Ademir Luiz

Quando publicou o épico “Goyania”, em 1896, Manuel Lopes de Carvalho Ramos almejava ser o Homero goiano. O fundador de uma tradição literária e, portanto, civilizacional no jovem Estado de Goiás, que apenas começava a aparecer culturalmente no cenário nacional. Para isso utilizou fórmulas consagradas, e até mesmo ultrapassadas, do gênero poético. Emulando o passado clássico, da velha Grécia e da grandiosa Roma, transformou bandeirantes e indígenas em emulações de gregos e troianos combatendo em campos verdes.

O juiz Manuel Lopes de Carvalho Ramos, um homem da lei, desejava pavimentar o futuro da terra goiana. Aprendemos com John Sutherland que “uma epopeia é um poema longo com uma grande nação por trás — ou, mais precisamente, à frente”. A ideia de Goiás estava sendo construída e seus intelectuais, formados no acervo do Gabinete Literário Goyano, dialogavam sem conflito com os mestres do passado.        

Com o passar o tempo, esse projeto mostrou-se promissor. O Estado, depois de 1930, tem sido campo de importantes acontecimentos, cuja repercussão positiva nos outros Estados é facilmente evidenciada. A construção de Goiânia e o seu batismo cultural em 1942, o Congresso Eucarístico, o I Congresso dos Intelectuais Brasileiros, as universidades, e agora a participação nos problemas políticos nacionais, além do aspecto de “terra prometida” que vem atraindo técnicos e aventureiros.

Mas, noventa e oito anos depois da publicação de “Goyania”, quando Valdivino Braz lançou “A Trompa de Falópio”, o cinismo filosófico do autor não lhe permitia ver nada além do que uma terra devastada, cheia de homens ocos.

Valdivino Braz compôs seu épico moderno com a mesma intenção de T. S. Eliot quando escreveu “A Terra Devastada”, numa tentativa de “consertar uma cultura quebrada”. Nas duas ocasiões, “não era o caso de simplesmente grudar as folhas de volta na árvore. Alguma forma de vida nova e ‘moderna’ precisava ser encontrada” (Sutherland). Depois d’“Os Quinze”, depois do GEN, do Novo GEN, da geração mimeógrafo, Valdivino Braz queria ir além, muito além, ainda que revisitando mares anteriormente navegados. A tradição, homérica e camoniana, com pitadas de Fernando Pessoa, servia como matéria-prima para o novo, para um ousado plano de avançar na linguagem literária. Seus admiradores e detratores ainda discutem se foi bem-sucedido ou não. Suscitar polêmicas já é muito numa terra de homens ocos. 

Sua trajetória cultural começou muito antes. Nasceu no município de Buriti Alegre em 23 de novembro de 1942, formou-se em jornalismo pela Universidade Federal de Goiás em 1984, atuando profissionalmente na imprensa desde então (escreve, por exemplo, no Jornal Opção). De acordo com Assis Brasil, “podemos considerar Valdivino Braz, ao lado de Goiamérico Felício e Delermando Vieira, de uma geração paralela ao Grupo de Escritores Novos (GEN), mas que não participou deste e consolidaria sua obra sem vinculações estéticas ou sociais explícitas”.

T.S. Eliot, autor dos poemas “Terra desolada”, “Homens ocos” e “Quatro Quartetos”

Valdivino Braz lançou o primeiro livro em 1978, “As Faces da Faca”. Depois vieram “Tessitura do Ser”, de 1983, prêmio José Décio Filho, concedido pela União Brasileira de Escritores Seção de Goiás; “Arabescos Num Chão de Giz”, de 1989, e “Poema da Terra Perdida”, de 1992, ambos ganhadores do prêmio Hugo de Carvalho Ramos; “Pilóbolos”, de 2002, entre muitos outros. 

Não importa quanto tempo passe, Valdivino Braz segue sendo o enfant terrible da literatura goiana. Figura polêmica, conhecida pelo senso de humor sarcástico, orgulha-se de ser pedantemente humilde, “almeja apenas o Prêmio Nobel”. Autodenominado “O Pequeno Polegar das Letras de Goiás”, esforça-se sem esforço para alcançar o reconhecimento dos suecos. Faz sua parte, que é criar, sem muita preocupação com política ou relações públicas. 

Joyce e Rosa: referências na prosa

Se na poesia Valdivino Braz pretende ser um inovador da estirpe de T. S. Eliot, na prosa suas referências são James Joyce e Guimarães Rosa. Muita influência, com pouca angústia. Só interessa para Braz erguer catedrais literárias. Desenvolve desde 1986 seu work in progress, um grande romance, em dimensões e pretensões artísticas, sua mescla de “Ulisses” e “Grande Sertão: Veredas” particular. Pouco se viu desse material até o momento. Dele foi extraído “As Dores da Terra Antiga”, que se tornou a novela “O Gado de Deus”, lançada em 2002.

Tanto na prosa quanto na poesia, a principal característica de sua obra é a polifonia. Escreve entrecruzando diversas vozes, que se expressam em primeira ou terceira pessoa, algumas vezes simultaneamente, por meio de citações eruditas, referências difusas, neologismos, piadas, ditados populares, idiomas babélicos, redundâncias, metalinguagem, onomatopeias entre outros recursos. Nada é tabu ou previamente proibido. Valdivino Braz mantêm seu leitor continuamente em teste, seja colocando em xeque sua inteligência, seu humor ou sensibilidade moral. Às vezes, deliberadamente o ofende ou coloca-o no limite da paciência. Impossível tê-lo como “autor de cabeceira”, pois não pretende ser relaxante e muito menos ajudar a dormir. Sua intenção é perturbar, se possível gerar insônia. Para Braz, a peça literária não pode trazer comodidade, deve ser sempre um desafio. 

James Joyce: autor de Retrato do Artista Quando Jovem, Ulysses e Finnegans Wake | Foto: Reprodução

Em “A Trompa de Falópio”, de 1994, Valdivino Braz uniu o clássico e o moderno, Homero e James Joyce, em um só canto. Mas o protagonista da obra é sempre a linguagem, linguagem criadora. No poema que dá nome ao livro, “A Trompa de Falópio”, Braz escreve:  

E pois tomando de sua trompa

— a grande concha marinha,

cromática, ovoblonga e nódulos;

zimbro ou búzio que seja,

contanto que bucina ou trombeta —,

e pois de posse de tal objeto,

de moluscos gastrópodes

isto em que sopram os navegantes

o anúncio de chegada

e notícias do mar,

Falópio assim procedeu.

Diferente de Rolando, protagonista do épico nacional francês batizado com seu nome, que soprou sua corneta para avisar a comitiva de Carlos Magno dos perigos que a rondavam, Falópio, personagem mitológico, é o arauto da boa-nova poética proposta por Braz, anunciada pelo sopro de sua trompa: o próprio livro em que figura. Uma obra que se pretende recriadora e renovadora, carregando em si o DNA de toda uma tradição cultural. Neste sentido, é fundamental lembrar que “trompas de Falópio” é o nome popular dado ao aparelho reprodutor feminino, composto por dois canais responsáveis pelo transporte do óvulo até a cavidade uterina, onde ocorre o encontro com o espermatozoide. O óvulo é a tradição, o espermatozoide a renovação. Ou vice-versa.

Os sinais deste projeto estético abundam por todo livro. Um exemplo marcante está em “O Canto das Sereias”, um poema com versos repletos de palavras raras usadas tanto como marcadores de ritmo quanto como reminiscências do português arcaico de Camões, autor de Lusíadas, esse sim um épico diretamente inspirado em Homero sem nenhum anacronismo. Braz é o novo capitão do navio. 

Navegai, ó incautos;

como Ulisses, navegai

precavidos.

Há um canto de sereias

neste mar de signos.

Ponde cera nos ouvidos,

ou fazei-vos amarrar

ao mastro do navio.

Não cedais ao amavio,

ou arriareis as velas

num mar de procelas

e traiçoeiros recifes.

Timoneiros, olhai a rota!

Não ides, à deriva,

encalhar numa ilhota,

traídos por musas e divas.

Cuidai, navegantes,

nestas águas cediças,

neste mar de sargaços

linguísticos.

A tradicional figura da sereia, como uma musa inconfiável, canta em um mar de signos. O personagem do poema não é o próprio Ulisses, mas um leitor que navega “como Ulisses”, perdido nesta infinidade de significantes e significados criados pelo poeta. O maior perigo são as cediças, a arte velha e rotineira, repleta de sargaços, algas flutuantes, restos mortais da velha poesia que se recusam a ser levadas pelas ondas. A esperança recai no cavalo de Tróia, o livro em si, colocado nos portais da “Terra Devastada” que é a cultura reinante. O presente de grego será colocado para dentro ou não? A pergunta está no ar desde 1994. 

No mundo moderno a “odisseia” é pessoal e burguesa. Valdivino Braz, remetendo-se a James Joyce, defende essa ideia no poema “A Odisseia de cada um”, onde:        

Conta-se de um outro Odisseu,

que disse também chamar-se Ulisses,

embora não passasse de um reles desconhecido,

um bêbado,

no Bar Beira-Mar perdido.

(Houve quem dele se lembrasse

pela marca na face:

briga de faca a bordo do Poseidon,

o BARco, e tudo por um copo de rum)

Esse outro “Odisseu”, obviamente, é Leopold Bloom, protagonista do romance “Ulisses”, de James Joyce, a obra seminal do modernismo, e também o auge da aventura burguesa, cheia de banalidades ressignificadas à luz da tradição clássica, onde prostitutas são sereias e valentões de bar são perigosos ciclopes. Esse “reles desconhecido” faz a ida em um bar dublinense equivaler a aventurar-se em um barco perdido no Mediterrâneo. Leopold Bloom representa o homem comum, cada um de nós, protagonistas que somos de nossas pequenas odisseias cotidianas. Homens ocos?

Com “A Trompa de Falópio”, o poeta fez seu ultimato ao cenário cultural, declarou sua guerra de Tróia, sua guerra santa ateia, na condição de exército de um homem só. Pretensão? Sim, muita. Mas, como disse o próprio Braz, “modéstia à parte, sem falsa modéstia e enviando às favas a escrota humildade”, para que serve escrever se não for para ganhar o Nobel?    

Referências

BLOOM, Harold. A angústia da influência. Rio de Janeiro: Imago, 2002.

BRASIL, Assis. A Poesia Goiana no Século XX – antologia. Goiânia: Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira / Imago, 1997.

ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. São Paulo: Abril cultural, 1983.

SUTHERLAND, John. Uma Breve História da Literatura. Porto Alegre: L & PM, 2017.

TELES, José Mendonça. Dicionário do Escritor Goiano. Goiânia: Kelps, 2011.

TELES, Gilberto Mendonça. Estudos Goianos II – A crítica e o princípio do prazer.