Consultados pelo Jornal Opção, políticos, profissionais do Direito e acadêmicos afirmam que Corte cometeu erros ao atropelar texto da Constituição

Em momento de divisão no STF, autorizar prisão sem trânsito em julgado coloca em xeque independência da Corte | Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Desde o início da ma­dru­gada de quinta-fei­ra, 5, fi­cou ainda mais evidente que o Brasil polarizado está ainda mais dividido entre os que enxugam as lágrimas ao soltar com voz embargada o gri­to “Lula ladrão roubou meu co­ração” no lado oposto da comemoração passional daqueles que vociferam “Lula ladrão seu lugar é na pri­são”. O cenário requentado das ma­nifestações pró-impeachment e con­trárias ao afastamento da ex-pre­sidente Dilma Rousseff (PT) foi re­editado com o final do julgamento do pedido de habeas corpus preventivo feito pela defesa do ex-che­fe do Executivo nacional e pré-candidato à cadeira no Palácio do Pla­nal­to, Luiz Inácio Lula da Silva, tam­bém condenado em segunda ins­tância por corrupção e lavagem de dinheiro.

Na visão dos profissionais de di­­ver­sas áreas ligadas às esferas ju­rídica, política e acadêmica ouvidos pe­lo Jornal Opção, o problema evidenciado na decisão do Supremo Tri­bunal Federal (STF) depois de qua­se 11 horas de julgamento que ne­gou o habeas corpus preventivo e autorizou a prisão de Lula com o es­gotamento dos recursos na se­gun­da instância, o Tribunal Re­gi­o­nal Federal da 4ª Região (TRF-4), em Porto Alegre (RS), começa pelo ce­nário de divisão entre os 11 mi­nis­tros da Suprema Corte brasileira: 6 a 5.

O mais moderado deles é o ex-de­putado federal, que foi professor de Direito Constitucional da Uni­ver­sidade Federal de Goiás (UFG) e preside o PSD goiano. Vilmar Ro­cha diz entender que a sentença di­vi­dida do STF ao negar o habeas cor­pus a Lula fez com que a Corte per­desse a condição de ser uma instituição moderadora na estrutura dos poderes no Brasil. “Mas o Supre­mo não poderia tomar decisão di­ferente. A mudança geraria instabilidade jurídica e política por alterar um entendimento de 2016 do Tri­bunal.”

O presidente do PSD afirma que, com o resultado e a prisão de­cre­tada pelo juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal Criminal de Cu­ri­ti­ba (PR), mesmo que o PT insista que Lula será o candidato a presidente e que ninguém possa impedir al­guém de se dizer pré-candidato, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não deve permitir que um condenado preso seja apto a receber votos na eleição. “O nome dele não vai es­tar na urna”, avalia.

Erro

Para o advogado eleitoral Dyo­go Crosara, o STF errou ao descumprir o artigo 5º da Consti­tui­ção Fe­deral, que “é muito claro”: um réu só é considerado culpado após o trânsito em julgado, que só ocorre após esgotarem-se os recursos na ter­ceira instância – no Supremo ou no Superior Tribunal de Justiça (STJ). “Quem reescreve a Carta Mag­na é o Legislativo.” Cro­sara diz que o momento é mui­to incerto com a decisão do Su­pre­mo. “A mi­nis­tra Rosa Weber, que votou de ma­neira colegiada contra o habeas cor­pus, deixou evidente que ao analisar as ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) decidirá de acor­do com sua interpretação pessoal como magistrada”, lembra.

A situação criada pela Corte Su­pre­ma é tão grave que hoje, mesmo pre­so, Lula pode ser candidato, descreve o advogado. “O que resta sa­ber é se o pedido de candidatura se­rá deferido pelo TSE.” Fora a situação de Lula nos seis meses que an­te­cedem a eleição, Crosara diz que o Supremo “joga para a plateia” em suas decisões na história recente. “Es­te é o momento mais turbulento da democracia brasileira desde a mor­te de Tancredo Neves (21 de abril de 1985)”, lamenta.

Professor de Direito Penal da UFG e advogado criminalista, Pe­dro Paulo de Medeiros afirma que era esperado o resultado do julgamento em 6 a 5. “Só não sabíamos pa­ra qual lado”, observa. Como lem­bra Crosara, Medeiros também diz que é preciso esperar que as ADCs 43 e 44 sejam analisadas pe­lo Supremo para entender como fi­ca­rá a situação de Lula na Corte. “Cabe ao STF fazer interpretação da Constituição, é direito dele interpretar a lei, mas qualquer advogado tem de defender a Constituição e a in­terpretação literal da Carta Mag­na, que define a prisão depois do trân­sito em julgado.”

Medeiros ressalva que no mo­men­to Lula está inelegível, deve cum­prir a pena, mas só saberemos se o ex-presidente será candidato depois de registrar a candidatura no TSE. “No processo criminal, se Lula conseguir uma tutela pro­visória para sustar os efeitos da condenação no STJ ou STF, conseguirá estar apto a estar na urna”, ex­pli­ca. O advogado criminalista la­men­ta que parte dos ministros do Su­premo tenha passado a ouvir a opinião pública ao embasar seu posicionamento nos processos analisados pela Corte. “Os magistrados têm de escutar a voz da lei”, afirma.

Procurador de Justiça e ex-senador cassado, Demóstenes Torres (PTB) descreve que uma decisão do STF por 6 a 5 ou 7 a 4 é passível de re­visão. “Com a mudança de posição de Rosa Weber nas ADCs, nas quais ela tende a voltar ao entendimento anterior sobre o princípio da pre­sunção de inocência, o posicionamento do Supremo deve ser mo­di­ficado.” Demóstenes lembra que o cumprimento da prisão contra Lu­la, decretada por Moro, pode ser re­vertida nos próximos meses.

“Os ministros estão agindo co­mo legisladores, julgam do jeito que que­rem. A lei deixou de ser regra e pas­sou a ser referência. Que segurança jurídica terá qualquer cidadão se a lei não é cumprida?” O questionamento do petebista, que é fa­vo­rável à prisão após condenação em segunda instância, se justifica por Demóstenes avaliar que “a cada ho­ra há um entendimento diferente do Supremo”. “Para que a prisão se­ja decretada após um réu ser considerado culpado em segunda instância, é preciso que se mude a Cons­tituição. Lamento que o STF tenha caído na armadilha que ele mes­mo criou”, observa.

“Golpe consolidado”

O deputado estadual Luis César Bu­eno (PT) diz que a decisão do STF e a prisão decretada contra Lu­la significam que o “golpe iniciado com o impeachment de Dilma está sen­do consolidado com o a retirada do ex-presidente das urnas”. “Lula foi condenado em um processo eivado de erros, por um apartamento que não é dele, que envolve dívidas de uma empreiteira com a Cai­xa”, afirma. Para o petista, a sentença do Supremo, principalmente o voto da presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia – que desempatou o julgamento – foi política. “O STF deveria ter analisado o mérito.”

Luis César Bueno diz que Lula só deixará de ser candidato se tiver seus recursos no processo do tríplex negados pelo STJ e Supremo. “Acre­ditamos que o ex-presidente se­rá inocentado na análise do mérito. Não temos como confiar em uma decisão capenga.” Para o de­pu­tado, mesmo que o petista esteja na cadeia, ele terá condições de eleger quem por ele for apoiado, mes­mo que a distância.

“A forma como vem sendo conduzido o processo tem se dado de ma­neira conturbada há muito tem­po”, opina o cientista político e pro­fessor da Pontifícia Univer­si­da­de Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Malco Camargos. Para o acadêmico, a atenção especial dada aos prazos no caso tríplex tem tomado for­ma de algo mais rígido do que o ha­bitual. “Na minha interpretação, a mudança de entendimento de um dos magistrados coloca dúvidas sobre a decisão tomada pelo Su­pre­mo.”

Crítico de como se deu o voto de Cármen Lúcia, Camargos descreve o desempate do julgamento do habeas corpus preventivo de Lu­la como um “resquício da concentração da agenda e da decisão à pre­sidente da Corte”. “Se ela foi in­di­cada pelo próprio petista e votou con­tra Lula, há duas intrepretações a serem feitas: o PT não conseguiu man­ter esse vínculo por incompetência de articulação ou foi ético ao pon­to de pagar o preço por não ter man­tido certa influência sobre os mi­nistros que escolheu”, observa.

Para o cientista político, a vontade da maioria da população deve ser manifestada nas eleições com o vo­to a cada quatro anos, não por meio do entendimento dos ministros do Supremo. “Dos três poderes, o Judiciário é o único que, por não ser escolhido eleitoralmente, de­veria se manter independente pa­ra que haja a garantia da existência de órgãos democráticos.” De acordo com Camargos, o momento de ins­tabilidade e polarização política de 2018 começa em 2014, quando o senador Aécio Neves (PSDB-MG) per­de nas urnas e suspeita do resultado eleitoral na Justiça ao ­questionar a vontade popular. “Na­que­le momento o Execu­tivo foi desmoralizado, depois veio o descrédito com o Legislativo e ago­ra o Judiciário é o alvo da população.”

Insegurança eleitoral

Professora da Universidade Fe­de­ral de Minas Gerais (UFMG), a ci­entista política Helcimara Telles afir­ma que todas as decisões têm sido politizadas no Brasil. “O Ju­di­ci­ário não pode ouvir o clamor das ruas ou o Twitter de um general do Exército”, diz em referência as de­cla­rações do comandante Eduardo Vil­las Bôas na véspera do julgamento do STF. De acordo com Hel­cimara, como se trata do processo que envolve um ex-presidente, é preciso tomar cuidado para os efeitos que a decisão sobre o caso po­dem trazer. “O Supremo não pres­ta conta, não é controlado por nin­guém, deveria ser imparcial. E a Cor­te está se colocando no lugar de representante do povo ultrapassando suas funções, ocupando o vazio dei­xado pelo Legislativo no lugar da po­lítica”, declara.

Em um cenário eleitoral muito frag­mentado, com a possibilidade de serem muitos os candidatos a pre­­sidente, a professora da UFMG ob­­serva que a insegurança eleitoral de ter Lula eleito preso, retirado do se­­gundo turno por um impedimento jurídico ou a foto do petista apar­ecer na urna sem ele como can­didato são situações que po­dem trazer incertezas para as eleições. “Os pro­cessos eleitorais precisam ter le­gi­timidade.”

Sobre a discussão se há ou não um golpe em curso no País, como de­fendem filiados do PT e simpatizantes de Lula, a cientista política diz que é uma interpretação possível ou não. “Se acreditarmos que houve um gol­pe, imaginava-se que a sangria se­ria estancada com a recuperação da economia e a consolidação do no­vo governo se daria pelas urnas. Os articuladores não entenderam que os efeitos do impeachment des­gastariam toda a classe política e for­taleceriam o Judiciário.”