A fidelidade do poeta era à vida, aos amores diversos, ao copo de uísque. Deixa como legado um olhar leve e intenso, uma rima perfeita, um carinho por onde passa

Lígia Pinheiro Paganini

Especial para o Jornal Opção

Há 40 anos, dentro de sua banheira em uma casa no Rio de Janeiro, ao lado de seu melhor amigo, o uísque, morria Vinícius de Moraes, aos 66 anos.

Conheci Vinícius na aula de português da 7ª série, ou seja, 18 anos depois de sua morte. Minha reação foi bem viniciana: me apaixonei perdidamente na hora por aquele poeta. Assim ele era: a palavra certa e sensível com intensidade sempre constante.

Poeta e diplomata, por muito tempo Vinícius viveu entre as duas profissões, até que a música e a poesia falaram mais alto. Vinícius cantava e recitava o amor, um amor total, como em seu soneto um amor amigo, aquele que é “nunca perdido, sempre reencontrado”; um amor à vida: repleta de separações onde o “riso se faz pranto”; de desesperanças, que devem ser mortas; de desigualdades, onde o próprio operário se vê em construção.

Vinicius de Moraes: poeta e compositor e bon vivant | Foto: Reprodução

Vinícius era um bon vivant, teve o privilégio de viver de poesia e vivenciar tudo o que queria até o fim (o que inclui nove casamentos, cinco filhos, centenas de amigos, milhares de admiradores). Sua fidelidade era à vida, aos amores diversos, ao copo de uísque. Deixa como legado um olhar leve e intenso, uma rima perfeita, um carinho por onde passa. Se seria mesmo o amor “eterno enquanto dure” como ele mesmo dizia, certamente Vinícius é um imortal.

Vinícius de Moraes e Pablo Neruda: poetas do canto lírico | Foto: Reprodução

Neste poema, Vinícius, de forma delicada fala da morte, trazendo também a beleza da continuidade da vida.

Poema de Natal

Rio de Janeiro, 1946

Para isso fomos feitos:

Para lembrar e ser lembrados

Para chorar e fazer chorar

Para enterrar os nossos mortos –

Por isso temos braços longos para os adeuses

Mãos para colher o que foi dado

Dedos para cavar a terra.

 

Assim será a nossa vida:

 

Uma tarde sempre a esquecer

Uma estrela a se apagar na treva

Um caminho entre dois túmulos –

Por isso precisamos velar

Falar baixo, pisar leve, ver

A noite dormir em silêncio.

 

Não há muito que dizer:

 

Uma canção sobre um berço

Um verso, talvez, de amor

Uma prece por quem se vai –

Mas que essa hora não esqueça

E por ela os nossos corações

Se deixem, graves e simples.

 

Pois para isso fomos feitos:

Para a esperança no milagre

Para a participação da poesia

Para ver a face da morte –

De repente nunca mais esperaremos…

Hoje a noite é jovem; da morte, apenas

Nascemos, imensamente.

Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos: amigos | Foto: Reprodução

Soneto da fidelidade é, certamente, um dos mais famosos do poeta.

Soneto da fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento

Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

Que mesmo em face do maior encanto

Dele se encante mais meu pensamento.

 

Quero vivê-lo em cada vão momento

E em louvor hei de espalhar meu canto

E rir meu riso e derramar meu pranto

Ao seu pesar ou seu contentamento.

 

E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama

 

Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.

Toquinho, Tom Jobim e Vinícius de Moraes: parceiros e amigos | Foto: Reprodução

Vinícius de Moraes uniu a poesia e a música de diversas formas. Na canção abaixo, uma carta enviado a Tom se tornou uma de suas mais conhecidas canções

Carta ao Tom

Vinicius de Moraes, Toquinho

Rua Nascimento e Silva, 107

Você ensinando pra Elizete

As canções de Canção do amor demais

 

Lembra que tempo feliz

Ah, que saudade

Ipanema era só felicidade

Era como se o amor doesse em paz

 

Nossa famosa garota nem sabia

A que ponto a cidade turvaria

Esse Rio de amor que se perdeu

Mesmo a tristeza da gente era mais bela

E além disso se via da janela

Um cantinho de céu e o Redentor

 

É, meu amigo, só resta uma certeza

É preciso acabar com essa tristeza

E preciso inventar de novo o amor

Lígia Pinheiro Paganini é professora, psicopedagoga e psicanalista em São Paulo. Atualmente faz mestrado em psicanálise e educação pela Unifesp e sempre que pode une a vida à poesia como lhe ensinou Vinícius de Moraes.