Na porta do quartel, entre buzinas e bandeiras: uma manhã em meio aos “patriotas”

15 novembro 2022 às 17h51

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Aproveitei a folga do feriado para conhecer “in loco” o lugar mais movimentado de Goiás nas últimas duas semanas: a Praça dos Expedicionários, no Setor Santa Genoveva, porta de entrada para o Jardim Guanabara –, um dos mais populosos bairros da capital –, e, mais do que isso, referência para chegar ao Comando de Operações Especiais, antigo 42º Batalhão de Infantaria Motorizada (42º BIMtz).
No popular: é a “porta do quartel” de Goiânia, onde uma multidão de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) – que varia de centenas aos milhares, dependendo do dia da semana – se concentra e acampa desde 31 de outubro, à espera de que os militares atendam a suas súplicas de “intervenção federal” – não confundir com “intervenção militar”, segundo a cartilha das redes sociais bolsonaristas, porque pode dar problemas.
Fui de bicicleta para fingir para mim mesmo um ar de quem não estava trabalhando e também para ter mais mobilidade. Chegando pela Perimetral Norte, vi que não era tanta gente de verde e amarelo quanto eu esperava ver mobilizada para um feriado de 15 de Novembro, o último antes do Natal e – talvez, mais importante – da data da diplomação de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o presidente eleito, que ocorrerá dia 19 de dezembro.

O prometido, em todo o País, eram mobilizações gigantes, de modo que fizessem, enfim, as Forças Armadas “acordarem” e se mobilizarem para as medidas “necessárias” diante de um processo eleitoral o qual os que ali se concentram consideram fraudulento e ou ilegítimo por dar a vitória a um “ladrão”. Ou seja, de novo “no popular”: o pedido é para que os militares calcem o coturno, liguem a ignição dos tanques e marchem para tomar Brasília, em um golpe de Estado contra o Supremo, contra tudo.
Se lá tinha menos gente do que eu esperava, era mesmo assim um contingente considerável. A primeira música ao chegar para esse breve “tour” nas imediações do acampamento patriota em Goiânia era exatamente a que eu previ: o Hino Nacional. Na verdade, a primeira melodia que eu consegui decifrar em meio a buzinas. Muitas buzinas. Buzinas o tempo todo. Buzinas e cornetas-vuvuzelas nas cores da Pátria e nas bocas de senhoras, marmanjos e crianças. Um buzinaço/cornetaço/vuvuzelaço sem fim, que, se eu fosse militar, me faria render aos apelos rapidamente, pela saúde dos meus tímpanos. “Vamos lá dar esse golpe, recrutas, que meus ouvidos já fizeram um motim aqui”.
Às margens da avenida, pessoas em verde e amarelo balançavam efusivamente suas bandeiras do Brasil diante dos carros. Gritos de “SOS Forças Armadas” à parte, a impressão que se tem é de que está para começar um jogo da seleção brasileira na Copa. Não há como não ligar aquele clima festivo – que em nada lembra um protesto raivoso, diga-se – a uma celebração futebolística. A camisa da CBF, a bandeira nacional como capa, a maquiagem patriota das mulheres, os caras-pintadas da terceira idade, parece que o Neymar vai aparecer ali na frente daqui a pouco caindo, rolando, batendo o pênalti, marcando o gol e fazendo o “22” com os dedos das duas mãos.
O trânsito flui quase normalmente, tendo em vista a aglomeração. Novamente, a comparação com o futebol: o tráfego parece aquele anda e para intermitente da saída de estádio, mas não estagna. No sentido “Guanabara – porta do quartel”, às 11h30 desta terça-feira, a fila de carros dava quase um quilômetro pela Avenida Vera Cruz, aproximadamente a partir do cruzamento com a Avenida Contorno. Veículos em marcha lenta, devagar e sempre, até chegar ao ponto de concentração.
Prova de resiliência
Ser um “patriota”, por esses dias, é prova de resiliência por vários motivos. Como é um ponto sempre de grandíssima circulação de veículos – além de a via ser acesso ao Aeroporto Santa Genoveva, a Perimetral Norte é a via por que trafega toda carga que vem da região Oeste do Estado e segue para Brasília ou para a região Sudeste do País –, é preciso ter ouvidos de aço, como já foi referido, mas também pele resistente ao sol forte do meio-dia goiano e pulmões de atleta para fazer frente ao CO² dos automóveis, motos, ônibus, carretas e caminhões que não cessam de passar.
Boa parte dos caminhoneiros é receptiva ao movimento: alguns deles, enquanto passam pelo trecho, enfiam a mão da buzina e “esquecem” por um minuto, em uma esquisita forma de apoio – o suposto comandante dos tímpanos em motim que o diga. Motociclistas, cuja buzina é menos afrontosa, acham bonito subir o giro do motor acelerando o que puderem.
Na rotatória que um dia vai voltar a ser a Praça dos Expedicionários, além de muitos ambulantes vendendo bandeiras, camisetas, churrascos e bebidas, fica uma grande concentração de patriotas. Do outro lado, na esquina, uma barraca anuncia “água e alimento grátis”. De graça, também, são alguns cartazes e adesivos produzidos de forma industrial para levantar nas mãos ou grudar nos para-brisas dos carros.

Perto da hora do almoço, é grande também a fila para o rango. Uma cozinha que serve milhares de refeições em um serviço que, conforme o locutor comunica, pelo som principal em meio ao barulho geral, é feito por pessoas voluntárias. E é inegável que a mescla que se encontra nessas manifestações pouco democráticas é heterogênea: no geral, pouco a ver com os que frequentam os movimentos antipetistas ou bolsonaristas desde 2014 e que eram vistos na Praça Tamandaré, em frente à Polícia Federal ou no Parque Vaca Brava. Os chamados “coxinhas” de outrora estão lá, mas o que se vê algo realmente mais “povão”.
Há claramente uma organização maior por trás de tudo, financiamento de empresários ou algo assim, porque não se monta nem se mantém uma estrutura assim só com vaquinhas. Mas é algo que “chama” a adesão orgânica: enquanto transitava pela Avenida São Francisco, onde se improvisou até o canteiro central da via como estacionamento, famílias chegavam vindas de longe. Desciam com cadeiras e banquetas de plástico, a camisa amarela às vezes numa sacolinha. Em um pequeno grupo, uma mulher trazia (ou expunha) a criança recém-nascida num carrinho de bebê enquanto mais um caminhão passava ao lado rosnava a superbuzina.

As frases são um espetáculo à parte. Uma cartolina exige: “TSE, entregue o código-fonte ao Exército ou eu não vou embora”; outra diz: “A gente acampa e o ladrão não sobe a rampa”; tem também uma faixa bilíngue: “Não aceitamos Lula Ladrão na Presidência”/“We do not accept Lula Thief in the presidency”, em uma versão totalmente Google Tradutor. O destaque, nesse sentido, era para uma faixa que interrompia o fluxo na rotatória mais ou menos a cada cinco minutos: SOS Forças Armadas, com letras feitas de papel, recortadas à mão e afixadas em um pano verde-oliva.
À tarde, caiu um temporal em Goiânia – como, aliás, também em Brasília, a maior concentração de todas no País. Não estava mais lá para saber o que aconteceu e como lidaram com a situação. Mas, certamente, muitos fizeram questão de tomar a chuva para ser exemplo para os demais, “acomodados” em sua zona de conforto. Sim, é uma manifestação claramente golpista de quem não gostou do resultado das eleições. Sim, a concentração está naturalmente minguando, principalmente se se comparar ao que havia no feriado do início do mês. Mas é impossível não admitir que há muito sentimento envolvido ali. Muito mais do que para festejar um hexa com a turma do Neymar.