Centro de Goiânia é a marca de uma cidade que cresceu desordenadamente, mas que pode ser recuperada
04 julho 2015 às 12h27

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Análises mostram que a região central da capital tem capacidade para receber mais habitantes, o que prova: expansão urbana é um erro e a solução para o caso é mais fácil do que se pensa

Marcos Nunes Carreiro
Como morador de uma cidade, o leitor pode achar que a conhece em completude, principalmente se nasceu e cresceu nela. Tal pensamento, não raro, pode resultar em afirmações erradas, sobretudo com relação a grandes capitais, como Goiânia. Isso acontece porque, de tão ambientado ao local, é comum que o olhar de uma pessoa já não veja os detalhes que formam a cidade; detalhes que precisam ser enxergados para que a cidade seja, de fato, entendida.
Discutir Goiânia como um todo pode resultar em equívocos, visto que a cidade, embora não tenha a mesma quantidade de habitantes de São Paulo, cresceu além do previsto. Ao abranger um vasto território, a capital goiana se tornou uma metrópole que para ser entendida precisa ser analisada em suas variadas partes. Nesse contexto, o objeto de análise desta reportagem é o Setor Central (ao qual chamaremos Centro, com letra maiúscula), coração modificado da cidade.
Existem alguns conceitos que podem ajudar na compreensão daquilo que se pretende. Comecemos pelo macro: de tão plural, Goiânia é capaz de promover uma constante e intensa concentração de pessoas em locais específicos, deixando outros de lado. Isso faz, por exemplo, que a densidade média urbana da capital esteja muito além da ideal. Por densidade urbana entende-se a relação entre a população e uma determinada área. Esse cálculo é geralmente feito em habitantes por hectare (10 mil m²).
A densidade média ideal, segundo os especialistas, é de 300 habitantes por hectare. E qual é a densidade média goianiense? 30 habitantes por hectare. Isso acontece porque a cidade foi sendo espalhada ao longo dos anos e criando locais com baixíssimo adensamento, enquanto outros o têm além da medida — caso de Jardim Goiás e Setor Bueno, cuja média chega a 600 habitantes por hectare.
Atribui-se os dois fenômenos — expansão desnecessária e adensamento exagerado — à especulação imobiliária. Contudo, a responsabilidade também pode ser delegada às gestões e legislaturas municipais, pois os projetos que aumentam o território da cidade são aprovados pelos vereadores da cidade, muitos deles ligados ao setor imobiliário. É devido à ausência de planejamento? Não. Tanto que existe um plano diretor. O que falta é cumpri-lo.
Planejamento é uma palavra que não faltou para Goiânia, pois muito antes da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade de 2011 já existiam planos diretores para a capital. E foram cinco: o primeiro, de 1938, foi elaborado por Attilio Corrêa Lima e Armando Augusto de Godói, e serviu até os anos 1950; o segundo, de Luis Saia, não foi aplicado, mas foi desenvolvido entre 1959 e 1962; o terceiro foi pensado pelo arquiteto e urbanista Jorge Wilheim, de 1967 a 1969; o quarto foi desenvolvido pela empresa Engevix Engenharia S.A. e aprovado em 1994.
O último, aprovado em 2007, foi de responsabilidade da Secretaria Municipal de Planejamento, sob consultoria do arquiteto e urbanista Luiz Fernando Cruvinel Teixeira, o Xibiu. As informações — retiradas da dissertação de mestrado defendida em 2011, na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), por Cáritas Roque Ribeiro — dão conta dos planejamentos feitos para a cidade. Mas também contam a história de desordenamento da cidade.
Ribeiro relata: “Apesar de sua origem planejada, Goiânia não conseguiu manter o projeto original, por causa dos conflitos sociais, econômicos e políticos. Em 1947, aprovou-se uma Lei Municipal de Código de Edificações (na qual constavam a Lei de Zoneamento e a Lei de Loteamento) que passava para a iniciativa privada a obrigação da infraestrutura e saneamento básico dos loteamentos. Contudo, com a pressão dos donos de terras e empreendedores imobiliários, o poder público cedeu e revogou as obrigações, exigindo apenas a locação e abertura das ruas”.
E esse processo se arrasta até os dias atuais. Ou seja, a grande questão é: Goiânia sempre sofreu com as pressões do ramo imobiliário e expandir a cidade de forma desordenada foi e continua sendo um erro. Um erro que tem gerado problemas ao longo dos anos. Para citar o óbvio: uma (des)mobilidade urbana. Para pontuar o não óbvio: a deterioração cultural e material de seu centro histórico.
A expansão só seria necessária se não houvesse vazios urbanos na cidade. Contudo, o último levantamento feito pelo Instituto de Desenvolvimento do Centro-Oeste (ITCO), em 2008, mostrou que existiam 100 mil vazios urbanos na cidade. Na região central são poucos, mas existem vários prédios e casas em situação de subutilização. Exemplos clássicos são dois prédios na Rua 2: um na esquina com a Avenida Araguaia e outro na esquina com a Avenida Goiás. Eles refletem o afastamento da população dessa região e a consequente deterioração dos patrimônios do local.
O leitor pode pensar: “Ora, mas o Centro é cheio de gente todos os dias”. Sim, todos os dias úteis durante o horário comercial. E a noite e nos fins de semana? Apenas os moradores utilizam a região. Quem passeia — veja bem: passeia — pelo Centro descobre situações e pessoas interessantes, além de várias placas de aluguel e venda de residências. Isso porque, embora o número de moradores tenha aumentado nos últimos anos, eles ainda são poucos.
Tanto é que a Associação de Moradores do Centro tinha, inclusive, a intensão de promover a construção de casas populares na região central de Goiânia como forma de atrair as pessoas e, assim, fazer com que o local fosse constantemente frequentado. Além disso, com o aumento da população, seria possível conseguir a revitalização e a requalificação do setor. O poder público, entretanto, não levou o projeto a sério.
Isto é, mesmo que a população do Centro tenha aumentado, ainda há espaço na região para algum adensamento. Não falamos de verticalização, até porque isso não é permitido, mas de uma melhor utilização do espaço que hoje está parado. Os prédios da Rua 2 são apenas um exemplo. Há vários outros.
Quem mora na região não pretende se mudar
Tadeu Arrais, professor do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa) da Universidade Federal de Goiás (UFG), dá a dica sobre o perfil dos moradores da região central de Goiânia: “Historicamente, os centros das grandes cidades começam a ser lugares degradados. Surge daí a ideia de gentrificação. O Centro de Goiânia não passou pelo processo de gentrificação, ainda bem, mas tem uma população em grande parte idosa, que sai pouco de casa”.
Vem daí a ideia de que o Centro não é habitado, o que não é verdade. Nos últimos anos, o setor tem passado por uma “reabitação”, sobretudo de jovens e adultos com família em formação. Veja os relatos:
Warley de Castro Pereira

“Moramos aqui há aproximadamente cinco anos e nos mudamos para o Centro por uma questão de qualidade de vida. Por exemplo: antes, se saíssemos do trabalho às 18h15, chegávamos em casa por volta das 19h30, mesmo de carro próprio. O que mais influenciou nossa mudança para o Centro foi isso. Outro fator importante é que tínhamos a concepção de que o valor dos imóveis era mais barato nos bairros que na região central. Mas descobrimos que não. Os imóveis do Centro, apesar de antigos, têm boa estrutura, são grandes e com preços menores.
Além disso, há a tranquilidade. Apesar de que quando nos mudamos o policiamento fosse melhor, a região é muito mais tranquila do que nos bairros. No meio da semana é bastante movimentado, mas a noite e nos fins de semana parece uma cidade do interior do Estado: as pessoas saem para caminhar e passear com os animais de estimação ou ficam sentadas conversando. Há também várias atividades culturais gratuitas no Bosque dos Buritis, por exemplo, e atividades esportivas também, como no Centro de Excelência. E sobram vagas. Se não bastasse é tudo perto. Só uso o carro para levar minha filha mais velha na escola.”
Ailton Santos da Cruz

“Moro no Centro há dois meses. Antes morava no Garavelo. Morava de aluguel e precisei me mudar. Como já trabalhava na região central, achei melhor me mudar para cá. Nos bairros mais distantes há a especulação imobiliária, o que aumenta muito o valor dos imóveis tanto para aluguel quanto para a compra. No Centro encontrei um imóvel melhor do que eu morava e com preço igual. Assim, fico perto do trabalho e morando com uma qualidade melhor.
Além disso, aqui tem a vantagem de ser tudo perto. Se precisar de um cartório, de um banco ou de uma loja, você encontra a poucos minutos. Agora, posso também fazer caminhada, pois antes eu já chegava em casa tarde e cansado e lá não tinha um local apropriado para a prática de atividades físicas. Aqui há os bosques. Então, minha qualidade de vida melhorou muito.”
Walacy da Silva Neto

“Namorei o centro de Goiânia desde o dia que mudei para a cidade. Vindo de Itaberaí, a 100 km da capital, mudei para o Setor Leste Vila Nova; de lá para o Setor Bela Vista e depois para o Setor Bueno. Sempre namorando, de longe, o Centro. Sempre vivendo boa parte do meu dia pela Rua 3 e Avenidas Tocantins e Anhanguera. O Centro permite muito mais do que proximidades entre um barzinho legal e outro. Tem os acontecimentos, como olhar pela janela da minha casa (que dá para a Rua 9) esperando alguma coisa “explodir”. Sempre acontece algo no Centro.
Para mim, falar do Centro é apelar para o clichê. A multidão de pessoas, a possibilidade de lugares e as duas fases do dia (enquanto tem sol e depois que não tem) que apresentam puramente do que se trata a nossa capital. Isso porque durante o dia o Centro se movimenta, se agita, grita pela janela e pelos auto-falantes do carro de som. O sol parte e, durante a noite, um enorme silêncio às vezes cortado apenas pela sirene de uma ambulância ou de um carro da polícia. Agora que moro no Centro, vivemos eu e ele uma lua de mel.”
É preciso “devolver” o Centro à população goianiense
“Um dia, estava na porta do Iphan esperando uma colega e passou um senhor. Ele parou para conversar comigo e me perguntou se eu conhecia o nome de uma planta que há perto de onde eu estava e disse a ele o nome pelo qual eu conhecia. Achei linda a delicadeza de uma pessoa perceber que a árvore estava colorida e ficar lá contemplando por um longo tempo. Imagino que a qualidade de vida desse senhor deve ser extraordinária”.
A fala é de Salma Saddi Waress de Paiva, superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Goiás, e diz respeito a como a população se relaciona com a cidade, sobretudo com o Centro, que deveria ser a principal referência de memória de Goiânia, mas que perdeu essa função ao longo dos anos em prol da funcionalidade única dos serviços que são prestados no local, como comércio e bancos.

Nesse aspecto, Salma diz algo essencial: “Qual a cidade que nós queremos? Isso parte do poder público. As pessoas aderem a essa proposta. A iniciativa de ONGs existe, mas é um tanto tímida, porque essas pessoas lutam com muita dificuldade. Precisamos é de atitudes. Ter ações voltadas para a questão do patrimônio de Goiânia. A qualidade de vida passa por essas questões”.
Ou seja, promover a “ocupação” do Centro não é apenas uma questão de adensamento imobiliário, mas também cultural. E atrair a população para estar presente na região a noite e nos fins de semana faz com que a memória da cidade seja preservada: tanto a imaterial — relacionado aos saberes, à habilidades, às crenças etc. — quanto a material — os locais, os prédios, os becos. Mas isso só será alcançado quando todos os órgãos públicos (federais, estaduais e municipais) se unirem em prol desse objetivo.
Um exemplo: a própria reforma da Praça Cívica trabalha para este sentido. Ao retirar os veículos do local, a revitalização irá devolver à Praça o seu caráter de civilidade, de memória, atraindo as pessoas de volta para a região. Salma conta que o Iphan, parceiro da Prefeitura na revitalização da Praça, recebeu um prédio no local e que o trabalho do instituto será no sentido de que as pessoas possam sempre visitar o local, seja para ver uma exposição ou assistir a um documentário na hora do almoço. “Essa história de que as pessoas não têm bom gosto não existe. Todo mundo gosta do que é bom e bonito, mas nem todos têm acesso à cultura. É uma questão de oportunidade”, afirma.
Funcionalidade
Beatriz Otto de Santana, arquiteta, urbanista e coordenadora técnica do Iphan em Goiás, aponta outro fator importante em relação ao centro da capital. A pulverização dos serviços públicos para diversos locais da cidade: Prefeitura, algumas secretarias de Estado e de município, assim como a Assembleia Legislativa, Ministério Público, Tribunais de Contas etc.

Para ela, isso faz com que a região vá perdendo sua característica de centro cívico e promove o esvaziamento do local, sobretudo porque o comércio também perdeu força ao longo do tempo, principalmente com o surgimento dos shoppings. “Assim, quando termina o horário de expediente, morre a vida. Então, o que deve ser buscado é ter um uso misto. O Centro precisa ter ocupações a noite, principalmente moradia, para não esvaziá-lo. Ou seja, o Centro é da população, mas pode ser usado por mais pessoas ainda, com essa possibilidade de uso contínuo”, relata.
Dessa forma, a questão é: se as pessoas tiverem incentivos para frequentar o Centro, elas o usarão. E a partir do momento que as pessoas querem conhecer, o local se preserva melhor. E o que poderia fazer as pessoas quererem conhecer a região? Beatriz dá uma ideia: o aproveitamento de duas grandes intervenções de mobilidade urbana que passarão pelo Centro: o BRT Norte-Sul e o VLT Leste-Oeste.
Os projetos estão prontos e estão sendo analisados pelo Iphan — análise necessária, uma vez que o traçado original da cidade é patrimônio histórico e não pode ser modificado. Assim, os projetos passam pelo instituto que, atualmente, aguarda o envio dos projetos executivos com os ajustes que foram apontados nos pareceres técnicos. Contudo, o parecer o Iphan é restrito à área tombada, tanto que a obra do BRT já começou, embora ainda muito distante da região central.
Voltemos à ideia de Beatriz: “Teremos grandes plataformas de embarque e desembarque. Assim, porque não associar essas plataformas ao conhecimento da cidade? Por exemplo, a estação que será construída em frente ao Grande Hotel, ao invés de se chamar estação 37, por exemplo, pode ser denominada Estação Grande Hotel. Isso já reforça a identidade do local. É possível também colocar mapas com sugestões de percursos a pé para conhecer os locais e prédios importantes na região”.
Reavivando os becos de Attilio Corrêa Lima
O Centro de Goiânia esconde segredos. O leitor talvez desconheça as vielas e becos que existem atrás dos prédios da Avenida Goiás e que se espalham por vários outros locais na região do traçado original da cidade. Se conhecer, talvez seja porque já estacionou seu carro em alguma deles.
O atual Secretário Municipal de Direitos Humanos e Políticas Afirmativas, Pedro Wilson, quando foi prefeito de Goiânia (2001-2004) encabeçou um projeto chamado Goiânia Cara Limpa, que revitalizou o centro da capital dando a ele o aspecto paisagístico que tem hoje. O principal objetivo do projeto era justamente o de atrair a população para o local.
Uma das partes desse projeto era a de conceder às vielas e becos do local — que são muitos — um caráter mais cultural, para que eles não se perdessem apenas como estacionamento durante o dia e local de consumo de drogas a noite. “As vielas surgiram, segundo o desenho original de Attilio Corrêa Lima, para que caminhões entregassem mantimentos para as casas e lojas. Hoje, são estacionamentos e estão desaparecendo”, diz.
Assim, segundo o ex-prefeito, a intenção do Cara Limpa era transformá-las em centros de cultura popular, de gastronomia. “As pessoas não vêm mais para o Centro. Elas passam pelo Centro. É preciso ter atividades, como incentivo de grupos de rock e serestas para atrair as pessoas, principalmente nos fins de semana”, relata. O beco atrás do Grande Hotel, por exemplo, fica praticamente inutilizado durante a maior parte do tempo a não ser para servir de estacionamento. Às vezes, há alguma programação nos fins de semana.
A questão de usar melhor essas vielas e becos, patrimônio histórico e memorial de Goiânia, não é retirar sua útil função de estacionamento durante o dia — até porque a cidade carece de locais para estacionar sua enorme quantidade de carros — mas promover usos contínuos. Um caso a ser citado como exemplo é o Beco da Codorna, localizado entre as Avenidas Tocantins e Anhanguera, que foi reavivado neste ano pela iniciativa de um artista.

A reportagem foi procurar Eduardo “Aiog” Fernando no Beco da Codorna, onde se localiza a Upoint Streetart, galeria de arte criada e mantida pelo artista desde o início do ano. Ele relata que existe um grupo organizado de grafiteiros em Goiânia que sempre usou os becos do Centro para pintar e que um dia, grafitando o Beco da Codorna com esse grupo, ele percebeu que havia um espaço para alugar.
— Aluguei sem saber bem o que fazer com o imóvel. Eu passava os dias aqui e com a vontade de transformar seu visual, pois o ambiente era um pouco mais carregado com tinha aquela imagem geral dos becos, de abandono. Dessa forma, surgiu a ideia de fazer uma associação que juntasse os artistas. Foi assim que fizemos o Festival Beco, em abril, que reuniu quase 70 grafiteiros com apoio da Secretaria Municipal de Cultura e mudamos o caráter do local.
— Quantas pessoas passaram por aqui nos dias do evento?
— Foram três dias de evento. Passaram por aqui entre três e quatro mil pessoas. Veio gente de toda a cidade e hoje o beco é praticamente um ponto turístico. Tem artistas do Brasil inteiro que veem coisas na internet e vêm aqui conversar com a gente. Já vieram até “gringos” aqui. Além disso, também temos uma galeria de arte que está aqui permanente com exposições de telas. E as pessoas vêm.
A associação, que ainda está sendo formada, promove eventos constantes no local que, de dia é estacionamento, mas a noite vira ponto de cultura popular. E, por meio dessa inciativa, o Centro vai se reavivando.
