Um esquema sofisticado de golpes envolvendo a venda e consignação de veículos tem se espalhado por Goiás, especialmente em Goiânia e Aparecida de Goiânia. A denúncia é da advogada Josicleide do Carmo Pereira, integrante da Comissão de Direito do Consumidor da OAB-GO. Ela representa atualmente sete vítimas de fraudes em transações com automóveis, muitas delas envolvendo lojas de fachada luxuosa e empresas recém-abertas.

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Josicleide do Carmo Pereira l Foto: Cilas Gontijo/Jornal Opção

“Esses golpes estão cada vez mais estruturados. Os estelionatários usam lojas físicas bem montadas, com carros de luxo e aparência confiável, para atrair vítimas. Depois que o veículo é entregue, somem com o dinheiro ou alegam que o negócio foi feito por sócios que já saíram da empresa”, afirma Josicleide ao Jornal Opção.

“Não importa se a loja vende carros populares ou de luxo. Golpista também usa fachada bonita. A regra é simples: passou o dinheiro, passa o carro”, alerta.

Fraudes com carros em consignação

De acordo com a advogada, os golpes geralmente ocorrem durante o processo de consignação, em duas modalidades: física e online. No primeiro caso, o carro é deixado na loja; no segundo, o veículo permanece com o proprietário, mas é anunciado pela empresa — que retém fotos e documentação.

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Carros comercializados na Imports l Foto: Cilas Gontijo/Jornal Opção

“Em ambos os modelos, a fraude acontece na venda: o carro é negociado com terceiros, mas o dono original não recebe nada. Em alguns casos, os veículos são revendidos rapidamente por valores abaixo do mercado, o que evidencia a intenção criminosa”, relata.

O caso Meta Agency

A Polícia Civil de Goiás investiga um dos casos mais emblemáticos de 2025: a Meta Agency, concessionária de veículos de luxo localizada no Setor Bueno, em Goiânia. Os sócios Maycon Batista Marra e Daniele Gomes Brandão Marra estão presos, suspeitos de estelionato e associação criminosa. A empresa enfrenta pelo menos 71 processos.

Segundo as investigações, a loja comercializava veículos em consignação, mas não repassava os valores aos proprietários. Mais de uma centena de pessoas já teria sido prejudicada apenas este ano.

A investigação teve início no 2º Distrito Policial de Aparecida de Goiânia, após denúncia de que a empresa vendeu um carro sem repassar o valor ao dono. Com o avanço das apurações, o caso passou ao 4º DP de Goiânia, onde seguem as diligências.

Empresário teve prejuízo de quase R$ 600 mil

Entre as vítimas está o empresário Luiz Antônio Nogueira que procurou a loja Imports, na Avenida T-63, em Goiânia, para vender dois veículos: um Porsche Macan, avaliado em R$ 400 mil, e uma Mercedes-Benz GLC 250, estimada em R$ 160 mil.

No caso de Nogueira, as investigações começaram quando os outros dois sócios da Imports, Edmar de Camargo Gomes e Alexandre Arantes Bisonotto foram até à Delegacia Estadual de Investigações Criminais (DEIC) denunciar o ex-sócio Vinicius Luiz Assis de Freitas. Contudo, tanto a Imports quanto todos os sócios passaram a ser investigados.

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Mercedes do empresário Luiz Nogueira l Foto: Divulgação

A negociação foi feita com o sócio Vinícius Luiz Assis de Freitas, que prometeu pagar os valores com cheques. O primeiro, referente ao Porsche, foi devolvido por insuficiência de fundos. Os demais também não tinham cobertura.

Ao tentar reaver os veículos, o empresário descobriu que ambos já haviam sido transferidos para a Meta Agency. Um dos carros foi vendido em menos de 24 horas por um valor R$ 20 mil inferior ao combinado. A advogada do empresário, Fernanda Souza Silva, acredita que as duas lojas atuavam em conluio.

“A rapidez da revenda, o valor abaixo do mercado e a relação entre os donos das duas lojas mostram que havia um esquema articulado. Os proprietários da Meta, inclusive, eram ex-funcionários da Imports”, pontua Fernanda.

A Mercedes foi recuperada por decisão judicial. O Porsche, no entanto, permanece bloqueado até o fim do processo.

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Fernanda Souza Silva l Foto: Acervo pessoal

A advogada explica que essa nova modalidade de crime tem se tornado cada vez mais comum em Goiânia. “Infelizmente, esse tipo de golpe cresceu muito. Saiu do roubo e do furto nas ruas para o estelionato de loja. É mais difícil de provar, a pena é branda, e os criminosos acabam impunes. A sensação é de que compensa aplicar esse tipo de golpe”, lamenta.

Em casos como o de Luiz, em que o veículo é vendido e o pagamento é feito com cheques ou de forma parcelada, a advogada recomenda cautela extrema. “Antes, eu orientava o cliente a não transferir o carro até receber tudo. Hoje, nem isso é garantia. O carro estava no nome do meu cliente e ainda assim foi repassado para outra loja e vendido rapidamente”, explica.

Fernanda ressalta ainda que, em processos semelhantes, foram encontrados valores ínfimos nas contas dos sócios envolvidos. “Em um dos casos, o bloqueio judicial de mais de 30 contas somou apenas R$ 900. Isso porque os golpistas dilapidam o patrimônio antes de serem pegos”, destaca.

Ela lembra que mesmo após denúncias e prisões, a loja Meta continuou funcionando por semanas. “Só parou de funcionar quando a Justiça determinou o fechamento, após a divulgação de áudios comprometedores em que o proprietário dizia abertamente que não pagaria ninguém”, relata.

Sócios e CNPJs sem bens no nome dificultam ressarcimento

Segundo Josicleide, muitas das empresas envolvidas nesses golpes operam com CNPJs recém-criados e sem patrimônio registrado em nome dos sócios, o que dificulta a recuperação de valores pelas vítimas.

“Mesmo com decisões judiciais favoráveis, raramente há bens penhoráveis. Em um dos casos, 30 contas bancárias foram bloqueadas e totalizaram apenas R$ 900. Quem perde é o dono do carro — ou até mesmo quem o comprou de boa-fé”, lamenta.

Delegado evita comentar apuração em andamento

A Delegacia Estadual de Investigações Criminais (Deic) investiga o envolvimento de todos os sócios da Imports. A apuração começou após os empresários Edmar de Camargo Gomes e Alexandre Arantes Bisonotto, sócios da empresa, procurarem a polícia para denunciar Vinícius Luiz Assis de Freitas, que já não integraria o quadro societário. No entanto, todos passaram a ser investigados.

Procurado pela reportagem, o delegado responsável pelas investigações, Leonardo Dias Pires, afirmou que, por se tratar de apuração em andamento, não comentaria o caso neste momento.

Especialistas recomendam cuidados redobrados

As advogadas alertam que o golpe não está restrito a lojas pequenas. Estabelecimentos luxuosos também são usados como fachada para esquemas de estelionato. “Não importa se a loja vende carros populares ou importados. Golpista também usa fachada bonita”, diz Josicleide.

Para evitar cair em fraudes, a orientação é clara:

  1. Nunca transfira o veículo antes de receber o valor integral.
  2. Exija a assinatura de todos os sócios no contrato.
  3. Solicite a nota fiscal de entrada e faça checklist completo.
  4. Pesquise a loja no Reclame Aqui, consulte o CNPJ e converse com comerciantes vizinhos.

“Às vezes, um simples café com o dono da cantina ao lado da loja revela tudo. Os vizinhos sabem quem está agindo de má-fé”, recomenda Josicleide.

“No Brasil, o estelionato compensa”, diz advogada

Josicleide é categórica ao afirmar que a legislação penal brasileira é branda com estelionatários. “Infelizmente, no Brasil, o crime de estelionato compensa. Pouco risco, pouca punição e muitas vítimas. A maioria não recupera o prejuízo.”

Para ela, divulgar os casos na imprensa e denunciar formalmente à polícia são ações importantes para proteger outras pessoas. “Quanto mais as vítimas falarem, mais difícil será para esses criminosos continuarem agindo.”

Advogado da Imports afirma que empresa também foi vítima

Alexandre Lourenço, advogado da Imports, afirmou que a empresa foi tão vítima quanto seus clientes. Segundo ele, embora existam questionamentos judiciais que trazem algumas responsabilidades à Imports, a companhia vem desde o início se posicionando como vítima dos atos ilícitos.

“Em princípio, e por desconhecimento natural, imaginava-se que Vinícius ainda fazia parte da empresa e negociava em nome dela. Isso gerou uma imagem negativa, mas estamos trabalhando para esclarecer que isso não procede”, disse Lourenço.

O advogado explicou que nos inquéritos e procedimentos criminais em andamento, a Imports, assim como o sócio Edmar de Camargo e Alexandre Bisinotto, são reconhecidos como vítimas. “Nenhum processo os aponta como responsáveis por qualquer dano. Os questionamentos criminais recaem somente sobre Vinícius e seus comparsas.”

Na esfera cível, Lourenço explicou que os negócios feitos utilizando o nome da Imports foram realizados por terceiros, e a empresa tem buscado resolver individualmente as pendências com cada cliente. “A maioria das questões já foi solucionada, mas ainda existem casos em que somos vítimas de estratégias que tentam tirar proveito da empresa por meio de dívidas forjadas.”

O advogado destacou ainda que o caso da Imports é distinto do da Meta, também envolvida no escândalo. “Não comentaremos sobre a Meta por questões éticas. Seus proprietários estão presos, e a empresa já foi fechada.”

Em relação às pendências cíveis da Imports, Lourenço afirmou que a empresa tem feito acordos para solucionar os casos.

Sócios da Imports expulsam ex-parceiro

Edmar de Camargo, um dos sócios da Imports, relatou à reportagem os problemas causados por Vinícius, ex-sócio da empresa, e as providências tomadas após sua expulsão do contrato social.

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Alexandre Bisonotto e Edmar de Camargo – sócios da Imports l Foto: Cilas Gontijo/Jornal Opção

“Após expulsar Vinícius e retirá-lo do contrato, fomos nós que fizemos a primeira queixa-crime contra ele. Inicialmente, havia oito casos, incluindo falsificação de documentos e da minha assinatura, que ele reconhecia em cartório provavelmente com algum esquema”, afirmou Edmar.

Ele explicou que, apesar de o contrato social permitir que Vinícius assinasse sozinho em algumas situações, a empresa buscou resolver as pendências com as vítimas. “Seis desses casos envolvem a empresa. Fizemos acordos parcelados em oito vezes, e estamos cumprindo com os pagamentos.”

Sobre um dos clientes lesados, Luiz Nogueira, Edmar esclareceu que “o carro nunca foi vendido ou anunciado pela Imports. Vinícius comprou o veículo diretamente com Luiz, sem contrato com a empresa, utilizando cheques de terceiros. Fizemos uma proposta de acordo e estamos agindo de boa-fé”, disse.

Ele detalhou o funcionamento da Imports, que opera há seis anos com três sócios que tinham seus próprios negócios dentro da loja, comprando e pagando seus carros separadamente. “O problema foi que Vinícius comprava e não pagava, diferente de nós, e pagávamos comissão para a empresa como associados.”

Sobre as ações judiciais, Edmar confirmou que pretende processar Vinícius por falsificação e outros crimes.

Sobre o sistema de consignação da Imports, Edmar explicou que a empresa cobra 3% de comissão sobre os carros deixados em consignação, mas que o caso de Vinícius foi diferente: ele comprava carros usando cheques próprios ou de terceiros e não consignava os veículos.

“Somos uma loja séria, com credibilidade no mercado. Casos como este mancham a imagem do setor, principalmente após o escândalo da Meta, que deixou mais de 100 pessoas lesadas e afetou a confiança na consignação.”

Para recuperar a confiança do mercado, Edmar aposta no tempo e na transparência: “Queremos continuar fazendo negócios corretos. Nosso CNPJ está limpo, sem protestos ou cheques devolvidos, e estamos defendendo nossos processos cíveis. A credibilidade será reconquistada com trabalho sério.”

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Loja da Imports na avenida T 63, jardim América, em Goiânia l Foto: Cilas Gontijo/Jornal Opção

Golpes afetam negativamente o mercado; dizem lojistas

Proprietário da Nova Multimarcas, localizada no mesmo ponto comercial há duas décadas em Goiânia, o empresário Joel Pereira de Macedo acumula 35 anos de atuação no ramo de compra e venda de veículos. Com vasta experiência no setor, ele relata preocupação com o aumento de golpes praticados por falsos corretores e lojistas no estado e faz um alerta aos consumidores.

“O mercado não é para amador e nem para aventureiro”, afirma Joel. “O consumidor não pode se deixar levar por propostas muito tentadoras. É aí que mora o perigo.”

Apesar dos prejuízos que esses golpes causam à imagem do setor, Joel garante que sua reputação permanece sólida. “Para mim, esses golpes não afetam em nada. Pelo contrário, eu até acabo ganhando mais dinheiro, porque o cliente lesado por outro vem procurar quem tem credibilidade”, afirma. “Aqui eu cobro comissão, tenho preço, mas também entrego segurança. Não dou golpe em ninguém.”

Segundo ele, a Nova Multimarcas possui um índice de satisfação de 97% entre os clientes. “Claro que não dá para agradar todo mundo, mas sempre buscamos fazer o melhor”, ressalta.

Joel conta que evita trabalhar com veículos em regime de consignação, justamente por considerar esse modelo mais suscetível a fraudes. “Eu não gosto de consignado. Quando aceito, cobro 5% de comissão, o que é caro para o mercado. Mas é aí que mora o problema. O aventureiro cobra 2%, 3%, e é nessa brecha que entra o golpe”, pontua.

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Joel Pereira de Macedo – proprietário da Nova Multimarcas l Foto: Cilas Gontijo/Jornal Opção

Ele recomenda aos consumidores que façam uma checagem criteriosa antes de fechar negócio. “Antes de deixar um carro em consignação, o cliente deveria pegar o CNPJ da loja e fazer uma busca. Ver se tem processo, se tem nome sujo”, orienta.

Na Nova Multimarcas, segundo Joel, todos os veículos são próprios, comprados de antigos clientes ou locadoras, e os pagamentos são sempre realizados à vista. “Mesmo com cliente oferecendo prazo, aqui a gente só compra à vista”, diz.

Com uma carteira de clientes consolidada ao longo dos anos, a loja comercializa veículos de diferentes faixas de valor. “Tem carro de R$ 30 mil até R$ 150 mil, R$ 200 mil. Atendemos todas as classes sociais. Depois de 20 anos no mesmo ponto, já construí uma carteira sólida de clientes”, conclui.

Outro proprietário de loja, que falou sob condição de anonimato, afirmou que esse tipo de situação afeta negativamente a imagem de todos os lojistas. Ele ressalta que não gosta de ser chamado de “garageiro”, pois, segundo ele, o termo remete a pessoas caloteiras que enganam os clientes.

“Sou um lojista do ramo de compra e venda de automóveis, não um garageiro. Meus negócios são sérios, mas infelizmente há muitos sacanas por aí dando calote nas pessoas, e isso prejudica a imagem do mercado diante da população”, declarou. Apesar disso, ele garante que esse tipo de conduta representa uma minoria no setor.

O proprietário de uma loja de veículos de luxo, assim como a Imports, também conversou com a reportagem, mas preferiu não se identificar. Segundo ele, as vendas em sua loja já foram impactadas negativamente. “Casos como esses são uma lástima para o mercado, porque os clientes acabam colocando todos os lojistas no mesmo saco, inclusive a nossa loja. Olha aí para você ver (disse ao repórter), a loja está vazia, os clientes sumiram”, lamentou.

Ele destaca ainda que a situação econômica do país já é desfavorável, e escândalos como esse agravam ainda mais o cenário. “Estamos passando por um momento conturbado economicamente e, por essa razão, as vendas já não estavam boas. Mas, depois que vieram à tona os casos envolvendo a Meta e a Imports, a situação piorou ainda mais”, afirmou.

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