Aos 25 anos, ECA não está plenamente em vigor
01 agosto 2015 às 12h32

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Precariedade dos Conselhos Tutelares é talvez o ponto de maior fragilidade para que o Estatuto da Criança e do Adolescente esteja em efetivo funcionamento

Cezar Santos
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 25 anos no diz 13 do mês passado. Esse dispositivo é a lei que cria condições de exigibilidade para os direitos da criança e do adolescente, que estão definidos no artigo 227 da Constituição Federal. O caput do artigo 227 da Constituição, por sua vez, diz: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao lazer e à profissionalização, à liberdade, ao respeito, à dignidade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Mas, afinal, o ECA melhorou a situação das meninas e meninos brasileiros ou é apenas um texto cheio de boas intenções, sem ter produzido efeitos práticos?
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Os avanços são significativos, não há dúvida. Os números mostram isso. Após a sanção do Estatuto, o Brasil conseguiu reduzir em 24% as mortes de crianças antes de 1 ano de idade. A Agência Brasil, órgão de imprensa do governo federal, divulgou que levantamento feito pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), com base em dados do Ministério da Saúde, apontou que a taxa passou de 50 para cada mil crianças nascidas vivas, no final da década de 1990, para 12 atualmente. O número se aproxima do previsto pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que são 10 mortes para cada mil nascimentos.
Segundo o coordenador do Programa Cidadania dos Adolescentes do Unicef, Mário Volpi, no tema mortalidade infantil, o Brasil fez um grande avanço e o [ECA] salvou a vida de muitas crianças, garantindo seu desenvolvimento. A redução da mortalidade infantil deve-se às previsões do estatuto, que tratam do direito à saúde, do atendimento à gestante, da prioridade que deve ser dada à saúde da criança, ao pré-natal e aos cuidados no pós-parto.
Já na educação, conforme dados do Ministério da Educação (MEC), mais de 98% das crianças estão matriculadas no ensino fundamental e 85% dos adolescentes têm acesso ao ensino médio. Esse aumento quantitativo se deu exatamente em razão da atuação dos conselhos tutelares, criados pelo estatuto, das entidades da sociedade civil, que exigiram as vagas com base no que prevê o ECA quanto ao dever do Estado de garantir a educação para essa parcela da população.
Conselhos tutelares

Os conselhos tutelares são fundamentais para o efetivo cumprimento do ECA, pois são os principais órgãos criados pela lei para fiscalizar os direitos da criança e do adolescente. Alguns conselhos não têm computadores, não têm acesso à internet ou não têm salas privativas para atender adequadamente às famílias e às crianças e aos adolescentes. E em Goiás, uma das pessoas que mais conhecem a realidade dos conselhos tutelares é o deputado estadual Carlos Antonio (SD), presidente da Comissão da Criança e Adolescente (CCA) da Assembleia Legislativa.
Nesse trabalho, desde 2011, o parlamentar fez visitas técnicas a cerca de 150 municípios goianos, para verificar as condições de funcionamento dos conselhos tutelares locais. São vistoriados itens como estrutura física e de pessoal, condições de trabalho (equipamentos e transporte), o trabalho da rede de proteção à criança e ao adolescente no município, os casos que geram maior número de atendimento e os de violação de direitos. O que Carlos Antonio tem visto é efetivamente um quadro de precariedade.
“Em muitos locais faltam as mínimas condições para funcionamento dos conselhos. Isso é um grande complicador para o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente. A principal ferramenta para o cumprimento do ECA são os conselhos tutelares, os fiscais da aplicação do Estatuto. Mas os conselheiros não contam com a estrutura necessária nos municípios para poder exercer bem esse papel de fiscalizadores do cumprimento do ECA”, diz Carlos Antonio.
Avanço, mas…

A promotora de Justiça Karina D’Abruzzo, coordenadora do Centro de Apoio Operacional à Infância e Juventude, do Ministério Público de Goiás, afirma que o próprio conselho tutelar é um grande avanço, porque antes do ECA não havia essa figura. “Hoje eles existem, mas precisam ser mais bem equipados. Neste ano vai haver uma eleição unificada de seus integrantes, justamente para tentar dar uma visibilidade nacional, para que todos reconheçam a importância desse órgão. Tivemos avanços não só em tese como na prática, mas estamos muito aquém do que esses 25 anos de ECA ensejam.”
O deputado Carlos Antônio diz que o ECA é uma lei completa, que veio para garantir direitos, só que na prática, esses direitos não estão de fato assegurados. Falta o cumprimento integral desse dispositivo. “A lei em si é perfeita, pena que a sociedade não tenha conhecimento do ECA. Por exemplo, quando o menor comete infrações, o Estatuto estabelece punições, ao contrário do que muitos pensam. Outro exemplo, o ECA também estabelece punição para os pais que não assumem responsabilidades com seus filhos. Mas você nunca ouviu falar que um pai foi punido por omissão na criação dos filhos. E talvez o grande mal na situação das crianças hoje em dia esteja no fato de os pais não assumirem responsabilidade na criação delas.”
Karina D’Abruzzo destaca que o advento do ECA, substituindo o antigo Código de Menores, trouxe diversos aperfeiçoamentos em termos legislativos. “Foi um avanço, já que se trata de uma lei construída com base na Constituição Federal e nas convenções internacionais das quais o Brasil é signatário. É até referência internacional. Mas em termos práticos, infelizmente, não temos muito o que comemorar nestes 25 anos.”
A promotora afirma que as previsões normativas do Estatuto não foram ainda incorporadas pela sociedade de forma geral. “A sociedade não conhece ou conhece muito pouco o que consiste a previsão de que toda criança e adolescente é sujeito de direito, o que chamamos de doutrina da proteção integral, a bandeira mestre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Antes, no Código de Menores, havia a doutrina da situação irregular. E o não conhecimento do ECA leva a interpretações rasas, o que dificulta entender que se trata de uma lei boa que, apesar disso, ainda não foi posta efetivamente em prática, seja pelo desconhecimento das pessoas, que talvez por isso não acreditam, seja por falta de vontade política e social.”
Falta interesse político
Karina D’Abruzzo analisa que a falta de vontade política do Poder Público se explicita, por exemplo, quando a lei precisa de diversas políticas públicas traduzidas em direitos assegurados às crianças e aos adolescentes, mas essas não são efetivamente implementadas. “Em termos práticos, desde a estrutura inadequada de um dos principais órgãos na área da infância e da juventude, o conselho tutelar, assim como o não interesse em fomentar a efetiva implementação dos conselhos municipais de direitos das crianças e adolescentes. Esses são órgãos importantíssimos na política pública infantojuvenil.”
Ela lembra que os integrantes dos conselhos municipais não são remunerados, é um trabalho voluntário, expressamente previsto no Estatuto, então as pessoas não têm interesse. “Quem está ali foi indicado por prefeito ou pela sociedade civil organizada, desconhece o seu papel e consequentemente não o exerce a ponto de articular a rede de proteção às crianças e adolescentes no município. Precisaria haver investimento nesses dois órgãos em particular, porque eles atuam não só nos casos concretos, mas podem trabalhar com as informações desses casos para traduzir isso para o poder público e para a sociedade, nas necessidades das políticas públicas locais.”
A promotora reafirma a necessidade de investimentos na área da infância e da juventude. “Costumo dizer que muitos dos nossos problemas nessa área se resolvem com verba, para que se trabalhe na prevenção e em outras políticas públicas para evitar o que ocorre, por exemplo, no baixíssimo nível de escolaridade, no envolvimento com drogas e atos infracionais. Tudo isso é um retrato da não implementação plena do ECA.”
Redução da maioridade não seria necessária

O aniversário do ECA se dá num momento em que um dos temas mais em evidência é a redução da maioridade penal, o que muitos consideram como uma declaração de fracasso do Estado brasileiro em tratar de suas crianças e adolescentes. Aliás, a Câmara dos Deputados aprovou, no início de julho, o novo projeto de redução da maioridade penal. O texto determina que maiores de 18 anos respondam como adultos quando participarem de crimes hediondos, como estupro, sequestro, latrocínio, homicídio com intenção de matar e lesão corporal seguida de morte.
A emenda diz ainda que nesses casos, eles cumprirão pena em estabelecimentos separados dos maiores de 18 e dos menores e que o governo federal e os Estados serão os responsáveis por construir esses locais. A proposta foi aprovada em primeiro turno e ainda terá de passar por outras votações no Congresso.
Para a promotora Karina D’Abruzzo, a simples discussão da redução da maioridade penal é como assinar o atestado de incompetência do Brasil em nossa ter feito o ECA funcionar. “E quando se diz isso, costuma-se apontar o dedo para o Poder Público. Claro que o Poder Público tem sua responsabilidade, mas a sociedade também tem, está na Constituição Federal. Não temos bola de cristal, mais é bem possível que se o ECA estivesse em pleno funcionamento, a sociedade brasileira não estaria agora discutindo redução de maioridade penal.”
Por sinal, há uma corrente de pensadores que dizem que redução da maioridade penal de 18 para 16 anos abre precedente para uma reinterpretação do ECA. Seria como “revogar” o ECA em relação à proteção de adolescentes entre 16 e 17 anos, abrindo espaço para a interpretação de que aqueles entre 16 e 17 anos, por terem a maioridade penal, não seriam mais sujeitos à proteção especial.
À Agência Brasil o procurador federal aposentado Edson Sêda, um dos redatores do texto do ECA aprovado pelo Congresso em julho de 1990, disse que as discussões sobre a redução da maioridade penal poderiam ser evitadas se o ECA, sancionado no dia 13 de julho de 1990, fosse cumprido em sua totalidade. “Temos uma série de princípios que não se aplicam, por exemplo, os programas socioeducativos. Há 25 anos que está faltando competência técnica e gente especializada nesse assunto. Então, não é para mudar a lei, mas a realidade.”
Barril de pólvora

A ex-deputada Rita Camata (PSDB-ES), que foi relatora do ECA na Câmara dos Deputados, disse que reduzir a maioridade penal é “acender um barril de pólvora”. Ela lembrou que o estatuto prevê punição para o adolescente infrator a partir dos 12 anos de idade. “Há uma grande confusão por parte dos que defendem a redução. Eles acham que o estatuto que impede [a punição dos adolescentes]. Mas o estatuto prevê que o adolescente seja responsabilizado a partir dos 12 anos.”
O presidente nacional da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Everaldo Patriota, afirmou que nas últimas duas décadas e meia, o Brasil criou uma “equação terrível” na política de prevenção e de ressocialização dos jovens. “Nós não cumprimos o ECA e agora estamos tratando dos efeitos e esquecendo a causa. A sociedade toda está tomada por uma paranoia de insegurança coletiva, mas o que foi que fizemos com nossas crianças e adolescentes? Não cuidamos delas e agora vamos criminalizá-las?”.
Para Edson Sêda, a sensação de impunidade para o adolescente infrator decorre da falha de prefeituras e de governos estaduais e federal na execução das medidas de privação de liberdade e de liberdade assistida. “A lei manda controlar, mas não controlam. Manda fiscalizar a liberdade assistida, mas não se fiscalizam. O menino que deveria estar em liberdade assistida anda com uma faca, comete um crime, mas a culpa não é do estatuto, mas sim de quem não observou as regras.”
Um dos redatores do ECA, Sêda lembrou que o estatuto prevê acompanhamento e punição ao jovem infrator não apenas até os 18 anos, mas aos 21 anos. “A lei não manda soltar o menino aos 18 anos nem apenas depois de três anos de internação. Ela fala que a liberdade compulsória ocorre aos 21 anos e que a liberdade assistida também deve ocorrer até os 21.”
Mas o endurecimento da punição a menores infratores é defendido por alguns. Também ouvido pela Agência Brasil, o promotor de Justiça, Infância e Juventude do Distrito Federal Anderson Pereira de Andrade, que há 30 anos atua na área da criança e do adolescente, disse que é necessário aumentar o tempo de internação, previsto no ECA, para o jovem infrator. Para ele, o estatuto deveria tratar da promoção e proteção dos direitos e outra legislação abordaria questões relacionadas à responsabilização.
Andrade explicou que, se o adolescente cometesse um homicídio, por exemplo, ele estaria sujeito a uma pena mais dura, mas por tempo menor, com conteúdo mais reeducativo e em uma instituição diferenciada em relação ao adulto. “Acho que isso ajudaria muito e sinalizaria para a sociedade e para o próprio adolescente que essa responsabilidade agora é penal. Ao mesmo tempo em que endureceria a pena naqueles delitos mais graves, garantiria mais direitos ao adolescente, direitos processuais, que hoje o estatuto não garante.”
O deputado Carlos Antonio, presidente da Comissão da Criança e Adolescente da Assembleia Legislativa de Goiás, também defende um endurecimento na punição ao menor infrator. Ele diz que até concorda com a redução penal nos casos de crimes hediondos, como foi aprovada na Câmara. Mas como o tema tomou um tom passional, Carlos Antonio não acredita que a matéria passe no segundo turno de votação.