“A vida é um movimento de transformação constante”
16 abril 2016 às 16h05

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Em seus trabalhos, o bailarino e performer paulista reflete sobre a alteridade e vê na arte a possibilidade de se transcender em vida, que cria ou desenvolve aqueles envolvidos com ela

“Acho que ouvi numa canção de Madonna
‘When you look at me, I don’t know who I am’
E desentendi
Pois, comigo, é você quem me olhando detona
A explosão de eu saber
Quem eu sou
Eu nunca imaginei que nesse mundo alguma vez alguém soubesse quem é
Mas se você me vê, seus olhos são mais do que meus
Pois amo
E você ama
Então o indizível se divisa
E a luz de tantos céus inunda a mente
E, no entanto, diferentemente de Osama e Condoleezza, eu não acredito em Deus”
Caetano Veloso, “Diferentemente”
De alaranjados tênis e vestido em vermelhas meias e camisa, bradava de amores “David, David”. Estava, enfim, feliz, após o desconsolo de não se ver correspondido por um rapaz, cujas feições eram semelhantes às do Sting, do The Police. Ele que, então sozinho, viajou a Índia, que respirou os ares do alto do Himalaia. Ele, bailarino e performer, Marcos Moraes.
Aqui, em terras de pequi, rock underground e demais vastidões, Marcos dançou “Anatomia do Cavalo”, um solo dirigido por Luis Ferron. Veio como estreia da Manga de Vento, mostra internacional de dança contemporânea que segue com sua programação de 2ª edição estendida até novembro.
As referências acima detidas são um pedacinho do que foi a apresentação, realizada nos palcos do Teatro Sesc Centro. Com Johnny e seu gato, começa o espetáculo. Aprisionado numa rotina, ele vai ao cinema. Por fim, após amor e desamor, canção do Talking Heads, dança em vídeo e outros solos e brincadeiras com o público, ele Johnny/Marcos alcança a liberdade correndo em solo plano. Soltos os pés no chão goiano, toca os altos do Himalaia. E, com ele, os tocamos. Conheça um pouco mais deste artista, seus outros trabalhos e da preciosidade de “Anatomia do Cavalo”.
O espetáculo se chama “Anatomia do Cavalo”. Mas, como é costume jornalístico, pergunto sobre quem é o entrevistado. Qual é a anatomia do Marcos?
Eu diria que é a anatomia de uma pessoa que está convencida de que a arte nos devolve ou nos cria, vai fazendo quem já somos. É uma tarefa de todo o dia, um trabalho de conexão com o mais profundo de si; um trabalho para despertar deste lugar mecânico da vida e, assim, resistir a toda a pressão que o mundo nos faz para transformar-nos em coisas. É como se fosse um lugar de reinvenção do humano e que, mais do que nunca, é fundamental. Afinal, se vivêssemos no lugar de coisa e, ao mesmo tempo, em um vazio no sentido da vida, a arte nos ajudaria a dar sentido a ela.
A minha anatomia é um pouco do que eu fiz, onde cheguei. Portanto, o “Anatomia do Cavalo”, por exemplo, conta a história de uma viagem e é uma história que me construiu, junto a várias outras. É como se revisitar isto fosse construir cada vez algum sentido para estar neste planeta, que é belo e tão horrível, uma vez que somos tão ignorantes. Então, é uma tentativa de dar sentido e de estar vivo; de nos ajudar a lembrar disto.
Ao mesmo tempo, tem muito a ver a minha anatomia com ter começado a dançar, a trabalhar o corpo, pois eu não estaria vivo se não tivesse dançado a “Cozinha Performática” [um de seus trabalhos]. A Cozinha foi um trabalho que veio da sensação de uma solidão enorme e de quebrar com ela através do trabalho de encontro com o outro. Ela é uma tentativa bem-sucedida, eu diria, pois já faz alguns anos que temos feito este exercício da alteridade, que ela é. Dou sempre um mesmo exemplo que a cozinha é o lugar onde você mistura os ingredientes, onde eles passam por um processo de transformação e viram um prato que não é mais nenhum daqueles separados. Ele é o quê? É o produto daquele encontro.
Para mim, quando trabalhamos junto a outras pessoas, aparecem os roços da personalidade. E elas se roçam. Os nossos egos querem coisas e nós estamos apegados a elas. Assim, trabalhando um com o outro, existe uma parte nossa que quer que todos os outros sejam como nós, mas o desafio não é este. O desafio é como nós deixamos de ser nós, sem deixar de sê-lo, e tornamo-nos uma coisa juntos. Então, o pensamento da Cozinha é este. E como ele se manifesta? Temos um desejo que vem do que você quer agora? O que te faz mover agora?
Qual o impulso de vida que te faz disparar e ir atrás de algo, que é tão difícil? Então, chegamos a um resultado artístico; é um viver e trabalhar com o outro, se entender e desentender, lidar com o desconhecido, com o que eu não entendo, sair do lugar onde estamos colocados e nos transformar, nos levar a um lugar que tenha um pouco de cada um.
Com certeza, minha anatomia é a de perceber que o eu que estamos tão apegados é uma construção de toda uma vida e que é necessária para estarmos no mundo, mas que, ao mesmo tempo, não é a vida. A vida é um movimento de transformação constante. Esta ideia de que eu sou fulano, sou ciclano, tenho tal nome, tal carreira, RG e não sei mais o quê é uma ideia construída e que não é exatamente como a vida é. A vida é este movimento constante que nunca para, nunca termina, que se transforma e é uma possibilidade de resistirmos um pouco a esta formatação que construímos para nos sentirmos seguros, amados, aceitos. Como a gente rompe com isso e continua em movimento, em gerúndio, sem saber exatamente quem somos, pois desconhecemos muito mais do que conhecemos?
Em “Anatomia do Cavalo”, como Johnny, você põe ração para seu gato e se serve?
Isto é um elemento da peça. Eu não tenho gato, mas adoro os bichanos. Não os tenho porque sou alérgico. Adoro os bichos e já os vi curarem muitas pessoas. Eu conheço um antropólogo que brinca que meu trabalho fala sempre de bicho e do transcendente.
Quanto ao Johnny, que coloca ração para o gato, é algo que se abre para muitos significados possíveis. É uma coisa que Ferron [diretor], que fez a concepção do trabalho junto comigo, trouxe para mim. Ele colocou este texto e eu acho que ele tem uma função cênica, pois ele fala de uma rotina de um personagem que faz determinadas coisas e, então, vai ao cinema.
É o começo do espetáculo; quase que um prólogo que propõe uma narrativa que se segue e, ao mesmo tempo, trata de uma questão que sempre estou olhando, e que no próximo espetáculo trabalharei mais ainda, que é a da verdade. O que é verdade e o que é narrativa? Qual a verdade narrativa? O Johnny, então, coloca um pouco disso. Ele vai para o cinema e começa uma história. Ao mesmo tempo, é uma história que trabalha neste lugar entre a pessoa e o performer. É uma história de performance, portanto é uma narrativa construída. Nós jogamos com isto, com esta narrativa de rotina do Johnny de entrar na casa, de fazer isso e aquilo. E tudo tem a ver com a proposta de trabalho de Ferron, que já vinha de um tempo, mas que não sabíamos qual era e como se chamava e nem nada; de perceber esta corporeidade.
Qual é a corporeidade do Cozinha?
Quando o projeto do Cozinha começou, a primeira coisa que eu fiz foi convidar um grupo de artistas para jantar. Nós fizemos cinco jantares. Eram pessoas das artes visuais, performers, músicos, poetas, filósofos, pessoas do vídeo e fotografia, e a única coisa que eu coloquei para eles é que precisavam estar a fim de conhecer outras pessoas e que o fio condutor seria o desejo, o que te moveria no trabalho. O que elas tinham para ser envolvidas é que elas estavam/estão [a performance ainda acontece] neste lugar de busca pelo outro. Por exemplo, quem era das artes plásticas não estava só a fim de conversar com alguém das artes plásticas, mas estava aberta a pessoas da dança, da música, da poesia. Todos tinham este lugar.
No primeiro jantar, que fiz na casa da minha mãe, foi a fim de explicar o que era o Cozinha para os convidados. Ferron me viu e disse que aquele lugar tinha um corpo que lhe interessava para cena. Era um lugar em que você está aqui conversando, recebendo as pessoas, querendo que elas estejam confortáveis, mas sem esquecer que tem algo no forno. Você volta e diz “pega uma bebida, fique a vontade, que eu só vou aqui na cozinha resolver algo”, e aí uma pessoa me pega de papo, dizendo que me viu não sei onde e outro tocando uma música e que dou papo, mas sempre sem esquecer o que está na cozinha.
Então, o lugar é este de contar uma história, em um contato direto com quem está ali, e, ao mesmo tempo, operar a luz, o som, o vídeo. Estou aqui, ofereço uma fala, mas não posso esquecer que tem a luz 3 e tal, por exemplo; um lugar que cria tensão em cena. Mas não posso deixar a peteca cair nunca. Estou sempre informal, desconstruindo meu treinamento para interpretação, que é difícil abrir mão, mas ao mesmo tempo fica a intensão de estar eu mesmo, diante da responsabilidade com as pessoas que vieram me assistir. Tenho a responsabilidade de levar aquele trabalho até o final, de cumprir todo aquele mapa, que é diferente a cada apresentação. Está aí o trabalho.

A arte, principalmente a do teatro, está ligada à presentificação?
Acho difícil responder isto, pois faz muito tempo que eu não estou no trabalho de linguagem. É uma tendência, pois é muito difícil falar de artes visuais ou performance ou qualquer outra arte, separadamente. Todos os trabalhos estão contaminados de muitas coisas e o caminho da performance nos serviu para sair deste lugar. Claro que ainda existem os trabalhos clássicos de dança, teatro, mas eu, como muitos outros artistas, trabalho neste lugar que as linguagens estão juntas, que se interferem e constroem juntas algo que seria difícil e até desnecessário definir.
Eu venho da dança, tenho uma maior trajetória nela, mas tenho vivência também no teatro, e a minha relação com o movimento é de impulsionador de toda uma criação e linguagem criativa que tem música, vídeo, teatro, performance; todas estas sensibilidades. Eu não sei quanto a presentificação. Existe a questão do ao vivo que me interessa, mas também amo vídeo e o texto escrito. Lembro de “O Porco e o Cozinheiro”, uma performance minha, que tem duração de seis horas, e que tem toda uma construção do espaço, de alguém que o criou comigo, de vídeo e tal. Ela foi realizada em uma galeria de arte e eu cozinhei por 3/4h, desde a preparação do alimento, de uma preparação do altar, do ambiente, a preparação sonora e de vídeos.
Tenho como referência Gordon Matta-Clark, um artista norte-americano que abriu, na década de 1970, um restaurante com sua mulher e com outros artistas, no SoHo de Nova York (EUA). Naquela época, era um lugar no centro ao qual ninguém ia. Eles começaram a reocupar aquele lugar, que virou o que é hoje. Então, os artistas vão criando relações e situações de convivência e os lugares vão se vivificando. Eles começam a atrair outros interesses, como os do capitalismo. Isso tudo para mim é presentificação. O espetáculo não está só nos palcos, não está só na peça teatral. A arte é este deslocamento, o lugar em que se suspendem alguns hábitos mecanizadores e que permite ver outras coisas que ali estão. Este lugar de presentificação me interessa.
Que música o sr. canta no espetáculo?
É uma música antiga do David Byrne, do Talking Heads, que se chama “This Must Be The Place”, e que foi recuperada em um filme, lançado um pouco antes da criação do “Anatomia do Cavalo”, que também se chama “This Must Be The Place” e que é com o Sean Penn. Ele faz um personagem roqueiro que está em crise profunda, velho, perdendo o sentido da vida e com um filho que não fala direito e outras complicações. Tem cenas maravilhosas.
Nós estávamos falando de coisas parecidas na época, de perdas, de morte, de envelhecimento, de lugares que, às vezes, você precisa recuperar o sentido.
O espetáculo fala do amor pelo o outro e a música tinha um trecho maravilhoso: “Home is where I want to be” (em livre tradução, “lar é onde eu quero estar”) e que se segue: “But I guess I’m already there” (“Mas eu acho que já é onde estou”). A canção fala de um amor que tem asas abertas, que é livre. Ela fala que é maravilhoso amar alguém, que é como estar em casa, onde quer que esteja.
Tem um trecho que fala de “estar” e o sr. fala isso no espetáculo duas vezes, de alcançar a claridade toda, da viagem ter acabado. O sr. falou também que era incrível ter chegado ao alto com os pés aqui em Goiás.
Sabe aquela metáfora da árvore? Que quanto mais ela cresce, mas a raíz tem que crescer para baixo? É um aprendizado para nós. Como a gente voa e pira, não fica reduzido, se conecta com a criação que é muito maior que nós e que todas nossas miseráveis e tolas melancolias, como se conecta com os cosmos nessa vida. É preciso fazer isto com os pés no chão. Todo mundo gosta da festa, mas ninguém quer ajudar a mãe a lavar a louça.
É preciso lavar a louça depois da festa. É preciso para sermos pessoas em sociedade, viajar, sonhar, sair de nós mesmos, se elevar e o melhor é poder fazer isto com os pés no chão. Pagar a conta ou não, mas saber que ela está lá. Ter uma responsa, emitir algo, sem pisar, amassar seu pé. Perceber que tem outro além da minha viagem. Isto não é para me reprimir.
É para saber como a gente faz para estar entre o céu e a terra, neste lugar do humano. O lugar da transcendência e do pertencimento a Terra. O cavalo tem a ver com isso. Na china, o cavalo simboliza a liberdade na terra. A liberdade de correr pelas planícies, não é a mesma do pássaro. É outra liberdade. Esta talvez seja a liberdade que eu tento aprender.