de máscara e da ventilação adequada de ambientes para evitar ‘eventos de super espalhamento’ – que são ocasiões em que uma pessoa contaminada infecta diversas outras. “Esses eventos estão muito ligados à transmissão por aerossóis”, afirma. Vitor Mori faz a analogia entre os aerossóis emitidos quando um infectado pela Sars-CoV-2 fala e a fumaça do cigarro. 

“Em ambientes fechados, a fumaça do cigarro se concentra e fica impregnada no cabelo e roupas das pessoas. Mas em locais ventilados ou ao ar livre, é mais difícil sentir o cheiro da fumaça de cigarro”, compara. Eventos de super espalhamento estão muito associados a ambientes fechados, com pessoas sem máscara e sem distanciamento, afirma o cientista.

Em estudos de rastreamento de contato realizados na Europa, percebeu-se que o crescimento da pandemia estava ligado a encontros familiares durante o inverno. “Um grande diferencial que temos no Brasil é a possibilidade de fazer encontros ao ar livre. É importante lembrarmos que essas reuniões são eventos de grande risco. Entretanto, compreendemos que o natal é um traço forte da cultura brasileira que irá ocorrer, quer recomendemos ou não”.

Para as pessoas que irão se encontrar com familiares e amigos em festas de fim de ano, outra medida importante, segundo Vitor Mori, é fazer uma quarentena de quatorze dias antes do evento. “Outra medida importante é reunir o mínimo de pessoas possível. Caso haja um infectado espalhando o vírus, menos pessoas sairão contaminadas de uma reunião pequena”, afirma o cientista.

Eliza de Oliveira Borges afirma que é necessário ponderar os riscos e perdas do isolamento para os idosos durante a época de confraternizações do natal | Foto: Reprodução / SBGG

Eliza de Oliveira Borges, médica geriatra e presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia em Goiás (SBGG-GO), afirma que este período do ano é particularmente difícil para aqueles em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs). “O idoso institucionalizado tem um quadro clínico cognitivo que compromete seu entendimento. São pacientes frágeis, fora de seus contextos afetivos e que, em geral, não entendem a dimensão da pandemia”, diz a médica.

A presidente da SBGG-GO relata que, como o restante da sociedade, as ILPIs têm flexibilizado as medidas de isolamento social, se submetendo a rigorosas regras para contenção do espalhamento da Covid-19. “Mesmo assim, temos visto que os impactos negativos do isolamento são muito graves nestes pacientes: sensação de abandono, perda da funcionalidade, perda de peso, depressão, alterações comportamentais”, diz Eliza de Oliveira Borges.

A médica geriatra relata que, mesmo entre aqueles que não mais reconhecem os familiares, a referência de afeto ainda existe e o afastamento se torna uma grande perda para o paciente idoso. Caso se conclua que é necessário visitar o idoso fragilizado em meio à pandemia, é necessário fazer a si mesmo os questionamentos: quantas pessoas vão ao seu encontro? Se está conscientizado das medidas de precaução, como higienização, ventilação, distanciamento mínimo?

“É uma questão delicada”, diz Eliza de Oliveira Borges. “Entendo que o momento agora não é condenar, de julgar o que é certo ou errado. Temos de individualizar caso a caso. Reuniões familiares são essenciais para a saúde mental do idoso e, por isso, precisamos racionalizar a tomada de decisão. Quanto aquele encontro ou a falta dele impactará emocionalmente a vida do ente querido?”