Candidaturas negras são preteridas por partidos, afirma advogado que ingressou com ação no STF

20 setembro 2020 às 00h00

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Advogado eleitoral explica que não se tratam de cotas, mas de garantir que partidos invistam proporcionalmente em candidatos negros

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) discutiu a possibilidade de reserva de vagas e cota do Fundo Especial de Financiamento de Campanha para candidaturas negras através de uma consulta apresentada pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) em 2019. A distribuição proporcional do fundo eleitoral, bem como dos demais recursos de campanha, para candidatos negros, seria feita nos moldes do que já acontece com candidaturas femininas.
O advogado que elaborou a consulta, abraçada por Benedita da Silva, foi Irapuã Santana, doutor em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e ex- Assessor do Ministro Fux no Supremo Tribunal Federal (STF) e no TSE. Também foi Irapuã Santana o responsável por dar entrada junto ao STF para que a proporcionalidade de recursos para candidaturas negras fosse aplicada ainda nas eleições deste ano.
Em junho de 2020, o processo teve votos favoráveis do Ministro Luiz Barroso e Ministro Edson Fachin, no entanto o Ministro Alexandre de Morais pediu vistas ao processo e ainda não disponibilizou seu voto para retomar o julgamento. Com a iminência do retorno da votação, entidades do movimento negro e sociedade civil organizada se preocupam que a decisão do TSE não possa valer para as eleições municipais deste ano.
O ministro do STF Ricardo Lewandowski determinou via liminar monocrática que a reserva de recursos para candidatos negros seja válida já nas eleições deste ano, previstas para novembro. No pleito serão eleitos prefeitos e vereadores. A decisão de Lewandowski altera a decisão do plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que em agosto havia determinado a aplicação das novas regras somente a partir das eleições de 2022.
Para valer para as eleições municipais deste ano, as regras devem ser aprovadas em julgamento no plenário virtual do STF antes do início da campanha eleitoral, previsto para 25 de setembro. Três ministros já se manifestaram favoravelmente em relação às mudanças sugeridas pela consulta. Irapuã Santana afirma estar confiante de que o supremo irá abraçar a causa e determinar que a situação seja regulamentada já para estas eleições.
Como fazer
Quanto ao método de distribuição igualitária do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, Irapuã Santana defende que, ao contrário do que acontece com candidaturas femininas, em que uma conta especial é criada para receber a cota, a destinação proporcional ao número de candidatos pretos de cada partido seja feita pelas próprias coordenações partidárias.
“O que esperamos é que o TSE edite uma resolução determinando como a separação deste fundo vai ser feita. Não deve existir uma cota, trata-se de um investimento proporcional. Eu entendo que, existindo a boa vontade dos partidos, fazer justiça social deve ser plenamente possível sem a necessidade da criação de uma conta especial para destinação do fundo eleitoral. As direções partidárias são capazes de distribuir esse dinheiro justa e proporcionalmente”, afirma o advogado.

Irapuã Santana acredita também que a resolução não precisa necessariamente de uma lei especial que passe pelo Legislativo: “Trata-se de uma forma de interpretar a norma que já está em vigor. Não precisaríamos de uma lei para falar sobre isso. O que acontece é que, historicamente falando, existe sub investimento nas candidaturas negras. Isso a própria constituição já veda. Tratar as pessoas diferentemente é uma discrimnação odiosa. Não existe ausência de lei. Existe a constituição e estatuto da desigualdade social que afirmam que o dinheiro público deve ser investido de forma democrática”.
Desta forma, seria desnecessária uma lei específica, já que o próprio TSE possui as ferramentas administrativas para regulamentar a divisão do fundo eleitoral. Alterações na forma como vem sendo distribuído poderiam vir de uma resolução do TSE sem passar pelo legislativo.

Discorda de Irapuã Santana o advogado eleitoral Dyogo Crosara, segundo quem esta é uma iniciativa importante, mas que deveria passar pelo Congresso. “Sem dúvidas, o conteúdo é interessante e necessário, considerando o contexto histórico de discriminação e racismo no Brasil. É algo que promove a equidade entre candidatos brancos e negros, mas não podemos deixar de analisar, do ponto de vista jurídico, como se deu essa nova regra”, explica Dyogo Crosara.
Segundo ele, a matéria compete ao Congresso Nacional, onde projeto com esta finalidade já tramita. “Por mais importante que seja, o tema deveria ter sido aprovado por meio de lei, passando pelo Legislativo, e não como uma decisão judicial tomada pelo TSE. Não cabe ao Judiciário a definição desta política pública de inclusão”, defende Crosara.
Na prática, poucos representantes
Na Câmara Municipal de Goiânia existem apenas dois vereadores autodeclarados pretos: Paulo Magalhães (DEM) e Rogério Cruz (PRB). Enquanto Paulo Magalhães pensa que a obrigação de distribuição igualitária para candidaturas negras e brancas seja um avanço, Rogério Cruz se coloca contra a ideia de cotas.
“Nunca participei da distribuição do fundo partidário”, diz Paulo Magalhães sobre suas candidaturas políticas. “Como o vereador é o menor membro da vida política, fiz todas as minhas campanhas ‘na sola do sapato’; no corpo-a-corpo, pedindo votos pessoalmente. Se vier um aumento derivado dessa distribuição por cor, ajuda, mas caso contrário, isso não detém minha participação na vida pública, que sempre ofereci de corpo e alma”.

Paulo Magalhães conta ser descendente de famílias negras e ter tido dificuldade no financiamento de suas campanhas, embora tenha superado a adversidade com proatividade. “Na vida, sofri muito e cheguei aonde estou como vereador por mérito próprio. Falta respeito das pessoas aos candidatos negros, e também por isso, o Poder Judiciário tem o meu respeito. Acho que os deputados deveriam ter se atentado mais à essa questão”.
Rogério Cruz discorda da posição de Paulo Magalhães: “Eu sou negro, mas me sinto igual qualquer um. Considero essa questão de cotas irrelevante; não há necessidade disso. Os negros têm capacidade como qualquer pessoa. É uma questão muito pessoal. Eu, mesmo como negro, não gosto muito de falar sobre raça por acreditar que qualquer pessoa tem condição de chegar onde almeja chegar”.
Rogério cruz é descendente de negros, índios e pardos, e afirma que, em sua família, a questão da discriminação não era discutida. Teve a oportunidade de viver na África aos 16 anos, em Moçambique e Angola, na ocasião em que o Grupo Record estava se estabelecendo nos países. “Diferente da África do Sul, que conheci e reconheci como um país muito dividido, o Brasil é um país livre, miscigenado”.

Ele conta que, em sua campanha para vereador, a divisão do fundo partidário não foi discutida em função de sua etnia. “Foi uma campanha normal. Os valores recebidos do partido eram igualitários. Ninguém nunca tocou no assunto da minha cor. Também vejo muitos brancos pobres que não têm condição de financiar suas campanhas.”
Questão estatística
A questão, entretanto, vai além das impressões dos políticos eleitos. Conforme apurou o Jornal Opção, nas eleições municipais de 2016, 51% dos candidatos se declararam brancos, 39% pardos e 9% negros. A porcentagem da população brasileira composta por negros é de 56%. Entre os que tiveram êxito nas urnas, 59% são brancos, 36% são pardos e 5% negros.
Segundo Irapuã Santana, a barreira está justamente no financiamento das campanhas eleitorais pelos partidos. “Um dos fundamentos dessa consulta que apresentamos ao TSE é que os negros sequer se candidatam porque não têm dinheiro para isso. Um estudo que e realizei em 2016 mostrou que, quanto maior o cargo político, menor a quantidade de negros que chega a se candidatar. Sem uma massa crítica de candidato, não há representatividade de pessoas negras eleitas”.

Ainda segundo o advogado, há um problema moral envolvido na questão da discricionariedade com que o dinheiro público é tratado na distribuição de fundos para campanhas eleitorais: “Se falamos de dinheiro público, um dirigente de partido não tratar como se fosse seu e investir da forma que achar melhor no seu partido. Não pode investir na candidatura que mais convém. A premissa deveria ser a de uma corrida eleitoral com igualdade de chances”.
Irapuã Santana afirma que não há falta de interesse. “Não é um problema da população negra, mas sim do sistema que diminui e esvazia as chances do negro se candidatar. Se você já tem o óbice de se candidatar, que dirá de se eleger. Com essa nova forma de ver o fundo eleitoral, devemos ter um interessante incremento das candidaturas negras. Vai aumentar as chances deles terem suas chapas e projetos eleitos”, conclui Irapuã Santana.