Ao mesmo tempo que produziu uma literatura de qualidade, o escritor contribuiu para pensar o seu país

João Carlos Taveira

Especial para o Jornal Opção

Exaudi orationem meam

Clovis Sena não está morto. Depois de uma vida inteira dedicada à família, ao trabalho e aos amigos, foi convocado para seguir rumo à outra dimensão. Insisto. Clovis Sena não está morto. Depois de uma vida inteira dedicada ao jornalismo, ao cinema, à literatura, à música, às artes plásticas, partiu para outra dimensão em 15 de fevereiro de 2011, conduzido pela “indesejada das gentes”. Mas sua missão estava cumprida. Não deixou nada por fazer entre os homens nem algum débito entre os anjos. Seu crédito agora transcende céus e estrelas. E provavelmente já tenha se transformado em uma delas.

Clovis Sena: um escritor e poeta que pensou o país | Foto: Reprodução

Nascido na cidade de Carutapera, Maranhão, em 4 de março de 1930, esse menino travesso cedo se transferiu para São Luís, onde deu prosseguimento aos estudos e começou a trabalhar como jornalista. Alguns anos mais tarde, por força da profissão, Sena foi para o Rio de Janeiro, onde viveu intensamente, com participação ativa, o processo cultural e político da antiga capital. Ali conviveu com a nata da intelectualidade brasileira, fazendo amigos (como Oswaldo Costa e Pascoal Carlos Magno) e admiradores, tanto numa área quanto na outra. E, não esqueçamos, a Cidade Maravilhosa naqueles fins da década de 1950 vivia um dos seus períodos mais efervescentes. Grandes artistas, como Portinari, expunham as suas obras que eram recebidas com entusiasmo por escritores, jornalistas e intelectuais renomados. Na literatura surgiam livros e autores de grande importância no cenário brasileiro. O Teatro Municipal recebia e montava grandes espetáculos operísticos e populares, com Nelson Rodrigues no topo, revolucionando tudo, sob os aplausos calorosos ou as vaias estridentes de uma sociedade inquieta mas participativa.

Por outro lado, fervilhava pelas ruas uma grande euforia coletiva: uns, contrários à mudança da capital, incendiados e capitaneados pelas raposas da velha UDN, ficavam de um lado, mastigando seu ódio; outros, seduzidos pela audácia de JK, não viam a hora da inauguração da Nova Capital, pois sabiam que ali um sonho estava se realizando. Estavam certos de que uma nova identidade para o Brasil estava se construindo, mesmo com o sacrifício de certas mordomias. A verdade é que o processo mudancista trazia no seu âmago dois aspectos terríveis: a certeza dos contrários e a incerteza dos favoráveis. Mas Clovis Sena não teve dúvida: essa história tinha de acabar bem. Afinal, vinha de uma modernização iniciada pelo governo de Getúlio Vargas e que naquele momento estava sendo levada a cabo pelo destemido presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira. E isso era incontestável.

Novos ares e novas missões participativas

Assim, em abril de 1960, Clovis Sena veio para o Planalto Central cobrir a inauguração de Brasília, movido pela firmeza de seus propósitos e pela força de seus ideais. E nunca mais voltou. (Ainda bem que Gladys aceitou deixar o Maranhão, casar com ele e vir para cá.) Era, em essência, um idealista. E sabia que nos ermos de Goiás se construía mais que uma nova capital para o País — que precisava urgentemente sair do litoral e adentrar pelas veredas de seus descampados. Sim, o Brasil precisava conhecer sua gente simples e tomar posse de suas riquezas. Precisava construir uma capital que pudesse divisar o horizonte, sem perder de vista as estratégias de sua nacionalidade e assegurar a ocupação do Centro-Oeste e da Amazônia. E Brasília, além do arrojado de seu urbanismo, da beleza de sua arquitetura, da profundidade de seu céu, acabava de nascer sob a égide de uma espiritualidade nunca vista, depois da Inconfidência mineira. Nem Palmares, nem Canudos, nem a Coluna Prestes. Brasília conseguiu unir o sonho e a realidade sob o traço da esperança, não de um homem, mas de toda uma nação. Este é o seu maior legado.

Nos mais de cinquenta anos que viveu em Brasília, Clovis Sena conquistou uma legião de amigos em todos os setores culturais da cidade. Construiu uma sólida reputação entre professores, jornalistas, políticos, artistas e intelectuais, que poucos, como o poeta Cassiano Nunes e o artista plástico Athos Bulcão, puderam e souberam desfrutar, com trânsito livre entre as pessoas. Foi um profissional carismático e contundente, embora manso no gesto e nas palavras.

Trabalhou no “Jornal do Povo”, como repórter, redator, cronista e crítico de assuntos culturais; no “Jornal de Brasília”, no “Diário de Brasília”, no “Correio Braziliense” e no semanário “José”. Durante vinte e cinco anos, foi correspondente político-parlamentar do “Correio do Povo”, de Porto Alegre. Nessa mesma época, serviu como redator nos “Cadernos do Terceiro Mundo”, do Rio de Janeiro. Também atuou como redator da Câmara dos Deputados, em que se aposentou. Clovis Sena foi tesoureiro da UNE, presidente do Comitê de Imprensa da Câmara dos Deputados, no período da reabertura política (1985-86), presidente do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal (1987-88), vice-presidente da Fundação Claudio Santoro, fundador do Clube de Imprensa e do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal, membro do Conselho de Cultura do Distrito Federal, do Júri Nacional de Cinema e de diversos júris do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e do Festival de Gramado. Foi crítico de cinema, de teatro e de música erudita. Pertenceu à Academia Maranhense de Letras, à Associação Nacional de Escritores, ao Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal e à Academia Brasiliense de Letras.

A persistência de um livre-pensador

Clovis Sena insistia sempre numa coisa: o Brasil moderno e consciente de seu papel como nação que Getúlio tornou realidade, alguns anos antes, e que Juscelino, corajosamente, estava entregando ao povo brasileiro nunca mais seria o mesmo depois da construção de Brasília. (Pena que as forças negativas da nossa nacionalidade ainda continuam a combater os nossos heróis.) E Clovis Sena sabia exatamente onde estava e está o problema, de difícil solução, mas não impossível de ser resolvido. E ele deu sua prestimosa contribuição, tanto como cidadão e pensador quanto como jornalista e escritor. Deixou uma obra que fala por si mesma.

Livros como “Neiva Moreira — Testemunha de Libertação” (Movimento Brasileiro pela Anistia, 1979), “Flauta Rústica”, romance (Thesaurus Editora, 1984), e “Fronteira Centro-Oeste”, depoimentos de viagens (Editora Kelps, 1999) hão de ficar para nós como vigorosos testemunhos de um homem sábio, que nos deixou uma cristalina percepção de Virgílio e, ao mesmo tempo, traçou, palmo a palmo, o mapa de alguns recantos na imensidão do Centro-Oeste brasileiro, viajando por terra e em contato direto com o homem autóctone, antevisto por Paulo Bertran (1948-2005) em seu “História da Terra e do Homem no Planalto Central”, livro também admirável. E a busca dessa compreensão de seu país, de sua gente, em Clovis Sena, não era exatamente compulsiva, ou obsessiva, mas transcendia sua visão pessoal, ideológica. Em síntese, este homem que amava a música de Vivaldi, de Beethoven, de Brahms e do amigo amazonense Claudio Santoro, tanto no gesto quanto na palavra, há de permanecer vivo e atuante em nossas mentes, em nossos corações.

Sua obra publicada é pequena, mas deixou razoável material inédito que compreende quatro ou cinco livros, sendo um deles premiado fora do Brasil. Na verdade, continuam à espera de serem editados. Vamos aos títulos de alguns desses trabalhos que o poeta Clovis Sena deixou prontos para publicação: “O Senhor da Cerimônia” (poesia), 1985; “A Queda de Ovídio” (poesia), distinguido com o 1° lugar do Prêmio Nacional de Literatura da Fundação Cultural do Distrito Federal, 1987; “O arquipélago” (poemas), 1989; “Muitos cajus da vida” (poesia), 1990; “Poema do continente e das ilhas”, também de 1991.

Com os poemas “Mitolavratura”, “Descobrimento”, “Tetos do Mundo” e “Scherzo 13”, reunidos sob o título “Depoimento”, conquistou o primeiro prêmio para poeta de língua portuguesa em concurso promovido pela revista cultural “Xicóatl (Ziehender Stern)”, de Salzburg, Áustria, em 1996, com tradução simultânea para o alemão e o espanhol.

Clovis Sena sempre nos fará incomensurável falta. Tanto pela mansidão de sua presença física quanto pela impetuosidade de suas exposições verbais. Tudo o que pensava, graças aos anjos, arcanjos e querubins, ficou bem registrado nos seus livros, nas páginas dos jornais em que trabalhou, nas palestras que proferiu. E, sobretudo, nos artigos críticos de teatro, artes plásticas, música e cinema — que ele tanto amava —, que ficarão guardados em nossas lembranças, como marca indelével de seu talento e de sua extremada visão crítica da realidade. E principalmente, repito, em nossos corações, que ele sabia compreender muito bem. Clovis Sena, embora pequeno na estatura, era um gigante na generosidade. Foi um marido exemplar, um pai e um avô amoroso e atento. E um amigo fiel até as últimas consequências.

João Carlos Taveira, mineiro de Caratinga, é poeta, crítico e melômano incorrigível. É colaborador do Jornal Opção.