Vasto abismo e a arquitetura verbal de Nilto Maciel

19 dezembro 2021 às 00h00

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Além de bom escritor e de imprescindível articulador literário, era um artista da palavra que sabia compreender e assimilar os avanços estilísticos de seu tempo
João Carlos Taveira
Especial para o Jornal Opção

Nilto Maciel não está mais entre nós. Partiu para outra dimensão em 29 de abril de 2014, aos 69 anos de idade. Mas não era só um escritor. Além de bom escritor e de imprescindível articulador literário, era um artista da palavra que sabia compreender e assimilar os avanços estilísticos de seu tempo. E, como tal, procurava, sem nenhuma demonstração de cansaço, o aperfeiçoamento do próprio estilo, para melhor conduzir a narrativa na construção de seus personagens. Nesse sentido, sua escritura o aproxima não só de um Graciliano Ramos, também nordestino, mas do Machado de Assis maduro e inconfundível de “Quincas Borba” e “Memorial de Aires”.
O romance “A Rosa Gótica”, publicado pela Thesaurus Editora, é um verdadeiro testemunho da maturidade da pena de Nilto Maciel. Ali se encontram, com facilidade, fundamentos inarredáveis para a confirmação da minha tese. Com aquele livro, o criador de “Os Varões de Palma” conseguiu a perfeita sincronia entre memória e ficção, entre verdade histórica e verdade ontológica, numa clara exibição de seu domínio dos arquétipos da linguagem, dos liames da narrativa ficcional.
Sua oficina romanesca comporta o absurdo, o fantástico, o linear, o surreal e, não raras vezes, o satírico, o burlesco, o humorístico. Seus temas, por diversos, exploram desde o corriqueiro e trivial triângulo amoroso, passando por perquirições do gênero policial, até o mais intrincado universo psicológico — carpintaria digna dos melhores mestres da arte literária.
Após a publicação de mais de uma dezena de livros (romances, novela, contos, crônicas, poemas, infanto-juvenis), o autor de “Babel” foi se firmando como um dos mais promissores representantes de uma geração de escritores que hoje vivem fora do eixo Rio/São Paulo. Isso comprova mais uma vez que a Literatura, como a Arte de um modo geral, não depende de geografia, de localização espacial, muito menos de escolas ou de círculos fechados, para poder manifestar-se e, quando genuína, consolidar-se.
Detentor de vários e importantes prêmios literários, Nilto Maciel permaneceu fiel ao seu artesanato meticuloso. A cada livro publicado, novas descobertas e uma outra luz se acendendo às possibilidades do leitor. E essa versatilidade do ato de contar histórias foi criando, ao mesmo tempo, uma atmosfera cada vez mais propícia àquele compromisso com a verdade e a beleza, assumido desde os primeiros livros, e que fizeram do escritor de Baturité um artista completo.
II
“Vasto Abismo” (Editora Códice, Brasília) foi sua estreia no gênero novela, com que Nilto Maciel inaugurou ampla possibilidade para suas inquietações criadoras: outro canal para sintonia e transmissão de suas desconcertantes mensagens. E hoje se inscreve, sem exagero, no fechado círculo da genuína arquitetura verbal iniciada por Cervantes. Esse livro, deve-se dizer, veio envolto pela aura e pelo signo da maturidade, uma vez que seu autor já ultrapassava a casa dos cinquenta e encontrava-se em pleno domínio das técnicas exigidas para a construção da narrativa ficcional do início do século 21.
A primeira novela da coletânea, intitulada “A Busca da Paixão”, está dividida em três partes e representa a espinha dorsal do conjunto. A peça constitui um mergulho nas lembranças de um homem que parte em busca de seu passado e, principalmente, de sua infância, de suas origens étnicas — viagem que compreende um desnudar-se contínuo, num jogo de claros-escuros intermitentes e silêncios povoados de doces reminiscências e terríveis fantasias. (Há pouco, verifiquei na obra poética de Anderson Braga Horta uma interação com a Música. Em Nilto Maciel, encontro, com indisfarçada alegria, uma aproximação com o Cinema, que hoje já não pode prescindir da linguagem musical para realizar-se artisticamente como uma linguagem visual.)
Feito Orfeu, o protagonista vai aos infernos à procura de sua identidade, tendo por companheiros Helena, a namorada de circunstância, a memória dos lugares antes percorridos e ainda desconhecidos e o desespero de estar só. (“Aqui estamos, eu e meu desespero, a guiar os passos para não pisar em falso e cair na arapuca.”) A trama, labiríntica, constrói-se de sobressaltos e incertezas, que vão, a pouco e pouco, desvelando a traumática personalidade de um ser que, ao descrever-se, se circunscreve no terreno próprio da Mitologia, com todas as implicações no campo da psique humana.
Encontram-se, ali, focos esparsos, porém contundentes, da gênese do mito do eterno retorno de Nietzsche: “Como se chega a ser o que se é.” Nilto Maciel, nesta novela, cria um personagem-narrador autossuficiente, cujo nome Tanguera é apenas uma referência indígena circunscrita ao universo da linguagem e cuja vida vazia e sem sentido o situa perante um dilema permanente: precisa desvencilhar-se com urgência da mediocridade do tempo presente, da existência sem brilho, da falta de objetivos, para tentar reencontrar-se e, consequentemente, salvar-se de si mesmo e do mundo que o rodeia. (“Tanguera sou eu. Tanguera não existe. Tanguera é aquele menino que envelheceu e virou fantasma.”) E, nesse desespero metafísico, empreende a busca definitiva — pessoal, intransferível — do que está irremediavelmente perdido, mas que, no seu desvario, pode perfeitamente ser reinventado. Leia-se a infância e suas possibilidades agora extintas para sempre. (“E eu temia não passar da primeira frase.”)
A novela termina. O que era temor e incerteza transformou-se em pedra, sedimentou; e o que tinha a simples feição da aspereza, com suas vísceras de fel e fogo, voltou a fazer vicejar outros sonhos e esperanças. A conclusão do leitor, no entanto, não será jamais aquela em que os meios justificam os fins. Dentro da visão artística de Nilto Maciel, nada tem valor por si mesmo nem está a salvo da corrosiva ação do tempo, se para a reconstrução do ser não se tentar pelo menos o risco do improviso, mesmo sabendo-se, de antemão, que este ser configura-se na imperativa certeza do não-ser.
III
Seguem-se-lhe outras seis narrativas viscerais, sendo que as três últimas se caracterizam mais dentro dos limites daquilo que se poderia chamar de mininovela. São elas: “O Julgamento de Rui”, “Taciba Vai ao Céu” e “Quarteto”.
A segunda narrativa, intitulada “Vasto Abismo”, e que dá o título geral da obra, constrói-se dentro de dois universos opostos: a erudita e ordinária existência de Isaque Paiva, com seus conhecimentos da língua de Virgílio e sua paixão avassaladora pelos livros e, em contraposição, os seus sonhos de poeta frustrado diante do amor de uma bibliotecária que, além de leitora inveterada de subliteratura, ainda é casada com um militar estúpido e ciumento.
Nessa novela, Nilto Maciel explora seus conhecimentos da literatura policial de maneira muito velada, não entrando nos domínios do mistério, tampouco no campo da investigação. A história desenvolve-se naturalmente sob os influxos do próprio enredo, e me parece bem próxima daquela tensão ambicionada pelo romance psicológico — em que a tragédia se delineia desde o início e, a cada página, a cada capítulo, vai preparando o leitor para o seu desfecho inevitável. Isaque Paiva é um ser atormentado em busca de redenção. E esta redenção está muito bem esculpida pela mão ágil do criador de “A Guerra da Donzela”. Enfim, “Vasto Abismo” cumpre, ainda que timidamente, todas as exigências patenteadas pelo modernismo surgido após a década de 1960.
Em “Boi da Cara Triste (Parábola de Escárnio e Maldizer)” — analogia com o folclórico “Boi da Cara Preta” —, o foco narrativo se volta para um tema tipicamente nordestino, com as paisagens áridas e miseráveis da região, onde a vida só tem sentido em si mesma. As relações sociais há muito estão desintegradas, e não se sabe mais onde começa o homem e termina o animal. O que impera naquele cenário grotesco é a carência, quer no terreno econômico, quer no afetivo. O drama vivido pelo protagonista, o Zé Carroceiro, uma espécie meio às avessas de Dom Quixote e Zé Bigorna, é descrito por intermédio de uma linguagem elaborada com base no seu universo psicológico. Tudo é pensado e realizado com a maior economia de meios, sendo que o resultado, surpreendente, já nem choca, conquanto possa estarrecer. Denúncia? Impotência diante de um mundo desumano e cruel para com seres vitimados pela injustiça social? Certamente.
Já em “O Bom Selvagem”, narrada na primeira pessoa, temos a história de um índio bororo desencantado com a cultura do homem branco. Depois de ter-se diplomado em Letras, viajado pela Europa e adquirido conhecimentos em várias línguas — muitas das quais fala fluentemente —, resolve, sob a influência de um padre, escrever a História do Brasil, ou melhor, traduzi-la para a língua de seu povo — conforme fica estabelecido desde o início da narrativa. Só que nessa empreitada não se deixa enganar pelas aparências, pelas artimanhas contidas no manuscrito. Sabe perfeitamente que o Brasil não nasceu dos portugueses, o que o situa em permanente conflito consigo mesmo. À medida que vai narrando, a reflexão surge automática. Seu propósito, entretanto, não é ser tradutor; no íntimo gostaria mesmo era de contar a própria vida e realçar as peripécias da infância até a idade adulta. Daniel Álvares — nome que os brancos lhe deram, ao aculturá-lo — antes se chamava Bokodori, fato que certamente muito contribuiu para o acirramento de seus conflitos. (“Meu desejo é esquecer o que aprendi e pôr para fora minhas verdadeiras emoções, ser eu mesmo, Bokodori e não Daniel Álvares.”)
Esse índio, na verdade, não é mais índio, tampouco branco. Vive entre dois mundos e não pertence a nenhum deles. Sua identidade está definitivamente comprometida: critica os brancos e não aceita mais os índios. E dessa tormenta existencial nasce, malgrado suas ponderações satíricas sobre o teor do texto em elaboração, todo o inconformismo que marca seu trabalho de tradutor, de intelectual.
Nilto Maciel, sempre senhor do seu ofício, conduz a novela num vaivém de símbolos e signos, em que a beleza sintática está a serviço da verdade humana mais recôndita; seu labor instrumental, ao revelar-se na feitura do texto literário, impõe leituras as mais diversas, não obstante a limitação da forma e dos meios impostos pela contenção verbal que caracteriza seu processo criador.
IV
Para mim, que venho estudando, com prazer e afinco, a História da Música e a História da Literatura — sobretudo no campo da ópera e da poesia —, resta uma conclusão até certo ponto bastante óbvia: a Arte, com o passar dos séculos, é a mais genuína manifestação humana sobre a face da Terra. Nenhum trabalho realizado pela mão do homem deixa frutos tão perenes quanto a expressão artística, porque esta é o código que delimita seu espaço entre o sagrado e o profano. E, consequentemente, seu vínculo com a espiritualidade transcendente, com o mistério que envolve a origem e o destino de todos os seres.
Desse modo, encontro na produção do autor deste belo e instigante “Vasto Abismo” — coleção de novelas curtas, incisivas e originais — uma completa incorporação dos caracteres humanos, com toda a sua problemática psicológica, política e social, em consonância com os valores estéticos embutidos na proposição de uma arte sempre comprometida com a solidariedade, com a catastrófica situação em que se encontra o homem moderno, completamente desassistido por um sistema cada vez mais mecânico e imbecilizante.
Portanto, para a obra de Nilto Maciel, posso usar tranquilamente as palavras finais do prólogo de Jorge Luís Borges em “A Invenção de Morel”, de Adolfo Bioy Casares: “Não me parece uma imprecisão ou uma hipérbole qualificá-la de perfeita”.
João Carlos Taveira é poeta, crítico e ensaísta. É colaborador do Jornal Opção.
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