Vilão de Hellraiser ganha mais uma história de horror

29 outubro 2016 às 10h12

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Em “Evangelho de Sangue”, o inglês Clive Barker põe fim ao legado de um dos personagens mais icônicos dos filmes de terror

Sérgio Tavares
Especial para o Jornal Opção
Sejamos justos, a popularidade de Pinhead não se deveu à literatura. Apesar de ter sido apresentado na novela “The Hellbound Heart”, de 1986 (por aqui, o livro foi editado em 2015, pela Darkside Books, com o título “Hellraiser”), o personagem, criado pelo inglês Clive Barker, ganhou fama, de fato, na adaptação para o cinema, dirigida pelo próprio Barker, em 1987, e na série de continuações irregulares que se arrastam até hoje.
Foi na tela, imortalizado na pele do ator Doug Bradley, que o líder dos cenobitas, o demônio com “a cabeça careca ritualisticamente marcada com sulcos profundos, que correm tanto na horizontal quanto na vertical, sendo que, em cada interseção, um prego fora martelado através da carne sem sangue até o osso”, tornou-se um dos vilões mais marcantes dos filmes de horror, um ícone da cultura pop adorado em menor e em maior grau, de estampas de camiseta à tatuagens.
Barker, é verdade, chegou a escrever o roteiro de uma história em quadrinhos, lançada em 2011, na qual Pinhead é o protagonista, contudo a matéria literária continuava sendo a mesma da novela original e, por consequência, do longa que esta serviu de base. Eis que, no ano passado, o escritor anunciou que retornaria ao universo do personagem, num projeto que desenvolvia há anos, no qual expandia a mitologia do cenobita, para, então, matá-lo. O romance chega agora às prateleiras brasileiras, com o título de “Evangelho de Sangue” (tradução: Alexandre Callari), num trabalho editorial muito bem cuidado da mesma Darkside Books.
A trama tem início com os magos do Círculo Supremo ressuscitando um de seus membros, que fora recentemente trucidado por um ser maligno de irrefreável poder. Apenas cinco sobreviveram à série de mortes que, como este revela, tem como motivo a obtenção de toda a magia humana. Neste momento, a ascendência de uma luz fria anuncia a chegada do inimigo. É Pinhead, agora chamado de Sacerdote do Inferno. Ele subjuga todos e, após negociações falidas e pedidos de misericórdia, comanda, com uso de ganchos afiados e correntes vivas, uma viscerosa cena de realismo gráfico, perversão e sordidez. Apenas um dos magos é poupado, a fim de servir como soldado-escravo para seus propósitos, depois de ser deformado numa criatura de abominável compleição, uma pária infernal.
A história dá um salto e chega a Nova Orleans. Ali encontra-se Harry D’Amour, detetive particular cuja primeira aparição está no conto “A Última Ilusão”, que faz parte do sétimo volume da série “Livros de Sangue”, com a qual Barker estreou na literatura (em 1995 — o texto virou filme com o título “O Mestre das Ilusões”). D’Amour tem habilidades paranormais, em razão das quais investiga casos ligados ao ocultismo, protegido pelas tatuagens de conjurações que cobrem todo seu corpo. O serviço em questão lhe foi passado por Norma, uma senhora cega de nascença, que consegue “ver” e conversar com espíritos. Um desses contrata o detetive para dar fim aos objetos de uma casa que mantinha em segredo, onde praticava rituais de magia. Vasculhando o local, D’Amour encontra a caixa de Lemarchand e não resiste em manipulá-la.
A caixa de Lemarchand é um artefato iconográfico nas histórias dos cenobitas. Desvendar sua engenharia de quebra-cabeça possibilita o acesso a uma dimensão de prazer e dor. Ao abri-la, D’Amour desavisadamente convoca Pinhead e seu lacaio, que tentam capturá-lo, demonstrando que o serviço não passava de uma armadilha. Abrigado por Dale, um velho que experimenta momentos de premonição, o detetive foge de Nova Orleans para Nova York, onde alerta Norma sobre os planos do demônio de se prover da magia humana para dominar o Inferno, liquidando todos os membros do regime de classes que governa a região desde o sumiço de Lúcifer.

O tatuador Caz fica responsável por instalar a médium num local seguro, porém Pinhead a encontra e a sequestra para o mundo espiritual. D’Amour, então, com a ajuda de Caz, Dale e Lana, amiga deste último, forma um tipo de esquadrão de resgate que cruza um portal aberto em Manhattan, embrenhando-se pelo Inferno e testemunhando a conspiração de eventos monumentais, que trazem consequências irreversíveis para todos.
À parte de rótulos de gênero, Barker é um autor de talento legítimo, cuja escrita inconfundível é capaz de ilustrar, de maneira lírica e requintada, as mais perturbadoras cenas. Em seu texto, há sempre uma intenção crescente de se alcançar o colosso imaginativo, proceder de modo que as imagens utilizadas deem tração à história, de acordo com ritmo a que o momento determina. As partes detetivescas de D’Amour são de baixa voltagem, com ares noir que, em função da temática sobrenatural, muito lembra os casos do investigador Dylan Dog, personagem dos quadrinhos criado pelo italiano Sergio Bonelli. Já a presença de Pinhead provoca o caos, e a narrativa explode em paletas escarlates, uma tela de fecunda provocação sexual e horror em seu estado puro, numa escala pandemônica.
O autor é também um exímio construtor de mundo, conforme visto em “A trama da maldade” e na série juvenil “Abarat”. O Inferno, arquitetado por Barker, é de uma riqueza espantosa, da geografia às criaturas que ali habitam, das construções à concepção da estrutura social. Parecem delírios provocadas pelos versos de Alighieri e de Milton; visões extraídas das pinturas de Hieronymus Bosch. Aliás, outra particularidade está ligada diretamente aos livros de “Abarat”. Deles, é emprestado um estilo que se aproxima das raias da fantasia, sobretudo nas cenas de ação que envolvem perseguições, batalhas e feitiços. Não só de passagens chocantes se sustenta o romance.
A pergunta que persiste, porém, é a seguinte: é um retorno que faz jus à altura da principal criação do autor? Sim. Além de uma ótima trama de fundo, os fãs de Pinhead são presenteados com todo um universo expandido do Sacerdote do Inferno, mesmo que o fim já tivesse sido revelado antes de o livro ser publicado. De fato, o que Barker faz é transferir a carga de possibilidades de um personagem para outro. E, claro, licenciar o romance para uma futura adaptação para o cinema. Uma boa, esperamos desta vez. Se Deus quiser!