Publicado originalmente em 1937, o romance “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, já denunciava a situação de abandono em que se encontravam os “meninos de rua” nas cidades brasileiras e a política oficial da regeneração pela violência

Jorge Amado, autor de “Capitães da Areia”, que retrata a vida de um grupo de menores abandonados na década de 1930
Jorge Amado, autor de “Capitães da Areia”, que retrata a vida de um grupo de menores abandonados na década de 1930

Rafael Teodoro
Especial para o Jornal Opção

Um dos problemas mais graves da sociedade brasileira diz respeito ao tratamento desumano reservado para as crianças e adolescentes pobres. Num país como o Brasil, em que os direitos sociais com alguma qualidade estão todos privatizados (saúde, educação, moradia, lazer), é fácil concluir que a pobreza implica não apenas a supressão do poder aquisitivo que confere status existencial na sociedade de consumo (porque “existir”, nessa sociedade, significa “consumir”), mas também acarreta consequências oprobriosas, que resultam na mais vil indignidade: doenças medievais que matam, subnutrição, dentes que apodrecem, roupas esfarrapadas, exploração do trabalho, inclusive o sexual, abandono nas ruas, alfabetização precária ou mesmo inexistente. Tudo acompanhado, é claro, de muita, muita violência.

O problema dos “meninos de rua” é grave, sem dúvida. Mas, no Brasil, o descaso com que é tratado pelo Estado e pela sociedade talvez seja ainda pior. O desinteresse apresenta-se já nas faculdades de direito, que tradicionalmente formam a mão de obra burocrática que há de conduzir os negócios estatais: boa parte delas, ainda hoje, sequer tem uma disciplina específica direcionada ao estudo dos direitos da criança e do adolescente. Depois, o desinteresse toma a forma de desprezo social: os “meninos” não são mais “meninos”, e sim “menores”. E os “me­nores de rua” são um problema “do Estado”, que deve dar a eles o amparo que ninguém está disposto a dar. Pois esses “menores”, quando cedo seguem o caminho quase inevitável da criminalidade, transmudam-se novamente: agora são “pivetes”, perigosos infantes a sonhar o periclitante sonho de se tornar um grande criminoso. Colocando em risco a paz e a segurança públicas, os pivetes constituem a face mais visível e incômoda do problema. E a resposta institucional não tarda a chegar: polícia e violência, violência e polícia. E assim o ciclo da tragédia se completa, infindo e irresoluto.

Esse é o cenário do Brasil atual, onde há o desprezo generalizado pelos menores de rua. Há também o temor (e a repulsa) pelos pivetes — a juventude que se educa na “escola do crime”, para praticar delitos, às vezes de proporções dantescas, que remetem a precoces adultos cruéis. Sendo assim, a quem haveria de interessar o problema das crianças e adolescentes em situação de risco? Quem se interessaria pelos meninos de rua que a sociedade e o Estado convenientemente invisibilizaram?

Pois bem. O escritor Jorge Amado interessou-se pelo problema. Interessou-se tanto que escreveu um romance a seu respeito: “Capitães da Areia”. Trata-se de uma ficção que visa a denunciar a situação de abandono em que se encontram os “meninos de rua” nas cidades brasileiras. Por isso, a crítica considera-o um romance de “denúncia social”, que pertence à fase da prosa regionalista dentro do movimento modernista no Brasil, mesma fase a que pertencem outros grandes romances nacionais, como “O Quinze” (1930), de Rachel de Queiroz, “Menino de Engenho” (1932), de José Lins do Rego, e “Vidas Secas” (1938), de Graciliano Ramos.

Os meninos do trapiche abandonado

O curioso é notar a atualidade de um livro septuagenário. Pu­blicado pela primeira vez em 1937, “Capitães da Areia” continua a bem representar o significado da vida dos meninos de rua. Narra a história de várias personagens, unidas pela miséria, mas também pelo crime: agem como quadrilheiros juvenis, a praticar pequenos furtos em Salvador — a “cidade da Bahia”. São as aventuras desses pequenos delinquentes, esboço do que hoje se entende como “gangue”, que Jorge Amado irá narrar. Eles formam os “Capitães da Areia”, infantes que “tinham de si apenas a liberdade de correr as ruas. Levavam vida nem sempre fácil, arranjando o que comer e o que vestir, ora carregando uma mala, ora furtando carteiras e chapéus, ora ameaçando homens, por vezes pedindo esmola”.

Como qualquer grupo organizado, os Capitães da Areia têm uma base e um líder. A base é o trapiche abandonado onde dormem “em companhia dos ratos, sob a lua amarela”. O líder é Pedro Bala, um adolescente de quinze anos. Loiro e bom de briga, Bala conquista a liderança do grupo junto ao caboclo Raimundo após uma luta nas areis do cais. Mas o chefe dos Capitães da Areia também é um menino solitário: órfão, porque nunca soube de sua mãe, e seu pai morrera durante uma greve dos doqueiros, há dez anos vagabundeia pelas ruas da Bahia.

Como Bala, os outros integrantes dos Capitães da Areia são todos muito jovens: vão dos 8 aos 16 anos. Também têm trajetórias semelhantes de abandono nas ruas de Salvador. Há o negro João Grande, conhecido e admirado por sua força, que engajou com apenas 9 anos no grupo, após seu pai, que era carroceiro, ter sido atropelado por um caminhão. Há João José, o mais inteligente, que tinha o hábito incomum de furtar livros, para depois “comer os olhos” com a letra miúda e contar as histórias para seus colegas, quase todos analfabetos ou de pouquíssimo estudo. Esse gosto pela leitura, uma “ânsia que era quase febre”, foi que lhe valeu o apelido de “Professor”.

“Aquele saber, aquela vocação para contar histórias, fizera-o respeitado entre os Capitães da Areia, se bem fosse franzino, magro e míope. Apelidaram-no de Pro­fes­sor porque num livro furtado ele a­prendera a fazer mágicas com lenços e níqueis e também porque, con­tando aquelas histórias que lia e muitas que inventava, fazia a grande e misteriosa mágica de os transportar para mundos diversos, fazia com que os olhos vivos dos Ca­pitães da Areia brilhassem como só brilham as estrelas da noite da Bahia.”

No meio dos Capitães da Areia, outros membros se destacam: o Gato, o elegante do grupo, que se envolverá com a prostituta Dalva e tornar-se-á rufião; Boa-Vida, “mulato troncudo e feio”, que incorpora a figura do malandro que faz sambas com seu violão; Pirulito, um garoto dedicado à religião, que sonha em ser padre; e Volta-Seca, um mulato sertanejo que deseja juntar-se ao bando de Lampião.

Cena do filme “Capitães da Areia”, adaptação do romance de Jorge Amado, dirigido por Guy Gonçalves e Cecília Amado, neta do escritor
Cena do filme “Capitães da Areia”, adaptação do romance de Jorge Amado, dirigido por Guy Gonçalves e Cecília Amado, neta do escritor
O abandono de qualquer carinho

Menção especial merece o Sem-Pernas. Talvez ele seja a personagem com maior densidade psicológica em toda a trama: adolescente coxo, valia-se da comiseração proporcionada pela sua deficiência física para adentrar e espionar as casas escolhidas para novos furtos. Mas, além de espião do grupo, e do prazer que tinha em irritar os outros (o que o metia constantemente em brigas e lhe valeu a fama de malvado), o Sem-Pernas era também um garoto dotado de algum sentimento piedoso, que “No mais fundo do seu coração ele tinha pena da desgraça de todos. E rindo, e ridicularizando, era que fugia da sua desgraça. Era como um remédio.”

Mas o aspecto mais marcante da personalidade iracunda do Sem-Pernas é o sofrimento ante a lembrança, que o atormenta e corrói, das muitas surras que levou ao longo da vida, especialmente quando foi levado preso. Essas reminiscências tormentórias hão de acompanhá-lo durante toda a trama. Adquirem uma cor vibrante na passagem em que o adolescente hesita em pilheriar da fé de Pirulito. Assustado com a expressão extática do amigo que reza, mas descrente de que ali houvesse a felicidade e o carinho perdidos que tanto buscava, o Sem-Pernas vê-se recolhido ao seu dilema, incapaz de encontrar uma resposta: “O que ele queria era felicidade, era alegria, era fugir de toda aquela miséria, de toda aquela desgraça que os cercava e os estrangulava. Havia, é verdade, a grande liberdade das ruas. Mas havia também o abandono de qualquer carinho, a falta de todas as palavras boas. Pirulito buscava isso no céu, nos quadros de santo (…). Mas o Sem-Pernas não compreendia que aquilo pudesse bastar. Ele queria uma coisa imediata, uma coisa que pusesse seu rosto sorridente e alegre, que o livrasse da necessidade de rir de todo e de rir de tudo. Que o livrasse também daquela angústia, daquela vontade de chorar que o tomava nas noites de inverno. Não queria o que tinha Pirulito, o rosto cheio de exaltação. Queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores (…). Ele quer um carinho, uma mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa (…). Confu­sa­mente desejava ter uma bomba (co­mo daquelas de certa história que o Professor contara) que arra­sasse toda a cidade, que le­vasse todos pelos ares. Assim ficaria alegre. Talvez ficasse também se viesse alguém, possivelmente uma mulher de cabelos grisalhos que o apertasse contra o peito, que acarinhasse seu rosto e o fizesse dormir um sono bom, um sono que não estivesse cheio de dos sonhos da noite na cadeia”.

Em outro momento do romance, Jorge Amado volta a agudizar o conflito psicológico que advém dos traumas de infância do Sem-Pernas. Tal ocorre quando os Capitães da Areia decidem assaltar a casa de um rico advogado em busca de ouro. Como de costume, enviam o menino coxo que “sabia como nenhum afetar uma grande dor e assim conseguia enganar senhoras, cujas casas eram depois visitadas pelo grupo já ciente de todos os lugares onde havia objetos de valor e de todos os hábitos da casa”. Porém, o Sem-Pernas, ao ser recebido na casa, encontra dona Ester, uma mulher que enxerga nele a lembrança do filho falecido, tratando-o com uma doçura e carinho incomuns. Pela primeira vez o Sem-Pernas se sentia não apenas como o deficiente físico que angariava a pena alheia, mas como um verdadeiro filho. Nesse sentido, é exemplar sua reação transtornada quando recebe um “beijo de boa-noite” na face, um autêntico “beijo de mãe”: “O Sem-Pernas ficou parado, sem um gesto, sem responder sequer o boa-noite, a mão no roso, no lugar em que dona Ester o beijara. Não pensava, não via nada. Só a suave carícia do beijo, uma carícia como nunca tivera, uma carícia de mãe. Só a suave carícia no seu rosto. Era como se o mundo houvesse parado naquele momento do beijo e tudo houvesse mudado. Só havia no universo inteiro a sensação suave daquele beijo maternal na face do Sem-Pernas”.

Sem querer, o Sem-Pernas encontrara justamente aquele sentimento pelo qual a vida toda procurara: o amor maternal. Mas novo dilema se instala: ele fora enviado pelos seus companheiros como o espião, para dar as coordenadas do furto. E agora? Vai trair a confiança dos Capitães da Areia, permanecendo na casa de Dona Ester? Ou vai cumprir sua missão, fiel ao comando do grupo? Neste último caso, contudo, não estaria a trair a confiança de dona Ester?

“Durante aqueles oito dias os Capitães da Areia continuaram mal vestidos, mal alimentados, dormindo sob a chuva no trapiche ou embaixo das pontes. Enquanto isso, o Sem-Pernas dormia em boa cama, comia comida boa, tinha até uma senhora que o beijava e o chamava de filho. Se sentiu como um traidor do grupo. (…) E se para alguém o Sem-Pernas abria uma exceção no seu ódio, que abrangia o mundo todo, era para as crianças que formavam os Capitães da Areia. Estes eram seus companheiros, eram iguais a ele, eram as vítimas de todos os demais, pensava o Sem-Pernas. E agora sentia que os estava abandonando, que estava passando para o outro lado. Com esse pensamento se sobressaltou, sentou-se. Não, ele não os trairia. Antes de tudo estava a lei do grupo, a lei dos Capitães da Areia. (…) Mas aí pensou se não ia trair dona Ester. Ela confiara nele. Ela também na sua casa tinha uma lei como os Capitães da Areia: só castigava quando havia erro, pagava o bem com o bem. O Sem-Pernas ia trair essa lei, ia pagar o bem com o mal.”

Nessa passagem, evidencia-se um conflito personalíssimo (o Sem-Pernas e seu escrúpulo). Mas há também o aspecto moral, no sentido de uma “lei do grupo”. A lealdade aos Capitães da Areia não é fácil de ser rompida nem mesmo para um garoto traumatizado, pela violência como pela pobreza, que encontra o sonhado “amor de mãe” e seus consectários (o aconchego, a proteção, o carinho, o cuidado). Podendo permanecer onde está, isto é, na casa de dona Ester, com comida boa, roupinha de marinheiro e beijo de boa-noite, ainda sim o Sem-Pernas opta em seguir a lei do grupo. Foge, repassa as coordenadas, o furto concretiza-se. Mas a pergunta diante da qual se põe o leitor é a seguinte: como o Sem-Pernas pôde ter optado pela imundice do trapiche, pelo abandono de uma vida sem pai nem mãe, pela violência e pela fome das ruas?

À primeira vista, parece uma opção estúpida, para não dizer suicida. No entanto, é preciso considerar que, no romance de Jorge Amado, os Capitães da Areia não eram apenas uma gangue de meninos de rua; eles eram uma família. Para o Sem-Pernas, como para os demais membros do grupo, em meio ao abandono a que se habituara, os Capitães da Areia eram a sua única e verdadeira família em Salvador. E o parentesco que une essas crianças “é a miséria, a razão de existir, a luta tenaz contra tudo e todos, contra a cidade que se torna uma inimiga”.

Os mistérios e a descoberta do sexo

Outro aspecto interessante do romance é a sexualidade dos meninos de rua. A presença desse elemento, que por sinal é marcante na obra de Jorge Amado, aparece por mais de uma vez, mas não de uma maneira romântica, idealizada. Na verdade, acostumados a viver submetidos a um código próprio (a lei do grupo), cujos signos decifram-se na forma de armas brancas (a na­valha, o punhal), o sexo surge co­mo uma descoberta instintiva e des­regrada. Desse modo, os Ca­pitães da Areia “falavam naturalmente em mulher apesar do mais velho ter apenas 16 anos. Cedo conheciam os mistérios do sexo”.

Mas o conhecimento que tinham do sexo era tão violento quanto a vida que levavam. Nesse ato não havia amor, porque esse era um sentimento que os ansiava, uma busca perdida. Os Capitães da Areia sabiam apenas que precisavam matar o seu desejo. Alguns, como o Gato, iam dar com as meretrizes. Outros procuravam negrinhas para “derrubar no areal”, mesmo que à força, como no episódio em que Pedro Bala estupra uma menina (aliás, uma das passagens mais terríveis da história). Havia também os homossexuais no grupo. Boa-Vida, por exemplo, tentara conquistar o Gato, que o repelira com agressão. Outros, como Barandão e Almiro, mantinham uma relação homoafetiva em segredo, já que “uma das leis do grupo era que não admitiriam pederastas passivos”.

Disso sobressai o microcosmo em que os meninos de rua vivem: o trapiche é-lhes a casa, mas é também a porta aberta para o mundo, “porque toda a zona do areal do cais, como aliás toda a cidade da Bahia, pertence aos Capitães da Areia”. Sendo assim, poucos são os adultos que o integram: o capoeirista Que­ri­do-de-Deus, a mãe de santo Don’Ani­nha, o padre Sérgio. Não há espaço para outros, visto que os Capitães da Areia não podem confiar em ninguém, fugitivos perenes que são da polícia.

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Bexiguentos, órfãos de pai e mãe

Nesse microcosmo de fome, violência, criminalidade, desprezo social, no submundo da cidade de Salvador em que vivem os Capitães da Areia, enfim, um dos medos que aflige os meninos de rua é a doença. Aí ficam por sua própria conta, ao deus-dará.

“Por vezes morria um de moléstia que ninguém sabia tratar. Quando calhava vir o padre José Pedro, ou a mãe-de-santo Don’A­ninha ou também o Querido-de-Deus, o doente tinha algum remédio. Nunca, porém, era como um menino que tem a sua casa.”

É uma epidemia de alastrim que vai desencadear alguns dos momentos mais dramáticos do romance. Quando um dos Ca­pi­tães da Areia cai doente com “be­xiga”, percebe-se o total desamparo em que se encontram. Se, sem remédios, sem assistência médica, qualquer doença menos grave já preocupava, imagina então um vírus contagioso e fatal como o da varíola. Era praticamente morte certa.

Uma das passagens mais tocantes do romance ocorre justamente no auge da epidemia de alastrim. No capítulo “Filha de bexiguento”, Jorge Amado denuncia como a doença atinge cruelmente os pobres. É nesse instante que conhecemos Dora, uma menina de “treze para catorze anos”, que assiste à sua mãe sucumbir à doença, necessitada que estava de trabalhar: “Assim estava o morro quando Estevão foi levado para o lazareto. Não voltou, certa tarde Margarida soube que ele morrera por lá. Nesta tarde ela já estava com febre. Mas o alastrim parecia ser dos mais mansos no corpo da lavadeira e ela escondeu de todos a notícia, conseguiu não ser metida num saco. Aos poucos foi melhorando. (…) Margarida melhorou quando já os violões recomeçavam a tocar no morro, porque a epidemia de varíola tinha se acabado. A música voltou a dominar as noites do morro e Margarida, se bem ainda não estivesse completamente boa, foi à casa de algumas de suas freguesas em busca de roupa. Trabalhou o dia todo, sob o sol e a chuva que caiu pela tarde. No outro dia não voltou ao trabalho porque recaiu do alastrim e a recaída é sempre terrível. Dois dias depois descia do morro o último caixão feito pela varíola”.

Com essa passagem, Amado mostra que a morte da lavadeira poderia ter sido evitada noutras circunstâncias, caso ela tivesse tido o tempo adequado para recuperar-se. Mas a miserabilidade da sua vida, e a premente necessidade de garantir o sustento de sua família, fê-la retornar para o trabalho, na verdade, o caminho conducente à sua morte. Com isso, nova tragédia se anuncia: seus filhos, Dora e o caçula Zé Fuinha, agora estão nas ruas, pobres e órfãos de pai e mãe.

Chibatadas, socos e pontapés

Além da doença, a polícia é uma ameaça constante na vida dos Capitães da Areia. O episódio da narrativa mais representativo disso dá-se com a prisão de Pedro Bala, que, mandado ao Reformatório Baiano de Meno­res Abandonados e Delin­quentes, experimenta o tratamento oficial para “reformar” e regenerar crianças e adolescentes “desviados”: “O investigador fez um sinal para os soldados. Pedro Bala sentiu duas chicotadas de uma vez. E o pé do investigador na sua cara. Rolou no chão, xingando. (…) Agora davam-lhe de todos os lados. Chibatadas, socos e pontapés. O diretor do reformatório levantou-se, sentou-lhe o pé, Pedro Bala caiu do outro lado da sala. Nem se levantou. Os soldados vibraram os chicotes”.

A prisão de Pedro Bala é o mote para desvelar a máscara da política estatal. Crianças e adolescentes são reformados “na base da porrada”. O Estado alcança os jovens delinquentes, mas não para propiciar os direitos suprimidos, a escola, a saúde, a educação não vêm. O que chega aos meninos de rua é a “mão forte” do reformatório, que lhes cassa a liberdade, soqueia, senta a cinta, vibra o chicote. O Estado apresenta-se ainda mais violento que as ruas de Salvador.

No reformatório, onde deveria se “regenerar”, Pedro Bala é lançado pelo bedel na cafua, com feijão magro e água, obrigado a aspirar o odor fétidos das próprias fezes. Fica sabendo que mais de um menino já morreu naquele espaço tão apertado. Seus dias na solitária, cheio de fome e sede, dão-lhe tempo para pensar. E tudo no que pensa é no ódio, no desejo de vingança. No reformatório baiano da pobreza, o chefe dos Capitães da Areia aprende a suportar as dores no corpo espancado e a sobreviver com pouca água, quase nenhuma comida. Pode alguém recuperar-se da delinquência dessa forma?

O lirismo do grande Carrossel Japonês

São essas pequenas tragédias sociais que Jorge Amado vai narrando ao longo do livro. É a face de denúncia social do romance, que o situa historicamente no conjunto das obras neorrealistas da prosa regionalista do modernismo brasileiro.

Apesar disso, Capitães da Areia reserva momentos de lirismo. O mais emblemático deles ocorre no passeio dos meninos no Grande Carrossel Japonês. É quando se revela que os temidos jovens delinquentes, que cresciam e se afirmavam no uso da navalha e do punhal, também possuíam a capacidade de maravilhar-se com um brinquedo. Porque o carrossel, no fundo, era apenas isto: um brinquedo para quem não tivera a chance de brincar como qualquer outra criança. Um brinquedo para aqueles que queriam esquecer tudo, toda a miséria e abandono, e ser “iguais a todas as crianças”.

“O Sem-Pernas botou o motor para trabalhar. E eles esqueceram que não eram iguais às demais crianças, esqueceram que não tinham lar, nem pai, nem mãe, que viviam de furto como homens, que eram temidos na cidade como ladrões. Esqueceram as palavras da velha de lorgnon. Esqueceram tudo e foram iguais a todas as crianças, cavalgando os ginetes do carrossel, girando com as luzes. As estrelas brilhavam, brilhava a lua cheia. Mas, mais que tudo, brilhavam na noite da Bahia as luzes azuis, verdes, amarelas, roxas, vermelhas do Grande Carrossel Japonês.”

Em 1937, “Capitães da Areia” foi queimado em praça pública por ter sido considerado um livro “propagandista do credo vermelho”. O fato é que a alardeada “ameaça comunista”, pretexto comum para o exercício do arbítrio totalitário no século 20, não se concretizou, e a ditadura militar (felizmente) acabou no Brasil. De eterno, dessa história toda, só ficou mesmo o problema das crianças e adolescentes de rua no Brasil — que ainda hoje, em pleno século 21, permanece longe de ser resolvido — e a sua representação literária mais pujante: o romance “Capitães da Areia”, uma leitura instigante e envolvente sobre uma das mais tristes tragédias sociais brasileiras.

Rafael Teodoro é advogado e crítico de música e literatura.