Meu objetivo, com esse amontoado de palavras, é trazer a você, altaneiro leitor, uma fábula rasa que rabisquei algum tempo atrás, decorrente da minha observação das pessoas que se sentem senhoras da verdade. Convívio com gente assim, para mim, é algo tedioso. Prefiro a companhia de porcos chafurdados na lama à companhia de pessoas dessa laia.

Quem se acha dono da verdade, o sabichão, o sabe-tudo, é uma pessoa humanamente impenetrável. Por viver dentro de uma bolha de arrogância, essa pessoa não abre espaço para o diálogo. Afinal, se a “verdade” está sob a sua posse, não há por que dialogar. O perigo dessa convicção de sabe-tudo, de rei na barriga, é quando ela atinge as pessoas com poder de influência. Pessoas assim geralmente têm o seu séquito de subordinados, e estes, robotizadamente, acabam ecoando as verdades vomitadas em suas cabeças por seus gurus (da esquerda e da direita).

Verdades estas que podem entorpecer os títeres do séquito de modo a cegá-los de insensatez e estimulá-los a atos extremistas violentos. Exemplos disso, podemos encontrar na invasão do Congresso americano em janeiro de 2021, em que morreram cinco pessoas, como também nos ataques de janeiro de 2023, ocorridos no Brasil, em que uma turba “maluca” invadiu as sedes da Suprema Corte, do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto. Acho merecida a punição da lei a esses “malucos, que fica (sic) com essa ideia de AI5, intervenção militar”. Um maluco de mente excremencial, conforme foi mostrado num vídeo, chegou ao ponto de fazer cocô e xixi dentro de uma sala do Supremo.

Nos velhos tempos da mordaça na boca da democracia, nos trevosos anos de chumbo, todo esse fuzuê dos patriotas, os quais Bolsonaro (o guru deles) chamou de malucos, resultaria em muitos defuntos. Com a criação do Ato Institucional 5, que foi de 1969 a 1978, a foice da morte ceifou centenas de pessoas. Quem pensasse fora da cartilha e externasse seu descontentamento a defuntisse lhe era algo iminente. Muitos corpos desapareceram. O do deputado federal Rubens Paiva, por exemplo, nunca foi encontrado.

Sobre a fábula, vamos a ela. Foi uma discussão inútil a que tiveram o beija-flor e o urubu. Cada um falando para si mesmo sobre sua verdade. O bate-boca foi iniciado pelo beija-flor, que, se julgando mais importante, perguntou ao urubu como ele conseguia viver se alimentando de carniça. A avezinha ainda falou mal das penas escuras dele e ainda o chamou de fedorento. O urubu, por sua vez, defendeu a carniça e também disse estranhar o alimento do beija-flor. E falou da sua capacidade de voar bem alto, coisa que o beija-flor não é capaz.

Beija-flor, coruja e urubus: os personagens da fábula | Foto: Sinésio Dioliveira

Perto de onde eles estavam, havia uma corujinha caburé dentro de um buraco no tronco de um ipê-amarelo bem frondoso. Ela pensou em não entrar na conversa, mas não se conteve.

— A vida de cada um só serve para quem é o dono dela. A verdade de cada é a verdade de cada um. A discussão de vocês é tola. Nenhum convencerá o outro sobre qual é o melhor alimento e qual de vocês é a melhor ave. Não foram vocês que escolheram essa maneira de se alimentar. Não foram vocês que fizeram vocês. A singularidade de cada um vocês tem a sua importância dentro da natureza.

Enquanto a corujinha puxava-lhes a orelha, surgiu um tamanduá-bandeira enorme seguindo uma trilha de formigas saúvas e comendo-as todo feliz. Ela então pediu ao urubu e ao beija-flor que olhassem para baixo. E mais: sugeriu-lhes que perguntassem ao tamanduá que tipo de alimento ele achava mais gostoso.

Percebendo que os dois não entenderam nada do que ela falou, a corujinha ruflou suas asas e foi pousar no topo de um cupinzeiro onde costuma ficar à espera de calangos distraídos para se alimentar.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza