Caiado consegue atravessar a crise fiscal e terá mais fôlego em 2020
29 dezembro 2019 às 00h00
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Democrata teve de tomar medidas impopulares, mas termina o ano projetando um déficit 40% menor para o ano que vem em relação a 2019
Atravessar 2019 não foi nada fácil para o governador Ronaldo Caiado (DEM). Mas é inegável que o democrata termina o ano com perspectivas mais positivas para 2020. Os problemas fiscais não foram totalmente superados, mas basta dar uma olhada no orçamento do Estado para notar que as contas estão mais próximas de uma situação administrável que há 12 meses. Além disso, há uma previsão maior de arrecadação e de gastos mais compatíveis com a realidade dos cofres públicos – fruto tanto de uma política de austeridade, concretizada em projetos importantes aprovados na Assembleia Legislativa, como na expectativa de melhoria do cenário econômico nacional em geral (os economistas preveem que o Produto Interno Bruto, o PIB, brasileiro cresça 2,17%, o que seria o melhor desempenho desde 2013).
Conforme o orçamento aprovado na Assembleia Legislativa, o déficit orçamentário para 2020 será de R$ 3,59 bilhões – uma enormidade, ainda. Isso representa mais de 10% do bolo total, que é de R$ 29,2 bilhões em receitas. Mas é uma evolução significativa diante do déficit projetado para 2019, conforme a peça orçamentária aprovada após a eleição do democrata, que era de R$ 6 bilhões. Ou seja, a redução foi de aproximadamente 40%.
Apesar de a engenharia contábil para se calcular um déficit em contas governamentais, entender o que ele significa é relativamente simples. Quando há déficit, quer dizer que o governo está gastando mais do que arrecada. Para o próximo ano, por exemplo, o governo estima gastos de R$ 32,9 bilhões em despesas – diante da arrecadação já citada de R$ 29,2 bilhões. Não é preciso ser especialista em contas públicas para perceber que, dessa maneira, viver com a corda no pescoço não é uma simples metáfora.
O desequilíbrio fiscal do Estado, ao contrário de que muita gente pensa, se reflete diretamente na vida cotidiana de todos. Sem recursos suficientes, serviços básicos são afetados. Assim, o pagamento do servidor pode sofrer atrasos, o atendimento nos hospitais públicos perde qualidade, as rodovias se deterioram e não são recuperadas da maneira esperada. Caiado foi obrigado a lidar com todos esses problemas durante 2019 – e é preciso admitir que, depois de um início tumultuado (em que houve atritos com servidores e a manutenção das rodovias foi prejudicada, por exemplo), dezembro chega com ânimos menos acirrados.
O primeiro quarto do mandato de Caiado foi de ajuste de contas. Um ajuste duro, que cobrou sua parcela de sacrifício de toda a sociedade. Começando do funcionalismo, que teve de esperar o pagamento de dezembro 2018 por longos meses. Somente essa folha, deixada pelo ex-governador José Eliton (PSDB), era de R$ 1,5 bilhão. Mesmo sob ataques e críticas, a equipe econômica do democrata seguiu convicta em suas posições e, assim, essa parte da herança recebida foi quitada em agosto.
Ao mesmo tempo em que pagava parceladamente a folha de dezembro de 2018, Caiado conseguiu manter em dia os pagamentos a partir de janeiro. Aos poucos, a data de liberação dos salários, que, conforme a Constituição Estadual, deve ser feita até o dia 10 do mês seguinte ao trabalhado, foi sendo encurtada. A ponto de o salário de dezembro deste ano ter sido pago no dia 23 – antes, portanto, do Natal.
Isso significa que Caiado quitou 14 folhas salariais em 12 meses – uma vitória para o democrata, especialmente diante de um caixa combalido que, segundo o próprio governador, tinha apenas R$ 18 milhões disponíveis em janeiro, quando tomou posse. Isso significa que o governo do Estado teve de desembolsar, somente em salários, algo em torno de R$ 15 bilhões durante o ano.
Além de quitar uma dívida deixada pela administração anterior, Caiado anunciou que pagará uma diferença relativa ao atraso para todos os servidores que receberam dezembro de 2018 apenas em 2019. Segundo o governador, a secretária da Economia, Cristiane Schmidt, escalonará esses valores nos primeiros meses de 2020.
Outras dívidas
Apesar de ser a que provoque mais ruído, a dívida com o funcionalismo não foi a única herança com que o governador teve de lidar ao longo de 2019. As Organizações Sociais (OS) que gerem os hospitais públicos estaduais, por exemplo, tinham cerca de R$ 260 milhões para receber. Com pagamento de algumas parcelas e renegociação dos contratos, o governo do Estado conseguiu baixar esse passivo significativamente. Dessa forma, os hospitais continuam funcionando, como referência na saúde pública (ainda que críticas pontuais sejam naturais diante da demanda sempre gigantesca nesta área).
Além do pagamento de repasses atrasados, o governo do Estado trocou algumas OSs, com contratos mais vantajosos, mas com exigência de que a qualidade não caia, visto que, na análise do governo, em alguns casos os procedimentos estavam sendo cobrados indevidamente.
Uma das mudanças ocorreu na administração do Hospital de Urgência de Goiânia Dr. Valdemiro Cruz, o Hugo, unidade de referência para traumatologia não só em Goiás, mas para os demais Estados do Centro-Oeste e alguns do Norte e Nordeste. A gestão foi oficialmente transferida para o Instituto Nacional de Tecnologia (INTS), que tem sede em Salvador.
A OS baiana assume com a missão de manter, ou melhorar, a qualidade do atendimento, com um custo 20% menor que a antecessora, o Instituto Haver, o que significa uma economia de R$ 24 milhões para os cofres públicos. O Haver relata ter feito 16.406 cirurgias no período em que esteve à frente do Hugo e que atingiu índice de satisfação de 70%.
Paralelamente às negociações com as Organizações Sociais, que hoje administram os maiores hospitais estaduais (além da rede Hugo, que tem unidades em Goiânia, Aparecida, Trindade, Anápolis, Santa Helena e outros, também o Hospital de Doenças Tropicais, o Hospital Geral de Goiânia e o Centro de Reabilitação e Readaptação, o CRER), o governo conseguiu investir na ampliação dos leitos pediátricos do Hospital de Urgências Otávio Lage (Hugol), ao custo de R$ 1,5 milhão, e entregou equipamentos ao Hospital Materno-Infantil, que é gerido pelo Instituto de Gestão e Humanização (IGH).
Lista de dívidas atinge várias áreas da administração
A lista de dívidas herdadas é longa. O transporte escolar tinha cinco parcelas para os municípios atrasadas, apesar de ser uma obrigação constitucional. A Federação Goiana dos Municípios (FGM) buscou a Justiça em 2018, ainda assim não houve os repasses integrais. Só esses cinco meses representaram R$ 72 milhões, segundo a secretária da Educação Fátima Gavioli. Com os 13 meses referentes a 2019, no total foram transferidos R$ 103,7 milhões às prefeituras.
Ainda na área da educação, Caiado recebeu uma conta de R$ 76 milhões do programa Bolsa Universitária, que subsidia parte das mensalidades de alunos matriculados em instituições particulares de ensino superior. Esses valores são de responsabilidade da Organização das Voluntárias de Goiás (OVG).
A dívida foi parcelada em 36 meses, com pagamentos mensais de R$ 2,1 milhões. A transferência começou em agosto, portanto, seguirá até 2022, ano em que se encerra o atual mandato de Ronaldo Caiado como governador. Sem esses recursos, as faculdades e universidades particulares têm a saúde financeira comprometida e os alunos correm o risco de perder as bolsas. Para 2020, a presidente da OVG, Adriana Caiado, pretende implantar uma reformulação no programa.
Ainda que tenha conseguido superar um ano difícil em relação às contas públicas, tendo quitado R$ 3,5 bilhões em dívidas, não é possível dizer que os desafios estejam superados. Como a própria secretária da Economia, Cristiane Schmidt, tem tido, a saúde fiscal do Estado ainda é frágil. Segundo a economista, enquanto a arrecadação com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) não cobrir a folha de pagamento, não haverá um equilíbrio saudável.
Mas é razoável avaliar que o paciente está em franca recuperação (basta lembrar a questão do déficit, que abriu esta análise). Medidas importantes de contenção dos gastos foram aprovadas na Assembleia Legislativa, como a atualização do estatuto dos servidores públicos, a reforma da Previdência estadual e projetos ligados à adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF).
Em relação a esse, cabe aqui um parêntese: ao conseguir liminar do ministro Gilmar Medes, do Supremo Tribunal Federal (STF), o governo conseguiu suspender o pagamento da dívida por nove meses. São, aproximadamente, R$ 180 milhões ao mês – o que totaliza algo como R$ 1,6 bilhão.
Para aderir definitivamente ao RRF, o que o governo vem tentando desde janeiro, foram aprovados projetos como os que permitem a privatização de estatais como a Celg Geração e Transmissão (Celg GT), a Indústria Química do Estado de Goiás (Iquego), a Agência Goiana de Gás (GoiasGás) e a Goiás Telecomunicações (GoiasTelecom). A expectativa é que as vendas sejam realizadas já a partir de 2020. O governo espera arrecadar R$ 1,5 bilhão (a joia da coroa é a Celg GT) e economizar R$ 100 milhões ao mês com a privatização dessas estatais.
Mais uma vez: todas as medidas são duras e exigem grande dose de sacrifício, especialmente dos servidores públicos, mas são necessárias para que o Estado não entre definitivamente em colapso, como o Rio de Janeiro, por exemplo. Somente o rombo na Previdência estadual é de R$ 2,9 bilhões. A reforma, inclusive, não é capaz de acabar com ele, mas conseguirá diminuir a sangria. Em dez anos, o governo de Goiás, por meio da GoiásPrev, estima economizar R$ 6 bilhões com pagamentos de aposentadorias e pensões – R$ 400 milhões somente no ano que vem.
Para conter o rombo, a reforma mexe fortemente com o funcionalismo. Aumentou-se a idade mínima para aposentadoria e criou-se um pedágio para quem está próximo a alcançá-la, entre outros pontos. São ações impopulares, repete-se, mas a alternativa a elas era deixar que o déficit continuasse aumentando até o momento em que não haveria recursos nem mesmo para pagar os salários dos servidores.
Não foi, contudo, apenas com os servidores públicos que Caiado teve de enfrentar desgastes em nome da organização das finanças do Estado. Mesmo antes de tomar posse, o democrata conseguiu dobrar parte do setor produtivo goiano e alterar alguns pontos dos incentivos fiscais concedidos para a indústria.
Mesmo com protestos de entidades que representam o setor, Caiado foi firme e elevou a arrecadação em cerca de R$ 800 milhões com a revisão temporária dos benefícios. Pode parecer muito, mas são apenas 10% de toda a renúncia fiscal que o Estado concede aos empresários, que é de cerca de R$ 8 bilhões – apenas o Amazonas, que tem a Zona Franca, supera Goiás nas concessões para empresas se instalarem ou se modernizarem.
A justificativa do empresariado é que os incentivos são o principal atrativo para empresas se instalarem e gerarem empregos em Goiás, que está fora dos grandes centros consumidores. É verdade. Contudo, vale a pena lembrar que os empregos gerados por esse tipo de política têm custo elevado. Um estudo do Instituto Mauro Borges (IMB), por exemplo, revela que uma vaga de trabalho chega a custar R$ 6 milhões em renúncia fiscal.
Além disso, os programas Fomentar e Produzir não conseguiram diminuir as desigualdades regionais, um dos pilares de qualquer projeto do tipo. Isso ocorre porque a maioria das indústrias beneficiadas se concentra nas regiões mais desenvolvidas de Goiás, como o Centro, Sul e Sudoeste. Por fim, o estudo do IMB não encontrou dados suficientes para comprovar que essas políticas tiveram impacto substancial na criação de postos de trabalho com carteira assinada.
Abrir mão completamente dos incentivos, porém, não é estratégia certeira para um Estado periférico como Goiás – ainda que ele cresça continuamente mais que a média nacional. O PróGoiás, elaborado pela equipe econômica do governo do Estado, busca equilibrar essa balança: conceder os incentivos em um patamar que seja atrativo para o empresariado ao mesmo tempo em que não compromete a arrecadação.
Essa discussão ficou para 2020. A expectativa do governo é incrementar em R$ 1,5 bilhão a arrecadação com impostos com o PróGoiás. É muito dinheiro, mas ainda pouco diante de todo o montante concedido em incentivos. Mas, mesmo sem o PróGoiás, o governo obteve uma importante vitória ao prorrogar o fundo Protege para o ano que vem.
Base aprova temas polêmicos na Assembleia Legislativa
Além do ajuste nas contas, que ainda tem um longo caminho pela frente, o governador Ronaldo Caiado pode esperar um 2020 com uma relação mais clara com a Assembleia Legislativa. Em entrevistas, o presidente da Casa, Lissauer Vieira (PSB), tem reforçado o “alinhamento” entre os poderes Legislativo e Executivo.
Ao Jornal Opção, Lissauer lembrou que o ano foi de votações difíceis, com matéria de interesse do governo. Ele citou, como exemplos, a aprovação da reforma da Previdência e as modificações no Estatuto dos Servidores. Das pautas evidentemente impopulares, mas consideradas necessárias para o ajuste das contas públicas – basta lembrar que mais de 90% de tudo que é arrecadado pelo Estado são revertidos em despesas correntes, entre elas, salários e aposentadorias.
Outras matérias polêmicas propostas pelo Pode Executivo foram aprovadas pela Assembleia. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que inclui a Universidade Estadual de Goiás (UEG) nos gastos obrigatórios com educação (25% da receita corrente líquida) é uma delas.
A votação desses textos comprova que Caiado termina o ano com uma base sólida na Assembleia Legislativa. Ainda que um ou outro deputado da base governista tenha votado contra alguns deles, o fato é que o democrata conseguiu aprova-los.
Nada mau para quem começou o mandato perdendo a eleição para a presidência da Casa. Hoje demonstrando relação harmônica com o governador, Lissauer Vieira teve de derrotar o candidato governista, deputado Álvaro Guimarães (DEM), na disputa. Nos primeiros meses, o governo teve, inclusive, de retirar projetos polêmicos, como o que revia os critérios para concessão do Passe Livre Estudantil.
Ao longo do ano, a articulação do governo no Legislativo foi se azeitando. Deputados que foram da base de Marconi Perillo (PSDB) e José Eliton (PSDB) passaram a votar constantemente com o democrata.
Essa força será colocada à prova quando o governo decidir aderir, definitivamente, ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF). Como é um programa que impõe uma série de restrições orçamentárias, será um teste para a coesão da base, o que deve ocorrer ainda no primeiro semestre do ano que vem.