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Visto com olhos um pouco mais atentos, a ilusão com o deputado linha dura se dissolve praticamente por si. Um personagem que encanta os incautos, mas é apenas mais uma fraude travestida de salvador da pátria

Jair Bolsonaro, vestido de “Bolsomito” e carregado pelo lutador Wanderlei Silva (à esquerda): chegada triunfal do salvador da pátria que só pode ser Messias no nome
Jair Bolsonaro, vestido de “Bolsomito” e carregado pelo lutador Wanderlei Silva (à esquerda): chegada triunfal do salvador da pátria que só pode ser Messias no nome

Elder Dias

O ano é o já distante 1987. Mês de outubro. Cidade: Rio de Janeiro. O presidente: José Sarney, no primeiro governo civil após 21 anos de ditadura e já então combalido após dois anos e meio de mandato. Moeda: cruzado. Plano econômico: Bresser, que caminhava para se juntar ao fracasso dos malfadados Cruzado e Cruzado 2 na tentativa de controle da carestia galopante — aquele ano fecharia com módicos 363,41% de inflação. Para quem não viveu esse tempo hoje surreal é difícil imaginar, mas pense como seria se o litro da gasolina fechasse este ano valendo algo em torno de R$ 16,20. Ou mais.

Esse é o contexto em que, pela primeira vez, o protagonista deste artigo aparecerá como destaque nacional, estrelando páginas da revista semanal mais lida do País naquela época assim como hoje em dia, a “Veja”. Era a edição 999 da publicação e o título “Brasil: ordem desunida” expunha fatos relativos a protestos de militares contra seus baixos salários. Entre as formas de se manifestar, a reportagem relatava risco de ações pouco ortodoxas para a rígida disciplina dos quartéis. Algo como explodir bombas de baixa potência em instalações do Exército na Vila Militar, na Academia Militar de Agulhas Negras e em alguns quartéis. O objetivo da tática de guerrilha era causar ferimentos morais apenas — no então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves.

Na preparação dos atentados estava nosso protagonista, bastante conhecido por acusar de “terrorismo” seus adversários da esquerda: o então jovem capitão Jair Messias Bolsonaro. No ano anterior, descontente com o salário dos militares, ele já havia feito pouco caso da hierarquia militar para publicar, na mesma “Veja”, um artigo atacando os baixos vencimentos da tropa. Duas consequências: acabou preso e virou fonte da revista na caserna.

Foi assim que, no ano seguinte, a repórter Cássia Maria o procurou, na Vila Militar (zona norte do Rio) quando outro capitão, capitão Saldon Pereira Filho, também foi detido, pelo mesmo motivo. Aos 32 anos, Bolsonaro já era desbocado e cometeu um erro crasso: achar que existia uma cláusula pétrea de respeito ao “off” no jornalismo. Ora, nenhum repórter tem compromisso de segurar uma informação se ela lhe for mais necessária do que seu informante.

Assim, ao lado de um colega também capitão, ele abriu o jogo para Cássia sobre a “explosão de algumas espoletas” em breve nas unidades militares. Sem deter a língua, fez um detalhamento dos atos que iriam cometer, visando arranhar a respeitabilidade do então ministro diante da tropa. Mais do que isso, o capitão repassou à repórter um desenho que fizera à mão com um plano de instalar uma bomba na Adutora do Guandu, que abastecia de água o Rio de Janeiro. Parecia justo para ele: como resposta ao soldo baixo, a sede para milhões de cariocas.

A jornalista tinha agora, ela mesma, uma “bomba” nas mãos, embora de sentido figurado. E precisava escolher entre ser fiel à fonte ou à informação. Não hesitou pela segunda opção, obviamente. Chamados pelo ministro a darem explicações, o capitão e seu colega negaram peremptoriamente a versão da revista, que, porém, referendou as informações na edição seguinte, com uma carta na manga: o croqui feito pelo próprio Bolsonaro. A história foi confirmada pelo próprio Exército meses depois, como resultado de investigação. Com o caso levado ao Superior Tribunal Militar (STF), muitos apostaram que ele seria expulso das Forças Armadas. Mas o oficial fazedor de bombas já tinha surfado na popularidade da época e sido eleito vereador, depois deputado federal. Os militares e suas famílias, a partir de então, o carregariam no colo e nas urnas por defender seus salários e pensões.

Desde 1990, Jair Bolsonaro ganhou vaga cativa em Brasília. É sempre um dos deputados cariocas mais votados. Em 2014, teve quase meio milhão de votos dos cariocas. Desde seu início na política, aprendeu a capitalizar com seu jeito linha dura, a ponto de não mais se saber mais se ele acredita no tipo que faz ou se só o faz por ser o tipo que lhe dá o ganho eleitoral. E é com esse protótipo de si mesmo que, na última semana, após trocar o PP pelo PSC, foi lançado pré-candidato à Presidência da República. Algo para daqui a dois anos e meio ainda, mas que já causou alvoroço em eventuais eleitores.

“Falam muita coisa dele, mas o que vejo é um político coerente.” Está aí uma frase cujas variações vêm sendo bastante repetidas por seus simpatizantes. Um público que não tem nada a ver com seu eleitorado tradicional — são jovens de até 35 anos que não tiveram a oportunidade de viver o período exaltado por Bolsonaro como o melhor da história brasileira: os governos de exceção dos generais militares, inclusos de forma especial os anos de chumbo (1968-1974).

Coerente?

Em 1987, a revista “Veja” provou que Bolsonaro mentiu ao negar conspiração contra o então ministro do Exército
Em 1987, a revista “Veja” provou que Bolsonaro mentiu ao negar conspiração contra o então ministro do Exército

A fama de “coerente” que permeia o deputado — e que serve para quem o defende buscar salvá-lo das críticas por seus ataques desmedidos a pessoas e etnias —também pode ser (e deveria ser) prontamente questionada com um pouco de pesquisa nos sites de busca. Autor de frases recheadas de preconceito, principalmente racial, Bolsonaro já teve seu momento de denunciar o racismo. E seu alvo foi o mesmo Leônidas Pires, na mesma inconfidência em “off” à repórter Cássia Maria: “Temos um ministro incompetente e até racista.”

Muito tempo depois, em janeiro de 2012, o parlamentar Jair Bolsonaro foi pego em flagrante novamente atuando fora da lei, agora não mais a dos quartéis: ele pescava em um barco na área da Estação Ecológica de Tamoios (Esec Tamoios), em Angra dos Reis (RJ), uma unidade de conservação federal de proteção integral. A ocorrência resultou em muito mais do que uma multa de R$ 10 mil por descumprir a legislação federal. Bolsonaro, que ainda não era “Bolsomito”, tentou três “carteiradas” em sequência: primeiro, buscando impor sua autoridade de deputado diante dos fiscais; depois, ligando e solicitando interferência ao petista e então ministro da Pesca, Luiz Sérgio, ex-prefeito de Angra, que o aconselhou a deixar o local; por fim, impetrou um mandado de segurança na Justiça Federal para obter autorização individual para poder praticar pesca amadora dentro da mesma reserva. Algo sem noção, insano e obviamente negado.

Não conseguindo impor sua autoridade de alguma forma — nem de forma alguma — no episódio, talvez não tenha sido por coincidência então que, meses depois, o deputado que vocifera contra o Estatuto do Desarmamento entrasse com um projeto de lei exigindo o desarmamento — dos fiscais ambientais. Pelo projeto de decreto legislativo (PDC) 916/13, Bolsonaro pretendia proibir aos agentes de fiscalização ambiental o uso de armas de fogo. Obviamente, a proposta foi rejeitada.

Para terminar a mostra de incongruências, vale registrar o apoio irrestrito do deputado militar da extrema-direita a um… comunista. Em 2002, depois de Lula obter sua primeira vitória nas urnas, Jair Bolsonaro fez lobby na Granja do Torto para que o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) fosse nomeado pelo presidente eleito — a quem apoiou no segundo turno, contra José Serra (PSDB). A pasta em questão era o Ministério da Defesa. Em matéria da “Folha de S. Paulo” de 19 de dezembro de 2002, aparece um Bolsonaro “paz e amor” dizendo que “as coisas mudaram” e não era estranho um representante histórico da direita trabalhar em favor de um esquerdista. Nem mesmo se fosse para comandar as Forças Armadas.

Bolsonaro também não costuma ser um fiel cumpridor das regras republicanas contra o patrimonialismo. Em agosto de 2003, noutra reportagem da mesma “Folha de S. Paulo”, foi incluído no rol dos “deputados com familiares em cabide da Câmara”. A matéria denunciava os parlamentares adeptos do nepotismo. Nosso protagonista tinha seu filho ocupando um posto não concursado, chamado de “Cargo de Natureza Especial”.

Até 2011, quando virou estrela nacional no programa “CQC”, da Band — questionado pela cantora Preta Gil sobre o que faria se seu filho se relacionasse com uma mulher negra, declarou “eu não corro esse risco, meus filhos foram muito bem educados” —, Bolsonaro era pouco mais que uma excentricidade no Congresso. Alguém com ideias estapafúrdias que, por serem o que eram, nunca seguiam adiante, esbarrando sempre em falta de constitucionalidade ou de pertinência — a propósito, ele conseguiu aprovar seu primeiro projeto de lei no ano passado, após 25 anos na Casa.

Em vez de ser repreendido por suas declarações radicais e de gosto totalmente duvidoso, desde então sua popularidade só aumenta. Como explicar que, quatro anos depois da infelicidade com Preta Gil, esse capitão da reserva do Exército tenha sido elevado de integrante do baixo clero na Câmara a “Bolsomito”?

É fato é que a figura dele nunca esteve tão popular. A internet, com certeza, tem boa responsabilidade no caso. O hoje sexagenário Jair Messias Bolsonaro, na verdade, é um meme bem sucedido e de carne e osso. Combina como poucos com a rapidez e a superficialidade do mundo das redes sociais, no qual, contraditória e ironicamente, a grande maioria dos que o admiram não foi, até agora, capaz de pesquisar a vida daquele que já elegeram seu candidato à Presidência em 2018. Digitar “quem é Jair Bolsonaro” bastaria para levar a uma série de artigos tenebrosos — como o que expôs a história de flerte com o terrorismo que abre este artigo.

Claro, o “Bolsomito” tem explicação. Afinal, um meme só pode ter tal sucesso se houver condições de produção para tanto. E isso tem relação direta com a falta de perspectivas no cenário brasileiro. Quem vota em Jair Bolsonaro não consegue enxergar saída no que está posto pela política tradicional. É uma forma mais moderna de eleger o rinoceronte Cacareco, que, em 1959, teve cerca de 100 mil votos para vereador em São Paulo (o voto era em papel e o cidadão escrevia o nome de seu candidato na cédula eleitoral). Foi o que aconteceu com os fenômenos Enéas, em 2002, e Tiririca, em 2010, para o Congresso. Uma forma de dizer “pior que está não fica”.

O problema, agora, é um pouco mais sério. A decepção com a política é tanta que parte da população quer exportar a “brincadeira” do Legislativo para o Executivo. Com o PT desacreditado pela exposição de casos de corrupção e com o PSDB conseguindo a proeza de não se mostrar uma alternativa viável a esse quadro, o meme divertido vai ganhando adeptos.

Na semana passada, ocorreu novamente uma cena que vem se tornando rotineira com Jair Bolsonaro: ao chegar ao Paraná para cumprir agenda, ele foi carregado nos braços de populares, instigados pelo lutador de MMA Wanderlei Silva (o mesmo que ano passado, em Goiás, fez um vídeo diante do inacabado Centro de Convenções de Anápolis para criticar o “desrespeito ao dinheiro público” por parte da presidente Dilma Rousseff — a obra é do governo estadual). Ovacionado como “mito”, recebeu um par de óculos escuros para se adequar ao figurino de outro meme, o hit “Turn Down For What”.

Para desconstruir Bolsonaro, é preciso passar ao largo das declarações homofóbicas, racistas e preconceituosas em geral. Essa via não frutifica. O foco não está no discurso que profere, mas em suas ações. Observando o passado, pouco sobra de sua fantasia de “político diferente”. Basta o olhar buscar as situações para ver que Jair Bolsonaro se porta exatamente como os parlamentares que o brasileiro médio critica: é alguém que tenta usar sua autoridade para ficar acima da lei (como no caso da pescaria em local estritamente proibido); é alguém que usa a política para dar emprego a seus parentes (caso de seu filho na Câmara); é alguém que se molda à conveniência do momento (caso da nomeação de Aldo Rebelo); é alguém capaz de fazer tudo para conseguir o que quer sem medir o prejuízo à coletividade (caso do plano das bombas nas instalações militares e na adutora de abastecimento de água do Rio).

No fim, Jair Bolsonaro é mais do mesmo. É uma reinvenção do personalismo na política, daquela figura que virá para redimir toda a Nação. Esse filme já foi visto com Fernando Collor, o caçador de marajás; também o “homem de partido” Lula se fez maior do que qualquer projeto coletivo e, após vencer o medo, a esperança virou desilusão. Ainda que carregue Messias no nome, o “Bolsomito” é apenas mais uma fraude travestida de salvador da pátria.