Zolpidem: epidemia de uso indiscriminado leva criação de novas diretrizes para frear dependência
06 dezembro 2025 às 21h00

COMPARTILHAR
Quando começou a ter crises de insônia por volta de 2020, Maria (nome fictício) tentou de tudo: melatonina, chás, técnicas de relaxamento, ajustes na rotina. Nada funcionava. O cansaço acumulado logo virou desespero. Foi pesquisando na internet que ela encontrou o nome que virou a salvação naquele momento: zolpidem.
A crise de insônia vem devido ao estresse da profissão que exerce. Por ser conhecida, o nome dela não será revelado nesta reportagem. Sem prescrição médica, ela decidiu comprar o medicamento por conta própria. “Eu tomava e apagava em dez minutos. Dormia sete, oito horas seguidas. Funcionava muito bem”, conta.
Entretanto, Maria foi alertada sobre os riscos que o medicamento mascarava com eficiência imediata. Entretanto, ela decidiu dar seguimento ao uso da substância. Passou uns tempos, ela começou sentir certas anormalidades. “Acordei sentada na cama no meio da madrugada, sem saber como fui parar ali. Parecia o filme ‘Atividade Paranormal’”, lembra.
Em outro episódio, levantou da cama sem ter memória do que fez. O susto mais grave veio quando, após tomar o comprimido à tarde e esquecer da ingestão do remédio, saiu para beber com amigos. “Tomei uma bebida alcoólica e desmaiei na hora. Tinha esquecido que tinha usado zolpidem. Foi um susto enorme.”
Nessa altura do campeonato, Maria apresentava dificuldade para largar o uso do medicamento.
Nos primeiros dias sem remédio eu simplesmente não conseguia dormir. A vontade de voltar era enorme.
Após passar pelo processo chamado desmame, entrou em outro tratamento. Desta vez, devidamente prescrito por um profissional. Ela alerta.
Os riscos são grandes. Ninguém deveria tomar isso por conta própria.
Epidemia de uso indiscriminado
A situação de Maria não é um caso isolado. O zolpidem, hipnótico que age seletivamente nos receptores GABA, está no mercado há três décadas. No Brasil, porém, seu uso explodiu especialmente durante e após a pandemia. Ele se tornou um dos medicamentos mais vendidos de maneira legal e ilegal. O número de caixas vendidas nas farmácias brasileiras passou de 338 mil em 2014 para 810 mil em 2021.
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no primeiro semestre deste ano, foram quase 7 milhões de caixas vendidas. Isso, na visão da neurologista Andrea Bacelar, especialista em medicina do sono e vice-presidente da Academia Brasileira do Sono, o país vive uma verdadeira epidemia de uso e abuso do medicamento.
Houve um aumento abusivo de 160% nas vendas. Configurou-se uma epidemia de uso indiscriminado, afirma Bacelar.
Entre 2018 e 2023, mais de 13 milhões de caixas foram comercializadas. Mesmo após mudanças na prescrição, pois o remédio passou a exigir talonário B e tarja preta, a queda não foi suficiente. “Saímos de 23 milhões de caixas vendidas em um ano para 16 milhões. Reduziu, mas não como esperávamos”, diz a médica.
Segundo ela, o problema se agravou pela venda do medicamento sem a receita, situação comum em diversas regiões brasileiras. “Muitas farmácias continuam comercializando sem controle, o que mantém o abuso.”

Alucinações… amnésia… morte: os efeitos colaterais
Segundo Andrea, além da dependência, os especialistas da área têm observado cada vez mais casos de efeitos graves: alucinações, comportamentos complexos durante o sono, amnésia total, acidentes e até episódios fatais descritos na literatura internacional. “O Brasil enfrenta gravidade maior que Europa e Estados Unidos, onde o foco é o abuso de opioides. Aqui, o alerta é o zolpidem.”
Segundo a neurologista, até quem segue a prescrição pode desenvolver dependência. O uso recomendado é por no máximo quatro semanas, sempre acompanhado de médico. Porém, não é o que ocorre:
- pessoas que usam um comprimido por anos e não conseguem parar;
- usuários que aumentam a dose sozinhos quando o comprimido deixa de fazer efeito;
- indivíduos que tomam mais de uma dose no meio da noite e não lembram depois;
- usuários que combinam zolpidem com álcool ou outras substâncias – situação que potencializa riscos.
Andrea lembra ainda que o paciente pode sentir abstinência após a interrupção repentina, incluindo sintomas graves. “Na neurologia, vemos até casos de convulsões”, alerta a especialista. Por isso, o processo de desapegar do medicamento precisa ser individualizado e supervisionado.
Novas diretrizes
Para tentar mudar o cenário, há uma nova diretriz da Academia Brasileira de Neurologia (ABN). O documento foi elaborado por 15 especialistas de universidades como Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O documento foi lançado durante o Congresso Brasileiro do Sono, em Salvador (BA), e publicado na revista Arquivos de Neuro-Psiquiatria. Entre as principais mudanças estão:
- todas as apresentações de zolpidem podem gerar dependência, sendo a forma sublingual a mais associada ao risco;
- uso deve ser excepcional, prescrito e de curta duração;
- há populações específicas em que o medicamento não deve ser indicado;
- descrever protocolos de desprescrição, com estratégias farmacológicas e não farmacológicas;
- orientar abordagens específicas para adultos e idosos, que apresentam efeitos e riscos distintos.
Para a profissional, o documento inaugura uma nova fase na prática médica. “O mais importante é frear a prescrição inadequada. Agora temos critérios mais claros sobre quem indicar, quando indicar e quando não. Isso vai ajudar a evitar que novos casos de dependência surjam.”
Alternativas
A especialista reforça que o tratamento padrão ouro para insônia não é medicamentoso. E, sim, a higiene do sono, terapia cognitivo-comportamental e ajustes comportamentais.
Se a pessoa já sabe que esse é o caminho, é preciso tomar muito cuidado com o início da medicação. O zolpidem não é inocente e não é isento de efeitos adversos, pontua Andrea.
Maria, hoje longe do medicamento, reflete sobre a necessidade de buscar alternativas para não se tornar dependente de medicamentos. “Eu só queria dormir. Mas aprendi que sono não se trata com desespero. Se eu tivesse buscado ajuda adequada antes, teria evitado muita coisa.”
Leia mais: Canetas emagrecedoras podem te deixar cego? Especialista explica benefícios e riscos do uso
