Goiânia desigual: prédios de luxo e recordes de renda contrastam com o número de pessoas sem moradia na capital
20 dezembro 2025 às 21h00

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Os guindastes viraram parte da paisagem de Goiânia. Em alguns trechos da cidade, o barulho das obras é o som constante de uma promessa: mais torres, mais “lançamentos”, mais vitrines de alto padrão. O marketing vende a ideia de um futuro vertical, sofisticado e protegido — com fachadas de vidro, varandas gourmet, portarias inteligentes e áreas comuns que simulam pequenos resorts urbanos.
No nível da rua, porém, a cidade cresce em outra direção. Aumenta o número de pessoas sem moradia estável, se intensificam os conflitos em torno da população em situação de rua e se consolidam territórios marcados pela precariedade habitacional. O contraste não é apenas visual. Ele é estatístico, territorial e político.
Dados do IBGE mostram que Goiás tem um Índice de Gini menor que a média nacional, o que indica uma distribuição de renda relativamente menos desigual do que a do país como um todo. Em 2024, o índice goiano foi de 0,462, abaixo do Brasil (0,504). Isso não significa igualdade. Pelo contrário: a concentração segue elevada. Os 10% mais ricos concentram 36,7% de todo o rendimento domiciliar per capita do estado, enquanto os 20% mais ricos ficam com 52,4%. Na base, os 10% mais pobres detêm apenas 1,7% do total.
Na capital, a desigualdade tende a ser ainda mais aguda. Em 2024, o Índice de Gini do rendimento domiciliar per capita de Goiânia chegou a 0,479 — acima da média estadual. Para o superintendente do IBGE em Goiás, Edson Vieira, esse padrão é típico das capitais brasileiras.
“As capitais tendem a ser mais desiguais que o interior porque concentram o topo da pirâmide. Em Goiânia estão a elite do funcionalismo público, do Judiciário e grandes empresários, enquanto a cidade também atrai mão de obra pouco qualificada para o setor de serviços. Isso eleva o topo e amplia a base”, afirma.
A cidade que sobe: o boom como narrativa e como barreira
O boom imobiliário se tornou uma narrativa de prosperidade. Goiânia aparece recorrentemente entre os mercados mais aquecidos do país, com lançamentos de alto padrão e valorização do metro quadrado em regiões específicas. A verticalização é apresentada como sinônimo de modernidade, eficiência e crescimento econômico.
Mas esse movimento também atua como filtro social. À medida que a cidade se torna mercadoria, morar bem passa a ser privilégio. Imóveis deixam de ser apenas moradia e passam a funcionar como ativos financeiros — comprados como investimento, muitas vezes mantidos vazios à espera de valorização. A paisagem se verticaliza, mas o acesso à cidade se estreita.
A lógica é conhecida: quando a renda se concentra e a política urbana não regula o mercado, o preço do solo sobe, o aluguel acompanha e parte da população é empurrada para áreas cada vez mais distantes, informais ou precárias. O crescimento “para cima” convive com o empurrão “para fora”.
A cidade que desce: rua, estigma e a ‘metodologia da violência’
O sociólogo Fernando de Oliveira, do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Criminalidade e Violência da UFG, chama atenção para o erro de tratar a população em situação de rua como fenômeno recente ou desvio individual.
“Há uma continuidade. Isso não é de hoje. E é isso que eu quero provar”, afirma. Para ele, o que se vê hoje é o resultado de um processo histórico de desigualdade, exclusão e negação de direitos.
Fernando rejeita a ideia de que o problema se resume a emprego ou vontade individual. “Como o cara vai trabalhar se não tem banho, roupa, documento, saúde mental e um lugar mínimo para dormir?”, questiona. Segundo ele, a rua não é apenas consequência da pobreza material, mas de uma sucessão de violências: familiar, institucional, econômica e simbólica.

Nesse contexto, a resposta do poder público tende a ser simplificadora. “Todo problema vira ‘chama a polícia’. E isso não constrói política pública”, critica. Para o sociólogo, a repressão aparece como substituto de políticas estruturadas de cuidado, moradia e reinserção social.
IBGE: renda cresce, desigualdade persiste
Os dados do IBGE confirmam que a renda média em Goiânia é elevada em comparação ao restante do estado. Em 2024, o rendimento médio real do trabalho principal foi de R$ 4.090 na capital, 32,1% acima da média goiana. Ainda assim, as desigualdades por sexo, raça e posição na ocupação permanecem profundas.
Homens recebem, em média, 42% a mais que mulheres. Pessoas brancas ganham cerca de 45,5% a mais que pretos e pardos. Empregadores têm rendimento médio três vezes maior que empregados sem carteira assinada.
Edson Vieira destaca que os dados ajudam a compreender a estrutura da desigualdade, mas não capturam toda a complexidade do fenômeno. “Os indicadores mostram que a desigualdade existe e é grande. Mas eles não explicam tudo sozinhos. A dinâmica urbana, o local onde as pessoas moram e o acesso aos serviços pesam muito nessa conta”, afirma.
IMB: ‘leitura apurada’ e o peso da capital no topo da pirâmide
Para o Instituto Mauro Borges (IMB), a capital aparece como motor econômico do estado — e também como espaço onde os extremos se encontram. João Kleber, gerente de estudos econômicos do IMB, destaca que Goiânia atingiu o maior patamar de rendimento médio mensal real desde o início da série histórica, com R$ 4.730 no terceiro trimestre de 2025.
“Goiânia figura entre as dez capitais com maior rendimento médio do país e apresentou crescimento acima da média nacional”, afirma. Segundo ele, o avanço está ligado ao fortalecimento do ambiente de negócios, a políticas econômicas específicas e à atração de trabalhadores de outras regiões.
Ao mesmo tempo, João Kleber reconhece os limites da leitura baseada em médias. “Quando a gente trabalha com dados agregados, a média pode esconder realidades muito distintas dentro da mesma cidade”, diz. O IMB utiliza dados do IBGE e faz cruzamentos focados na realidade estadual e da capital, mas não produz recortes por bairros.

O mapa invisível: 55 favelas e a desigualdade que não cabe na vitrine
Segundo o IBGE, Goiânia possui 55 favelas ou comunidades urbanas mapeadas. O número desmonta a ideia de que a precariedade habitacional é exceção em uma capital frequentemente vendida como “planejada” e “moderna”.
Em Goiás, vários indicadores urbanísticos nessas áreas são superiores à média nacional — como arborização e capacidade viária. Ainda assim, a existência de calçadas ou iluminação pública não elimina a instabilidade fundiária, o estigma e a exclusão social associados a esses territórios.
Fernando de Oliveira chama atenção para o risco de se confundir infraestrutura com cidadania. “Ter rua asfaltada não significa ter direito garantido. O problema é mais profundo”, afirma.
O conflito do território: direito à cidade para quem está na rua e para quem mora ao lado
A presença de equipamentos como o Centro Pop expõe um conflito real. Moradores do entorno também reivindicam direito à tranquilidade e segurança. Há medo, desgaste e pressão política. Para Fernando, o erro está em tratar o conflito como justificativa para deslocar o problema.
Existe uma política de atraso: quanto pior o serviço funciona, melhor, porque isso aumenta a pressão social para remover, empurrar, sumir com esse ‘nicho humano
O resultado é um ciclo de precarização, repressão e deslocamento, sem solução estrutural.
Prédios vazios, especulação e a cidade como ativo
A especulação imobiliária transforma a cidade em ativo. Imóveis podem funcionar como reserva de valor, proteção patrimonial e aposta de valorização — principalmente em ciclos de expansão. Esse mecanismo é reforçado quando a oferta se concentra em segmentos de alta renda e quando o Estado não compensa com política robusta de habitação social e regulação do uso do solo.
Para Edson Vieira, esse processo reforça a concentração. “Quando a renda está concentrada e o mercado dita as regras do solo urbano, o acesso à moradia se torna cada vez mais restrito”, afirma.
É aí que entram os prédios vazios e a subocupação. Mesmo sem números oficiais consolidados no material aqui reunido, o fenômeno é reconhecido em diversas capitais: unidades compradas e mantidas como investimento, imóveis fechados, estoques que aguardam valorização. Para quem não consegue pagar aluguel, a visão de janelas apagadas em torres recém-entregues funciona como metáfora brutal: a cidade tem teto, mas não tem casa.
O contraste acende debates sobre função social da propriedade, instrumentos de política urbana, IPTU progressivo, incentivos à ocupação e programas de locação social. Mas, no cotidiano, o debate costuma ser substituído por uma disputa moral: o pobre vira incômodo, o morador de rua vira ‘ameaça’, e a política urbana vira remendo.
Entre números e pessoas: o limite do indicador e a urgência da escuta
Os próprios entrevistados apontam o limite do indicador. O IBGE trabalha com amostras representativas — e, por mais robusta que seja a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), ela pode subcaptar realidades extremas e dinâmicas difíceis de medir. O IMB, por sua vez, faz leitura e cruzamento, mas depende das bases disponíveis. Fernando defende que a cidade precisa de mapeamento e presença em território:
Ninguém quer escutar ninguém. Sem escuta, não tem diagnóstico real.
A defesa do qualitativo não é negação do dado. É complemento. A desigualdade não é só renda: é saúde mental, segurança, escolaridade, moradia, acesso a serviços, pertencimento e dignidade. Por isso, indicadores multidimensionais — e políticas integradas — são mais capazes de capturar a realidade do que respostas isoladas.
O futuro em disputa
Goiânia seguirá crescendo. A pergunta é: para quem? Se a cidade se organiza apenas para proteger a vitrine, o resultado é um centro com portas, muros e câmeras — e um ‘lado de fora’ cada vez maior. Se, ao contrário, a cidade assume o conflito como questão pública, ela pode transformar o boom em oportunidade: financiar habitação, garantir infraestrutura em áreas vulneráveis, ampliar rede de cuidado, fortalecer políticas de assistência, articular saúde mental, documentação, acolhimento e oportunidades reais de reinserção.
Os dados mostram uma Goiânia com rendimento médio alto em comparação ao estado e ao país — e, ao mesmo tempo, com desigualdades persistentes por sexo, raça e posição na ocupação. Mostram um estado com Gini abaixo da média nacional — mas com concentração de renda estável e pesada. E mostram uma capital com 55 favelas ou comunidades urbanas mapeadas, lembrando que a precariedade habitacional não é exceção: é parte da cidade.
No fim, o skyline não resolve o chão. A cidade pode até subir mais alguns andares, mas continuará tropeçando no mesmo dilema: sem política pública que enfrente a desigualdade como estrutura — e não como incômodo —, Goiânia continuará construindo luxo ao lado do abandono. E o futuro, em vez de promessa, seguirá sendo disputa.
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