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Ycarim Melgaço – Professor e escritor, autor de “História das Viagens e do Turismo” (entre outros). Instagram: @ycarim

Há viagens que nos engrandecem. Outras, que apenas nos cansam. Mas existem viagens que nos diminuem não por falta de conforto, mas por excesso de verdade. Foi isso que aconteceu com o astronauta Ron Garan durante os 178 dias em que orbitou a Terra. 

Não havia paisagens tropicais, nem ruas vibrantes, nem mercados exóticos. Havia apenas o silêncio absoluto do espaço e, à sua frente, o planeta inteiro, uma esfera azul que parecia tão frágil quanto os problemas que insistimos em tornar insolúveis cá embaixo. Garan descreveu ter sentido “uma tristeza profunda”. Compreensível.

Afinal, poucos suportam olhar para a humanidade de longe sem experimentar uma certa melancolia, essa mistura de compaixão e descrença que nasce quando percebemos que estamos todos confinados à mesma casa, mas agimos como se cada cômodo fosse um império independente.

Ver a Terra de fora é testemunhar uma ironia cósmica. Enquanto aqui discutimos fronteiras com a mesma obstinação de quem desenha linhas na areia, lá de cima elas não existem.

Enquanto construímos muros, lá de cima tudo se resume a um círculo perfeito flutuando no nada.

Enquanto nos dividimos em países, facções, religiões, partidos e ressentimentos, lá de cima a Terra aparece unida por uma única cor azul que ninguém reivindica como propriedade.

E é talvez aí que reside a tristeza que tocou Garan.

Porque perceber que não há fronteiras é simples. O difícil é perceber que nós insistimos em inventá-las.

Durante suas voltas em torno do planeta, ele contemplou não apenas a beleza silenciosa da Terra, mas também o contraste brutal entre essa imagem serena e aquilo que deixara abaixo: um mundo em permanente ruído, onde seres da mesma espécie se especializaram em destruir tudo o que dizem amar: o solo, o ar, o outro, a si próprios.

Visto do espaço, o planeta parece um organismo vivo tentando sobreviver aos humanos, que se comportam como hóspedes que confundiram a casa com um buffet liberado.

É ali, nessa altura, que qualquer astronauta compreende que a fome não persiste por falta de comida, mas por falta de vergonha; que as guerras não nascem de conflitos inevitáveis, mas de egos inflamados; e que a ganância humana é o único recurso renovável que produzimos sem cessar.

A Terra, suspensa no vazio, é de uma beleza quase dolorosa.
E exatamente por isso ela humilha.

Porque obriga o observador a reconhecer o absurdo da nossa condição: somos pequenos demais para tanta soberba e destrutivos demais para tanta pequenez.

Garan percebeu isso quando viu o planeta girando lentamente, silencioso, como se tentasse manter a compostura diante de sua espécie mais problemática.

Ali, não há sirenes, nem discursos inflamados, nem estatísticas sobre inflação ou recessão.

Há apenas a constatação incômoda de que tudo o que fazemos, nossos triunfos, nossas tragédias, nossas ilusões de grandeza cabe dentro de um círculo azul do tamanho de um punhado.

Ao regressar, ele disse que, fora da Terra, fica evidente o óbvio: primeiro vem o planeta, depois a sociedade, e só então a economia. Uma hierarquia tão simples quanto ignorada.

Mas talvez a maior lição dessa viagem seja outra: não importa o quanto avancemos tecnologicamente, continuamos emocionalmente pré-históricos.
Enquanto inventamos foguetes para fugir do planeta, ainda tropeçamos na incapacidade de cuidar dele.

Enquanto construímos máquinas para atravessar o cosmos, não conseguimos atravessar a rua para ver que o outro também é humano. Pouquíssimos tiveram o privilégio de ver a Terra do lado de fora.

Mas quem viu, sabe: a viagem mais transformadora não é a que se faz para longe, mas a que se faz para dentro, quando o silêncio do espaço nos devolve, como espelho, o barulho de tudo aquilo que ainda não aprendemos a ser.